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domingo, 30 de outubro de 2016

O regressivo sistema tributário brasileiro

Olá alunos, 

A postagem de hoje mostra que a carga tributária bruta aumentou significativamente entre 1995 e 2004, mas nosso sistema continua a onerar os trabalhadores e os pobres.

Esperamos que gostem e participem. 

Na quarta-feira 6, a Fundação João Mangabeira, ligada ao PSB, lança uma nova edição de sua revista, a Politika. Desta vez, o tema central é a reforma do Estado. Carta Capital publica com exclusividade um trecho de um dos artigos que compõem a revista. O economista Evilasio Salvador, da Universidade de Brasília, trata das distorções do sistema tributário. 
A carga tributária bruta, incluindo a arrecadação da União, estados, Distrito Federal e municípios, aumentou significativamente entre 1995 e 2004, passando de 27% para 33% do PIB. Mas nosso sistema está concentrado em tributos regressivos e indiretos, justamente os que oneram mais os trabalhadores e os pobres.
Mais da metade da arrecadação provém de tributos que incidem sobre bens e serviços, com baixa tributação sobre renda e patrimônio. Nos países mais desenvolvidos, a tributação sobre o patrimônio e a renda corresponde a cerca de 2/3 da arrecadação, conforme dados da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE).
A eficácia redistributiva da política tributária brasileira é baixa, pois ela não tributa o patrimônio e os rendimentos mais elevados, não originários do trabalho – aluguéis, aplicações financeiras, lucros e dividendos (Silveira et al, 2008).
A forte correlação negativa entre o índice de Gini e a carga tributária reforça a ideia de que o sistema tributário não contribui para a redistribuição de renda no Brasil. Ao contrário, ele deprime o poder de compra da população de baixa renda, alijando-a do mercado de consumo.
Estudo publicado pelo Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc) destaca que em vários países da OCDE a elevada carga tributária bruta acompanha uma melhor distribuição de renda, mas o sistema tributário brasileiro, fortemente regressivo, associa-se a uma elevada concentração de renda.
O aumento da carga tributária bruta não ocorreu de forma homogênea para todas as classes sociais e faixas de renda no país. Da arrecadação tributária de 2014, de R$ 1,8 trilhão, 13% vêm de tributos que incidem diretamente sobre a renda dos trabalhadores, incluindo a contribuição dos empregados para a previdência social.
Os tributos sobre o consumo (bens e serviços) representam 51%. Considerando-se que a contribuição dos empregadores para a previdência social é um custo que as empresas repassam para ao consumidor, a tributação indireta sobre bens e serviços, na prática, pode representar mais de 60% da carga tributária.
O principal tributo sobre o consumo é o imposto sobre circulação de mercadorias e serviços (ICMS), de competência dos estados e do Distrito Federal. Ele é responsável por 20% da arrecadação tributária, uma peculiaridade do sistema brasileiro, pois em outros países não é comum que o principal imposto pertença a uma esfera subnacional.
O ICMS é um tributo regressivo, que onera a população mais pobre. Uma das principais questões sobre ele diz respeito às inúmeras alíquotas envolvidas e à falta de harmonização da legislação no país. As alíquotas das operações internas são estabelecidas pelos estados e o Distrito Federal, podendo ser seletivas conforme a essencialidade do bem: produtos básicos deveriam ter alíquotas menores que os supérfluos.
Contudo, a situação que predomina no país é exatamente a inversa, com os bens supérfluos sendo menos tributados que os bens essenciais (Lima, 2009). O ICMS responde por 45% dos tributos que incidem sobre os alimentos, com uma alíquota-padrão em torno de 17%. Em alguns estados chegam a ser estabelecidas mais de quarenta alíquotas diferentes para esses produtos (Máximo, 2013).
Como não há harmonização das normas desse imposto, o ICMS, na prática, é regulamentado por 27 legislações. Ademais, é prática usual no Brasil a cobrança “por dentro”: os tributos incidem sobre outros tributos, de modo que as alíquotas nominais são menores do que as efetivas.
Os tributos indiretos são regressivos, pois têm uma relação inversa com o nível de renda do contribuinte, prejudicando as pessoas de menor poder aquisitivo. Eles incidem sobre a produção e o consumo de bens e serviços, sendo passíveis de transferência para terceiros, ou seja, para os preços dos produtos.
Os consumidores pagam o tributo com a mediação das empresas produtoras ou vendedoras, que são as contribuintes legais. Como o consumo é proporcionalmente decrescente em relação à renda, isso prejudica mais os contribuintes de menor poder aquisitivo.
