Olá alunos,
A postagem de hoje proporciona uma reflexão acerca da necessidade de repensarmos a estrutura social na qual estamos inseridos - pautada pela associação entre trabalho e renda. No texto, são abordadas as principais discussões sobre a ideia de renda mínima incondicional.
Esperamos que gostem e participem.
Lucas Dadalto e Silvana Gomes
Monitores da disciplina "Economia Política e Direito" da Universidade Federal Fluminense
Trabalhamos e, graças ao
trabalho, recebemos dinheiro. Essa lógica está tão arraigada na mente das
pessoas que sugerir uma inversão da ordem das coisas inevitavelmente levanta
dúvidas sobre a saúde mental de quem o fez. A perspectiva de instaurar uma renda
incondicional, ou seja, prover cada um com uma quantia mensal suficiente para
lhe permitir viver, independentemente de sua atividade assalariada, aparece
como uma aberração. Ainda estamos convencidos de ter de arrancar de uma
natureza árida e ingrata os meios de nossa subsistência individual; mas a
realidade é bem diferente.
Bolsas de
estudo, licença-maternidade, pensões, bolsa família, indenizações por demissão:
muitos benefícios que têm em comum o fato de dissociar renda e trabalho. Por
mais insuficientes que sejam e por mais atacados que possam se revelar todos
esses dispositivos, eles mostram que, se a renda mínima incondicional é uma
utopia, trata-se de uma utopia que “já existe”. Na França, em 2005, a renda da
população dependia 30% da redistribuição: “Apesar de todos os discursos
ideológicos e da liquidação do Estado social, vilipendiado pelos neoliberais, a
parcela da transferência de renda aumentou inexoravelmente sob os presidentes
Mitterrand, Chirac e Sarkozy”. E não seria muito difícil mover novamente o
cursor para garantir que todos estejam ao abrigo da necessidade.
Tendo em mente que a primeira
consequência de uma renda básica é eliminar o desemprego como um problema –
tanto como questão social quanto como fonte de ansiedade do indivíduo –, seria
possível economizar, de início, as somas envolvidas na busca do objetivo
oficial do pleno emprego. Nada mais justificaria os presentes dados às empresas
para incentivá-las a contratar. Além disso, por ser a renda garantida universal
e incondicional – ela é concedida a todos, pobres e ricos, estes últimos a
recebendo como reembolso por meio do imposto –, as economias seriam realizadas
eliminando todo o trabalho administrativo relacionado ao acompanhamento de
beneficiários da assistência social, questionável por seu caráter humilhante,
intrusivo e moralizador.
Mas antes
de prosseguir, e já que começamos, é importante definir bem do que exatamente
estamos falando. Uma medida defendida nos anos 1960 por economistas tão
diferentes como James Tobin – também por trás da proposta de taxação das
transações financeiras – e o liberal Milton Friedman tem de fato motivos para
inspirar perplexidade. Essa grande lacuna permanece até hoje: na França, a
renda garantida defendida por Christine Boutin (Partido Cristão-Democrata) não
é a mesma que a apoiada por Yves Cochet (Verdes) ou pelo Movimento Utopia,
transversal aos Verdes e ao Partido de Esquerda.
Com um
montante muito inexpressivo para que se possa dispensar o emprego, a renda
básica propagada pelos liberais funciona como um subsídio para as empresas e se
inscreve em uma lógica de desmantelamento da proteção social: é a perspectiva
do imposto negativo de Friedman. Em suas versões de esquerda, ao contrário, ela
deve ser suficiente para viver – mesmo que a definição de “suficiente”,
suspeitamos, dê margem a perguntas espinhosas. E não a concebemos sem uma
defesa conjunta dos serviços públicos e dos seguros sociais (pensões,
auxílio-desemprego ou doença), bem como alguns benefícios sociais. Há também
acordo sobre algumas outras características: ela deveria ser paga mensalmente a
cada indivíduo, do nascimento até a morte (os menores recebendo uma quantia
mais reduzida que a dos adultos), e não a cada lar; nenhuma condição ou
contrapartida seria exigida; e seria acumulável com os rendimentos do trabalho.
Assim,
cada um poderia escolher o que deseja fazer da vida: continuar a trabalhar, ou
seguir desfrutando seu tempo contentando-se com um nível de consumo modesto,
ou, ainda, alternar entre os dois. Os períodos fora do emprego não seriam mais
suspeitos, uma vez que o trabalho remunerado deixaria de ser a única forma
reconhecida de atividade. Aqueles que escolhessem viver da renda garantida
poderiam se dedicar inteiramente às tarefas pelas quais são apaixonados e/ou
que lhes pareçam socialmente úteis, sozinhos ou com outros, pois o projeto se
baseia fortemente nas possibilidades de livre associação que abriria.
Em 2004,
dois pesquisadores da Universidade Católica de Louvain tentaram adivinhar os
efeitos produzidos pela renda básica, enfocando os vencedores do jogo
televisivo Win for life, que oferece
uma renda mensal para seus ganhadores. Entre as notáveis diferenças entre as
duas situações, que obrigam a relativizar suas conclusões, Baptiste Mylondo
destaca uma que eles negligenciaram: “Enquanto o beneficiário da renda
incondicional está cercado por outros beneficiários, o vencedor do sorteio está
totalmente isolado. Ora, o valor do tempo livre aumenta com o número de pessoas
com quem é possível compartilhá-lo”. Portanto, para um grande número de pessoas a
renda garantida mudaria consideravelmente ao mesmo tempo a relação com o
trabalho, a relação com o tempo, a relação com o consumo e a relação com os
outros – aí incluídos, por contágio, aqueles que optassem pelo emprego
assalariado. No entanto, é verdade que ela imporia a criação de novos modos de
socialização, sem o que poderia também favorecer o recolhimento, especialmente
entre as mulheres, que correriam o risco de ser confinadas ao lar.
Na
França, a reivindicação de uma renda garantida se cristalizou durante a revolta
estudantil contra o projeto de contrato de inserção profissional (CIP) do
governo de Édouard Balladur, em 1994, com a criação, em Paris, do Coletivo de
Agitação por uma Renda Garantida Ideal (Cargo), logo integrado ao movimento
Agir em Conjunto contra o Desemprego (AC!). Ela ressurgiu durante o movimento
de desempregados, na virada de 1997 para 1998. Na mesma época, o filósofo
ambientalista André Gorz se uniu à ideia,que
encontrou eco no movimento antiglobalização que estava sendo formado. Alain Caillé, fundador do movimento
antiutilitarista nas ciências sociais (Mauss), também foi partidário da
proposta.
Finalmente,
em resposta aos ataques de que seu regime de indenização foi objeto a partir de
2003, certos militantes defenderam não somente a manutenção do dispositivo, mas
sua extensão ao conjunto da população, de modo a normalizar a alternância de
períodos de folga e de períodos trabalhados, sabendo que estes últimos se
alimentam dos primeiros e não poderiam existir sem eles. Sua proximidade com
essa luta levaria Christophe Girard, prefeito socialista do quarto distrito de
Paris, a pleitear na véspera do congresso de seu partido, em outubro de 2012, o
estabelecimento gradual de uma renda universal.
Antes, e
mesmo que não tenha restado muita coisa da medida finalmente votada, a ideia de
que a sociedade deve a seus membros os meios de sua subsistência tinha
assombrado os debates parlamentares em torno da criação da renda mínima de
inserção (RMI) pelo governo de Michel Rocard, em 1988. À esquerda, alguns, a
começar pelo relator do texto, Jean-Michel Belorgey, contestavam o
condicionamento da RMI a “esforços de inclusão”. E eles se perguntaram: podemos
falar de um “direito” a uma renda cuja obtenção é suspensa a partir de uma
passagem por uma comissão e para a qual uma contrapartida é exigida?. Esse é também o significado do slogan sem
floreios das manifestações de desempregados, “Dinheiro para viver!”: em uma
sociedade que não é ameaçada por nenhuma penúria, todos deveriam ter direito a
uma vida digna, sem para isso ter de se esforçar.
A renda
básica visa de início fornecer a todos o mínimo vital, seja no Norte ou no Sul,
onde também tem seus defensores. Acredita-se em geral que teria como efeito
estimular a atividade econômica nos países em desenvolvimento e reduzi-la
ligeiramente em outros lugares – razão pela qual ela interessa aos ecologistas.
Nas sociedades ocidentais, ela ofereceria a oportunidade de escapar do
desemprego, da precariedade, das más condições de habitação e pobreza, ou, para
alguns assalariados, do sofrimento físico e mental experimentado durante o
trabalho. Mas ela não colocaria por terra o capitalismo, e, ainda que alguns a
associem a um projeto de renda máxima, não eliminaria as desigualdades. E é isso que
muitos não deixam de censurar nela. Assim, o comunista libertário Claude
Guillon, por considerar o programa muito tímido, satirizou em um livro aquilo
que chama de “garantismo”. Ele admite, no entanto, que se fala melhor de
política com a barriga cheia...