Para Oliveira (2009) trata-se do “fetiche” do imposto: o empresário nutre a ilusão de que recai sobre seus ombros o ônus do tributo, mas este, incorporado à estrutura de custos da empresa, na verdade é repassado aos preços.
A tributação sobre patrimônio reapareceu no debate internacional depois da publicação de O capital no século XXI, de Thomas Piketty (2014). A partir da análise de dados tributários e apresentando vasta evidência empírica, o autor demostra que houve um aumento espetacular na desigualdade de renda nas principais economias do mundo.
E faz um apelo, especialmente, por impostos sobre a riqueza, se possível em escala mundial, a fim de restringir o crescente poder da riqueza hereditária.
No caso brasileiro, o imposto sobre herança é conhecido como imposto de transmissão causa mortis e doação (ITCMD), e sua arrecadação compete aos governos estaduais.
Em 2014 foram arrecadados apenas R$ 4,7 bilhões, somente 0,25% do total, conforme estudo da Receita Federal (2015). Oliveira e Biasoto Jr. (2015) destacam que esse imposto, criado em 1988, permanece com pouca relevância no sistema tributário brasileiro e nem chega a ser regulamentado em vários estados. Muitas vezes, sequer é cobrado na transmissão de imóveis por motivo de morte.
Oliveira e Biasoto Jr. (2015, p. 27), com base em dados da Receita Federal, afirmam que “os valores dos bens e direitos declarados como recebidos como heranças e doações, isentos da incidência do imposto de renda, foram, em 2013, de R$ 51 bilhões. Trata-se de uma transferência de riqueza apreciável e, a não ser no caso do cônjuge, imerecida por quem a recebe, por não ser fruto do trabalho, mas resultado apenas da sorte.”
A insignificante arrecadação também resulta da baixa alíquota do ITCDM, que em 1992 foi fixada pelo Senado Federal em 8%, mas raramente passa de 5% nos estados, na maioria das vezes sem progressividade, como é o caso de São Paulo, onde a alíquota única é de 4%.
Na média dos países da OCDE essa alíquota é de 15%, mas há paí-ses, como Japão, em que alíquota máxima chega a 55%. Na Bélgica chega a 50% e na França é de 45%. No Reino Unido, o teto da tributação sobre herança é de 40%. Na América Latina, o Chile tem uma alíquota máxima de imposto sobre herança de 25% (Oliveira e Biasoto Jr., 2015).
Há outras particularidades da tributação sobre patrimônio no Brasil. No período de 2000 a 2011, o acréscimo na arrecadação tributária sobre o patrimônio decorreu, principalmente, do maior recolhimento do imposto sobre a propriedade de veículos automotores (IPVA), consequência do crescimento da venda de automóveis (Salvador, 2014).
Entre 2003 e 2012 houve um aumento de 98% na produção de veículos automotores, colocando o Brasil como o quarto maior fabricante de carros e o detentor da sétima maior frota, de acordo com a Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores (Anfavea).
Convém ressaltar que o IPVA não incide sobre veículos como jatos, helicópteros, iates e lanchas porque, sendo sucessor da antiga taxa rodoviária única, a jurisprudência estabeleceu que sua incidência limita-se aos veículos terrestres.
Apesar de ser um país com forte presença de latifúndios, o Brasil cobra um imposto irrisório sobre as propriedades rurais. Os dados da Receita Federal (2015) revelam que o imposto territorial rural arrecada 0,01% do PIB.
A Constituição prevê progressividade na cobrança do imposto sobre propriedade territorial urbana, de competência municipal, mas têm sido estabelecidas alíquotas neutras para ele (Silveira et al, 2008). Além disso, até hoje não foi regulamentado o imposto sobre grande fortunas, de competência da União, estabelecido na Constituição de 1988.
Também é irrisória a tributação das transações financeiras: apenas 0,54% do PIB, conforme a Figura 2, arrecadado basicamente com o imposto sobre operações financeiras (IOF). No ano 2000, o IOF arrecadava o equivalente a 0,29% do PIB, apresentando um crescimento percentual da ordem de 267% no período de 2000 a 2011 (Salvador, 2014) e alcançando R$ 29,4 bilhões em 2014 (Receita Federal, 2015).
O IOF foi criado na reforma tributária de 1966, realizada pela ditadura militar, concebido como instrumento auxiliar das políticas monetária e cambial para facilitar o alcance dos objetivos macroeconômicos estabelecidos pelo governo federal.
O financiamento das políticas públicas não é sua principal função, pois se trata de um imposto regulatório. Mas as funções do IOF foram paulatinamente ampliadas. Hoje, ele incide sobre diversas operações e serviços oferecidos pelo sistema bancário, destacadamente: operações com títulos mobiliários, com câmbio, com seguro e com crédito, derivativos e ouro.
O IOF vem cumprindo também uma função arrecadatória, contribuindo para repor parcialmente os recursos perdidos com o fim da CPMF. Em tese, trata-se de um imposto repassado ao preço de bens e serviços finais, com características regressivas.