Confiar
nos indivíduos
Em vez de
derrubar uma ordem injusta para substituí-la por uma ordem justa, a renda
básica daria “um impulso cultural”. Ela traria ao mesmo tempo reconhecimento e
incentivo para as atividades fora do mercado, de maneira a começar uma
transição que ninguém pode prever aonde levaria. É precisamente o abandono
dessa lógica que seduziu o ativista suíço Oliver Seeger, coautor da versão
francesa do filme A renda básica.Antigo
membro da Longo Maï, cooperativa agrícola comunitária estabelecida após 1968
nos Alpes da Haute-Provence, ele rejeita, em retrospectiva, “esse pressuposto
implícito de que éramos uma vanguarda revolucionária, uma pequena elite que
estava se preparando para o dia D”. A renda garantida, ao contrário, permite
“deixar as pessoas livres. Não pensar por elas, não lhes passar uma ideologia
já mastigada que seriam condenadas a seguir”. Essa mudança de paradigma seria
tudo menos fácil: “Eu espero que as pessoas tenham dor de cabeça, de coração,
de estômago, que todo o seu metabolismo seja desarranjado, se elas tiverem de
pensar sobre o que realmente sentem vontade de fazer! Como poderia ser de outra
forma, quando, durante anos, fomos trabalhar sem fazer perguntas? Mas eu
realmente gostaria de ter a chance de ver o que isso poderia proporcionar”.
Outra
importante crítica dirigida à renda garantida tem a ver com seu questionamento
da norma de emprego assalariado. Historicamente, o movimento dos trabalhadores
se organizou entre os assalariados. Ali ele forjou todas as suas ferramentas de
resistência à exploração e obteve todas as suas conquistas, dos feriados e fins
de semana remunerados à proteção social, a ponto de às vezes esquecer que o
“desaparecimento do emprego assalariado” era uma das metas estabelecidas pela
Confederação Geral do Trabalho (CGT) na Carta de Amiens, em 1906... Para o
mundo sindical e as correntes políticas que lhe são próximas, dissociar
trabalho e renda soa, portanto, como um passo perigoso ou herético. Economista
membro da Associação para a Taxação das Transações Financeiras para Ajuda aos
Cidadãos (Attac), Jean-Marie Harribey escreve que o trabalho constitui, “quer
gostemos ou não”, um “vetor essencial de integração social”, porque confere ao
indivíduo “sua qualidade de homem completo, produtor e cidadão”.
Em
contrapartida, promotores da ideia da renda garantida formulam uma crítica do
trabalho assalariado. A maioria dos empregos, argumentam, não traz aos que os
desempenham a autoestima nem o sentimento de servir ao interesse público – isso
quando não lhes proporcionam um sentimento totalmente oposto. E, mesmo que
fosse esse o caso, os ganhos de produtividade ligados ao progresso técnico de
qualquer maneira não permitiriam garantir trabalho para todos. Favorável a um
salário vitalício incondicional financiado pela extensão do sistema de
cotização, Bernard Friot compartilha essa análise: “É melhor não fazer nada do
que ser um trabalhador que produz sementes estéreis para a Monsanto”.
Já a
corrente inspirada na autonomia operária italiana sustenta sua crítica do
salário no conceito de general intellect,
emprestado de Karl Marx. NosGrundrisse,
Marx previa que chegaria um momento em que o conhecimento acumulado ao longo da
história pelo conjunto da sociedade seria o cerne da criação de valor. Com o
advento da economia do intangível, chegamos a isso, afirmam seus leitores. E,
portanto, o capitalismo só pode se tornar cada vez mais parasita. O essencial
da produção de riqueza se desenharia, portanto, fora do emprego. Entre as figuras
da cigarra despreocupada e da formiga trabalhadora, [Yann] Moulier-Boutang
interpõe uma terceira, a da abelha: seu trabalho de polinização não cria valor
direto, mas nenhuma produção poderia existir sem ele. Da mesma forma, cada
pessoa, com as mais simples atividades diárias, participa indiretamente da
economia.
O
argumento tem a vantagem de combater as alegações, agitadas pelos demagogos, de
“assistidos” inúteis e preguiçosos vivendo do trabalho dos outros. Mas fazer
disso a justificativa da renda garantida é uma armadilha que André Gorz
percebeu muito bem: “Permanecemos assim no plano do valor do trabalho e da
produtividade”. Ora, “a renda de existência só faz sentido se não exige nem
remunera nada”: ela deve, pelo contrário, permitir a criação “de riquezas não
negociáveis”.
Não há
necessidade, de qualquer maneira, de passar pelo general
intellectpara fundamentar na teoria a instauração de uma renda
garantida. Em La justice agraire[A
justiça agrária], de 1796, um dos primeiros promotores da ideia, o
revolucionário anglo-americano Thomas Paine, viu nisso uma justa indenização
para a apropriação da terra por parte de alguns, ainda que supostamente
pertencente a todos...