Contudo, o IOF pode se transformar em um imposto sobre a taxação de transações financeiras se adquirir características de progressividade, isentando as operações de crédito popular e alargando a base de tributação para atingir um conjunto de produtos financeiros especulativos.
Um aspecto particular da tributação sobre a renda no Brasil é que nem todos os rendimentos tributáveis de pessoas físicas são levados obrigatoriamente à tabela progressiva do imposto e sujeitos ao ajuste anual de declaração de renda.
A tributação dos salários obedece às quatro alíquotas estabelecidas na legislação, mas os rendimentos decorrentes de renda fundiária variam de 0,03% a 20%, conforme o grau de utilização da terra e a área total do imóvel.
Os rendimentos de aplicações financeiras têm alíquotas que variam entre 0,01% e 22,5%, conforme o prazo e o tipo de aplicação, o que privilegia os rentistas. Essa situação evidencia que, em pleno século XXI, tributamos mais fortemente as rendas derivadas do trabalho.
Isso ocorre porque a atual legislação não submete à tabela progressiva do imposto de renda os rendimentos de capital e outras rendas da economia, que são tributados com alíquotas inferiores à do imposto que incide sobre a renda do trabalho.
Ao permitir a incidência exclusiva de determinados rendimentos na fonte, a legislação tributária acaba estabelecendo discriminações na origem da renda dos contribuintes, que acabam sendo tributados apenas proporcionalmente, fugindo da progressividade.
Trata-se de um contraste com o que está estabelecido na Constituição, que não permite discriminação em razão da ocupação profissional ou da função exercida pelos contribuintes, independentemente da denominação jurídica dos rendimentos, dos títulos ou dos direitos. (Sindifisco Nacional, 2010).
Essa falta de isonomia criou uma situação esdrúxula no país, com um número relativamente reduzido de contribuintes apresentando elevada renda tributável. Análise realizada por Gobetti e Orair (2015), com base na publicação da Receita Federal denominada “Grandes números do IRPF”,7 compara como as distintas rendas que se distribuem na sociedade e mostra como a desigualdade leva a números surpreendentes de injustiça tributária.
Em 2013, 71.440 declarantes estavam no topo da pirâmide de renda no país, com rendimento igual ou maior que 160 salários mínimos, o que correspondia a R$ 108.480,00 mensais. Esses declarantes representavam 0,3% do total de pessoas que prestaram informações ao Fisco, ou aproximadamente 0,05% da população economicamente ativa (Gobetti e Orair, 2015).
Em 2013, essas pessoas tinham um “patrimônio líquido de R$ 1,2 trilhão (23% do total) e uma renda total de R$ 298 bilhões (14% do total), dos quais R$ 196 bilhões em rendimentos isentos e R$ 64,5 bilhões em rendimentos tributados exclusivamente na fonte” (Gobetti; Orair, 2015, p. 15).
Somente cerca de 1/3 desses indivíduos pagam algum imposto de renda; 2/3 são isentos. A média da alíquota paga equivale a 2,6% sobre a renda total. Isso é uma consequência direta da isenção de imposto de renda sobre lucros e dividendos: desses 71.440 declarantes, 51.419 receberam dividendos e lucros, isentos de imposto de renda (Gobetti e Orair, 2015).
Estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea, 2011) confirma a elevada regressividade do sistema tributário brasileiro: os 10% das famílias mais pobres do Brasil destinam 32% da renda disponível para o pagamento de tributos, enquanto o peso dos tributos cai para 21% da renda dos 10% mais ricos.
O estudo do Ipea é baseado na Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF) de 2008-2009 do IBGE e apresenta resultados consistentes para a incidência dos tributos indiretos nos primeiros décimos de renda. No caso dos tributos indiretos, a avaliação se baseia na renda disponível, já descontados os tributos diretos.
Por isso não surpreende que a BBC Brasil (14/03/2014) tenha noticiado que “rico é menos taxado no Brasil do que na maioria do G20”.8 O texto da jornalista Mariana Schreiber destaca que a elite brasileira costuma reclamar dos impostos, mas sua queixa não procede na comparação internacional, pois os mais pobres é que financiam o Estado brasileiro.
A reportagem publicada pela BBC Brasil foi feita a partir do levantamento da PricewaterhouseCoopers (PWC) realizado em dezenove países que integram o G20 (grupo que reúne as dezenove maiores economias do mundo mais a União Europeia) e concluiu que os brasileiros pagam menos imposto de renda que os cidadãos dos países do G20.
Esse sistema tributário onera a população de baixa renda, que suporta uma elevada tributação indireta. Além disso, os impostos diretos têm baixa progressividade e incidem fortemente sobre a renda dos trabalhadores.

quinta-feira, 27 de outubro de 2016

Injustiça fiscal à brasileira: eis o gráfico da desigualdade

Olá alunos, 
A notícia de hoje procura explicar como os mais ricos, que um dia foram obrigados a contribuir efetivamente com serviços públicos, livraram-se pouco a pouco dessa contribuição, a partir da ditadura.
Esperamos que gostem e participem.
Palloma Borges, monitora da disciplina "Economia Política e Direito". 
Desde as primeiras sistematizações mais acuradas sobre o funcionamento da economia, ainda no século XVIII, preconiza-se que os tributos devem ser proporcionais à renda dos indivíduos. Naquela mesma época, ministros de Estado que propunham tal configuração eram desalojados de seus postos por forças refratárias a essa perspectiva, como ocorreu com Anne Robert Jacques Turgot.
No Brasil Império, houve a primeira experiência de um imposto sobre a renda dos brasileiros. As alíquotas progressivas variavam entre 2% e 10% sobre os rendimentos dos servidores públicos. Somente em 1922, após amplos debates, a proposta de um real e definitivo imposto sobre a renda foi aprovada no Congresso Nacional, passando a vigorar em 1923.
O imposto de renda brasileiro nasceu com alíquotas progressivas relativamente baixas, uma mínima de 0,5% e uma máxima de 8%. Como em outros países, houve um processo de ampliação da quantidade de alíquotas e elevação dessas à medida que mais serviços foram absorvidos pelos Estados nacionais e regionais.
Em 1961, o então presidente Jânio Quadros modificou a alíquota máxima de 50% para 60% dos rendimentos. Um ano depois, já no governo de João Goulart, a alíquota máxima subiu para 65%, alcançando o maior percentual histórico. O tributo contava com 14 faixas de alíquotas progressivas, as quais iniciavam em 3%.
Nos governos militares ocorreu o primeiro aceno para a estagnação e, posteriormente, para a redução da progressividade tributária. Uma das medidas desses governos foi a diminuição da alíquota máxima do imposto de renda concernente às pessoas físicas para 55% e depois para 50% dos rendimentos. Outra atitude tomada foi a redução de 14 para 12 faixas de rendas tributadas, número que permaneceu durante a maior parte do regime militar.
A partir da égide da liberalização financeira, na década de 80, assentou-se a concepção de que a renda deveria ser tributada linearmente, ao passo que o capital deveria ser desonerado para atrair fluxos de investimentos. Tais transformações fizeram os impostos sobre a renda e sobre o capital caírem drasticamente.
A Constituição de 1988 ampliou o Estado Social, mas as transformações, do ponto de vista da arrecadação, foram regressivas. Uma das primeiras mudanças foi a redução de oito para duas faixas de imposto de renda. Já a alíquota máxima saiu de 45% para 25%.
Antes de 1995, o País tributava os dividendos de forma linear e exclusivamente na fonte, com uma alíquota de 15%, independentemente do seu volume. Em 1996, com a aprovação da Lei n.º 9.249, a distribuição dos lucros e dos dividendos às pessoas físicas passaram a ser isentas.
A divulgação dos dados de imposto de renda ocorrida recentemente tornou factível a mensuração das disparidades geradas pelo tratamento diferenciado dos rendimentos. Na medida em que os dividendos são isentos de impostos, os segmentos de renda mais elevados da sociedade contribuem proporcionalmente menos ao erário.
O gráfico explicita que a base de rendimentos tributáveis de 2013 passa a cair para os indivíduos que receberam mais do que três salários mínimos. Inversamente, os rendimentos isentos passam a se elevar a partir dessa faixa. O pico de isenção de rendimentos em relação à renda é para quem recebeu entre 240 e 320 salários mínimos (R$ 162.720,00 e R$ 216.960,00). Ficaram imunes de impostos 68,81% das receitas desses indivíduos.
Como consequência, o imposto devido em relação à renda cresce até a faixa de quem recebe de 30 a 40 salários mínimos e depois passa a recuar, conforme explicitado também no gráfico. Os rendimentos isentos de 2013 alcançaram R$ 636,39 bilhões, sendo R$ 231,30 bilhões referentes a lucros e dividendos distribuídos, enquanto o imposto devido total de todos os declarantes foi de R$ 115,24 bilhões, ou seja, abaixo do valor dos rendimentos isentos.

Cabe destacar que as isenções de dividendos beneficiaram 2,1 milhões de pessoas, dentre elas as 20,9 mil mais ricas do Brasil (0,01%), que possuem patrimônio médio de R$ 40 milhões e que pagaram de imposto 1,56% de sua renda total.
Chama atenção também, nas declarações de imposto de renda, o volume de subsídio existente em relação aos gastos privados com saúde e educação. No mesmo ano em análise, as despesas declaradas chegaram a R$ 69,35 bilhões, 60,18% do imposto devido total, ponderando-se que a dedução não é integral. Adicionalmente, verifica-se que as alíquotas de imposto brasileiras são relativamente menores, seja na comparação com os países desenvolvidos, seja com os demais países da América Latina.
Com a estratificação da contribuição de imposto de renda por faixas de salário mínimo, fica explícito que as alterações na legislação tributária auxiliam a consolidar um quadro de elevada concentração de renda, com destaque para a isenção de impostos sobre os lucros e dividendos e para o subsídio que o Estado concede aos gastos privados em saúde e educação às famílias mais ricas do País.

sábado, 22 de outubro de 2016

A crise não tem fim

Olá alunos, 

A notícia de hoje vem discutir a questão da famigerada crise que arrasta os seus efeitos por inúmeros países ao redor do mundo. O texto procura mostrar que as mesmas medidas que causam esse colapso são aquelas que acabam por eternizá-lo. 

Esperamos que gostem e participem. 
Palloma Borges, monitora da disciplina "Economia Política e Direito" da Universidade Federal Fluminense.

A quebra do banco de investimentos Lehman Brothers, em Nova York, completou oito anos na quinta-feira 15 sem sinais claros de recuperação da economia. O oposto é verdadeiro. Uma semana depois do infausto aniversário, a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) reviu para baixo, em 0,1 ponto porcentual, as projeções de crescimento mundial deste ano e de 2017, para 2,9% e 3,2%, respectivamente. O volume do comércio global diminuiu no primeiro trimestre e ficará aquém da expansão da produção até dezembro. 
O PIB dos Estados Unidos deverá aumentar só 1,4% em 2016, abaixo do 1,8% estimados em junho. No caso da área do Euro, a previsão caiu 0,1 ponto, para 1,5%. Em relação ao Japão, a estimativa baixou também em 0,1 ponto, para 0,6%. A OCDE reduziu ainda sua expectativa para o PIB do Reino Unido em 2017, em 1 ponto porcentual, para 1%, após a saída da União Europeia.
Iniciada nos Estados Unidos, a crise arrasta os países emergentes, mas a derrocada solapa também o princípio da moe­da universal, o próprio dólar estadunidense, adverte Michel Aglietta, da Universidade de Paris X. “A moeda-chave assegura a independência da política monetária dos EUA, mas provoca efeitos sobre o resto do mundo. É como se eles dissessem: ‘O dólar é a nossa moeda, mas o problema é seu’”, chama a atenção o economista.
A compra intensiva de títulos públicos pelos bancos centrais, o chamado Quantitative Easing, introjetou 4 trilhões de dólares na economia mundial, aumentou a dívida dos emergentes e intensificou o fluxo de capitais e as interações financeiras cruzadas, ampliadas com a abertura financeira chinesa, explica o professor. 
Esse contexto levou a uma mudança de comportamento e da política do Federal Reserve (Fed), o banco central dos Estados Unidos. "As atas do Comitê de Mercado Aberto do Fed revelam uma divisão entre seus membros, relacionada aos indicadores domésticos e a uma preocupação quanto às tensões nos mercados financeiros globais", aponta o professor francês.
Essa é a explicação para as hesitações sem fim em subir a taxa de fundos do Fed, apesar de as condições internas justificarem a medida. Para o renomado autor de tratados sobre as crises e os sistemas monetários, a situação da economia deveria levar à revisão da política de metas inflacionárias: “O ciclo de apreciação do dólar cria pressões de preços que impedem o retorno da inflação para a meta e gera uma interrogação sobre a validade da meta num contexto persistente de crescimento lento e de pressões baixistas globais sobre os preços”.sse contexto levou a uma mudança de comportamento e da política do Federal Reserve (Fed), o banco central dos Estados Unidos. “As atas do Comitê de Mercado Aberto do Fed revelam uma divisão entre seus membros, relacionada aos indicadores domésticos e a uma preocupação quanto às tensões nos mercados financeiros globais”, aponta o professor francês.
A conclusão de Aglietta extingue as esperanças daqueles que acreditam em uma solução para a crise atual sem controle de capitais e uma coordenação monetária internacional: “Com os fluxos de capitais internacionais completamente desconectados do comércio internacional, a natureza da globalização atual está em xeque e a coordenação monetária multilateral é uma questão que se coloca”.
Para sair do encalacramento, é preciso entender como se chegou a ele, ensinam os economistas Dirk Bezemer, da Universidade de Groningen, na Holanda, e Michael Hudson, das universidades do Missouri, nos EUA, e de Pequim, na China. Fazer as perguntas corretas é fundamental.
“Por que as economias se polarizaram tão agudamente desde os anos 1980 e, em especial, a partir da crise de 2008? Como nos tornamos tão endividados sem elevações do salário real e dos padrões de vida, enquanto cidades, estados e nações inteiras quebraram?” Só quando respondermos a essas questões, dizem, poderemos formular políticas para sair das atuais crises da dívida. 
Predomina, entretanto, uma profunda confusão sobre a “moldura teórica” que deve guiar a análise da economia pós-bolha. A gestão macromonetária – e a teoria e a ideologia subjacentes – nos últimos 25 anos foi elogiada pelos principais macroeconomistas.
Oliver Blanchard, economista-chefe do FMI, Ben Bernanke, ex-presidente do Fed, e Gordon Brown, ex-ministro das Finanças do Reino Unido, atribuíram suas próprias políticas monetárias à inflação extremamente baixa e ao crescimento estável, um cenário que batizaram de “A Grande Moderação”, e proclamaram o fim das bolhas econômicas e das suas explosões. 
“O que aconteceu, entretanto, foi precisamente que o período de meados dos anos 1980 até 2007 mostrou a maior e mais corrosiva inflação de imóveis, ações e títulos desde a Segunda Guerra Mundial”, diagnosticam Bezemer e Hudson.
Quase toda essa inflação de preços de ativos foi alavancada por endividamento, mas o dinheiro e o crédito não foram gastos em investimentos de capital tangíveis para produzir bens e serviços não financeiros. “Os modelos macroeconômicos de ponta desde os anos 1980 não incluem crédito, débito ou o setor financeiro. Na verdade, o que houve foi uma criação imoderada de dívida por trás da ‘Grande Moderação’, que transformou essa economia em uma ‘Grande Polarização’ entre credores e devedores.”
Essa expansão financeira, explicam os economistas, assumiu a forma de “mais extração de renda do que obtenção de lucros da produção, um fato omitido na maior parte das análises de hoje”.  
Quem acreditou na suposta superioridade da economia que substituiu o modelo baseado na indústria, predominante até os anos 1980, chamada erroneamente de pós-industrial, enganou-se redondamente, a crer na interpretação de ambos. Mais grave: esse equívoco orienta as decisões.
O sistema financeiro, dizem, determina que tipo de condução da indústria e da economia nós teremos. Os executivos e os gestores de dinheiro e fundos buscam principalmente retornos financeiros para eles mesmos, os proprietários e seus credores.
O principal objetivo é gerar ganhos de capital com a utilização dos lucros para recomprar ações e pagar-lhes dividendos, enquanto se força a extração de lucros mais elevados pela redução e terceirização do trabalho e o corte de projetos de investimentos com longo prazo de maturação.
Em resumo, os lucros são usados para pagar os juros, não reinvestir na formação de novo capital tangível ou contratação de mão de obra. No devido tempo, a ameaça de falência é utilizada para transferir as perdas aos consumidores e aos trabalhadores. 

Diante do estrago produzido na economia pelas ideias dominantes, não surpreende a confusão de algumas análises de líderes mundiais. Após a recente reunião dos países do G-20 na China, o presidente Barack Obama autoelogiou o governo americano por disciplinar o sistema financeiro, um suposto aumento dos controles que não explica o ressurgimento recente de derivativos “tóxicos”, instrumentos essenciais ao agravamento da crise.

O irascível ministro das Finanças da Alemanha, Wolfgang Schäuble, depois de um encontro com chefes de Estado na Grécia, disse que os encontros de líderes de partidos socialistas “não produzem nada terrivelmente inteligente”.
De uma perspectiva europeia, “nada terrivelmente inteligente surgiu da ação de Schäuble e seus aliados nos últimos oito anos. A austeridade foi um fracasso colossal, a crise financeira continua na Europa, a União Europeia perde terreno para o nacionalismo populista e o continente caminha para uma desestabilização ainda maior”, critica Leonardo Costa, da Faculdade de Economia do Porto, em Portugal.  
No Brasil, entretanto, o governo pressiona pela aprovação do mais severo e mais longo plano de austeridade do mundo, de costas para as lições dos países bem-sucedidos. “As realidades passadas nos ensinam que depender meramente de políticas fiscais e monetárias não funciona para a economia mundial”, salientou o primeiro-ministro da China, Xi Jinping, na reunião do G-20. O grupo aprovou a adoção de rotas de crescimento sustentável no longo prazo, caracterizadas pela inovação e pela inclusão.

sábado, 15 de outubro de 2016

Estratificação centílica de renda e de patrimônio dos declarantes de imposto de renda no Brasil


Olá alunos, 

A notícia de hoje mostra que pesquisas explicitam que a desigualdade no Brasil é muito maior do que se imaginava, e embora a elite tente velar essa realidade, a questão da desigualdade pesa muito menos para o lado das classes mais abastadas. 

Esperamos que gostem e participem.
Palloma Borges, monitora da disiciplina "Economia Política e Direito" da Universidade Federal Fluminense. 

A ampliação da transparência das declarações de imposto de renda à Receita Federal do Brasil facilitou a mensuração das disparidades no rendimento e no patrimônio dos brasileiros. Anteriormente, os dados disponíveis advinham de surveys como a Pesquisa Nacional de Amostra por Domicílio (PNAD) ou a Pesquisa de Orçamento Familiar (POF). Sabidamente, a renda dos mais ricos está subestimada nessas pesquisas, uma vez que esses tendem a omitir sua receita quando questionados.

Já as declarações de imposto de renda são mais precisas. Há que ponderar que, em muitos casos, os bens imóveis declarados possuem defasagem de avaliação. Além disso, uma parcela do patrimônio está contabilizada em pessoas jurídicas. Por fim, a renda e o patrimônio podem não ser plenamente declarados. De todo modo, esses são os melhores dados disponíveis, mesmo que se restrinjam as 27 milhões de pessoas que declaram imposto de renda.

A partir desses dados, foram estabelecidos intervalos decílicos e centílicos. Ou seja, as análises abaixo utilizam o universo dos dados em intervalos de cem partes iguais, fragmentação centílica, ou em dez partes iguais, análise decílica. Isso quer dizer que o 1º centil se refere ao 1% com menores dados e o 8º decil se refere ao intervalo entre os 70% inferiores e os 20% superiores.

Outro esclarecimento metodológico relevante, antes de observar os resultados, se refere às tipificações de renda. Os rendimentos das pessoas físicas recebem tratamentos tributários diferenciados. Os “rendimentos tributáveis” são majoritariamente compostos por rendimentos do trabalho, embora tenha também rendimento de propriedade, como por exemplo, alugueis. Já os “rendimentos tributados exclusivamente na fonte” e “rendimentos isentos” são compostos majoritariamente por rendimentos do capital, como aplicações financeiras, lucros, dividendos, embora esteja incluso também rendimento do trabalho, como o 13º salário. A soma desses três tratamentos tributários será chamada de “rendimento total” neste texto.

No gráfico abaixo é possível observar que a média de rendimentos se eleva de maneira expressiva nas últimas faixas, sobretudo a partir do 96º centil, cuja taxa de variação do rendimento médio em relação ao imediatamente anterior é de 11,12%, chegando a 20,69% no 98º centil e 148,87% no último centil, enquanto nas faixas intermediárias a taxa de variação fica em torno de 4%. Cabe destacar que o último centil se refere aos mais ricos entre os declarantes e não em relação à população total. Como o gráfico está em R$ 1.000,00; a última faixa retrata renda média acima de R$ 1 milhão.

Gráfico 1 – Rendimento médio total dos declarantes por intervalos centílicos – R$ mil – Brasil - 2014

Fonte: Receita Federal do Brasil
Assim como na segmentação centílica, a repartição decílica do 1% mais rico entre os declarantes passa a elevar de forma mais significativa a partir do 6º decil, com uma taxa de variação de 12,31%, chegando a 30,91% no 9º decil e a 226,63% no último decil, cujo rendimento médio de cada declarante chega a R$ 3.879.300,00. Embora os declarantes permaneçam anônimos, é possível identificar que o declarante que obteve o maior rendimento em 2014 informou ter recebido R$ 1.071.215.915,10 (um bilhão) entre rendimentos tributáveis, dividendos e rendimento sujeito à tributação exclusiva.

Gráfico 2 – Rendimento médio total dos declarantes por intervalos decílicos do último centil – R$ mil – Brasil - 2014

Fonte: Receita Federal do Brasil
A exposição das declarações de bens e direitos é também importante para um entendimento mais acurado do Brasil. Embora muitos desses bens não sofram atualização na base de dados da Receita Federal, como os imóveis, outros são atualizados anualmente, como as aplicações financeiras, por exemplo. Esses dados podem servir como proxy de riqueza. Embora não haja apenas um indicador de riqueza, a consideração do acúmulo pregresso de bens móveis e imóveis, dinheiro, companhias entre outros bens declarados no imposto de renda pessoa física conformam a estimativa mais exata que existe. No que concerne aos bens e direitos, é possível observar uma elevação acentuada nos quatro últimos centis. Na repartição decílica do último centil, a variação mais acentuada se dá nos últimos dois: 54,12% e 241,14%, respectivamente.

Gráfico 3Média patrimonial dos declarantes de imposto de renda por centis - R$ milhões - Brasil - 2014

Gráfico 4  Média patrimonial do último centil dos declarantes de imposto estratificada por decis- R$ milhões - Brasil - 2014

Antes de 1995, o País tributava os dividendos de forma linear e exclusiva na fonte, com uma alíquota de 15%, independentemente do seu volume. Em 1996, com a aprovação da Lei nº 9.249, os lucros ou dividendos passaram a ser isentos. Na medida em que os dividendos são isentos de impostos, os segmentos mais elevados da sociedade contribuem menos ao erário. Os rendimentos isentos de 2014 alcançaram R$ 733,6 bilhões, enquanto o imposto devido total de todos os declarantes foi de R$ 128,83 bilhões, ou seja, bastante abaixo do valor dos rendimentos isentos. Cabe destacar que as isenções de dividendos beneficiou 2,1 milhões de pessoas, dentre elas as 20,9 mil mais ricas do Brasil (0,01%), as quais possuem patrimônio médio de R$ 40 milhões.

Chama atenção também, nas declarações de imposto de renda, o volume de subsídio existente aos gastos privados em saúde e em educação. No mesmo ano em análise, as despesas declaradas chegaram a R$ 76,78 bilhões, 59,6% do imposto devido total, ponderando-se que a dedução não é integral. Adicionalmente, verifica-se que as alíquotas de imposto brasileiras são relativamente menores, seja na comparação com os países desenvolvidos, seja com os demais países da América Latina, conforme já exposto em textos anteriores.

Os dados acima explicitam que a desigualdade no Brasil é maior do que se imaginava, com uma discrepância grande daqueles declarantes que figuram entre o 1%, o que corresponde a 0,13% mais ricos da população total. Ressalta-se ainda que esses declarantes possuem expressivos rendimentos isentos de impostos, ou seja, lucros e dividendos. Desde as primeiras sistematizações mais acuradas sobre o funcionamento da economia, ainda no século XVIII, se preconiza que os tributos devem ser proporcionais à renda dos indivíduos. No Brasil há muito a avançar nessa temática.
  

terça-feira, 11 de outubro de 2016

A mutação da grande empresa

Olá alunos, 

A notícia de hoje mostra que algumas grandes empresas de outrora desapareceram, mas outras continuam firmes e fortes e surgiram novas espécies. 

Esperamos que gostem e participem.
Palloma Borges, monitora disciplina "Economia Política e Direito" da Universidade Federal Fluminense. 

Grandes corporações industriais marcaram a vida econômica do século XX, era do automóvel, do petróleo e dos bens de consumo. Frequentemente longe da ribalta, elas induziram hábitos, mudaram comportamentos, influenciaram a dinâmica econômica e ajudaram a moldar políticas públicas.
O papel das grandes corporações é polêmico. Os governos disputam seus investimentos, de olho em impostos e empregos. Sem elas, a chance de um país se desenvolver é pequena. Por ganância, soberba ou simples incompetência, entretanto, às vezes elas se envolvem em desastres ambientais, fraudes financeiras e escândalos políticos. 
Nos últimos anos, cronistas de variadas atitudes e latitudes passaram a vaticinar sua debacle. É certo que as mudanças econômicas ocorridas desde os anos 1980 fizeram vítimas. Muitos mamutes que dominaram a paisagem durante décadas não se adaptaram aos novos tempos e desapareceram. Entretanto, alguns se reinventaram e outros sobreviveram na forma de estatais e congêneres, seu anacronismo pago por contribuintes sem escolha.
No livro The Vanishing American Corporation: Navigating the hazards of a new economy (editora Berrett-Koehler, 2016), Gerald F. Davis mostra como os gigantes do passado estão cedendo espaço a uma nova onda de megaempresas, maiores e mais valiosas que suas antecessoras, porém baseadas em modelos de negócios que prescindem de grandes contingentes de empregados.
No prefácio da obra, Davis informa que patologias sociais contemporâneas, tais como o aumento da desigualdade, a baixa mobilidade, a deterioração das redes sociais de proteção e o domínio da política pelos mais ricos estão relacionados ao declínio das corporações. Segundo o autor, as corporações foram capazes de garantir emprego para universitários, em seus escritórios, e para operários, em suas linhas de produção. E as carreiras oferecidas eram longas e relativamente seguras. Não mais. Com as reestruturações, enxugamentos e cortes de níveis hierárquicos, desapareceram as carreiras. Agora, com o amadurecimento das tecnologias de comunicação e de informação, estão desaparecendo os empregos.
Davis lembra que a paisagem corporativa mudou substantivamente nas últimas décadas. Alguns gigantes empresariais faliram, outros foram divididos, fundidos ou transformados. Os novos membros do seleto grupo de grandes corporações são mais ágeis, valiosos e têm quadros extremamente enxutos. Trocaram folhas de pagamento caras e funcionários sindicalizados por subcontratados e “parceiros”, seres de poucos direitos e muitos deveres.
Profissionais com formação superior têm hoje três opções: a primeira é concorrer às raras e cobiçadas vagas corporativas; a segunda, tentar a sorte no empreendedorismo, construindo algo de valor para depois vender a uma empresa maior; e a terceira é seguir uma existência precária, combinando trabalho eventual com horas-trânsito, a soldo do Uber ou equivalente. Para aqueles sem formação superior, as alternativas são ainda mais restritas e menos atraentes. É o mundo do precariado.
No início do século XX, as corporações emergentes foram identificadas como fontes de prosperidade e, por causa de seu porte e poder, como verdadeira ameaça à democracia. Procurou-se, em nome do bem comum, domesticá-las. O sucesso foi relativo. Agora o desafio se renova, com uma onda de corporações que trazem novos modelos de negócio, novas tecnologias e novos discursos.
Justin Fox, do portal Bloomberg, notou que, como Davis, muitos observadores vêm prevendo o desaparecimento das grandes corporações. De fato, os sinais de mudança na paisagem corporativa são notáveis. Entretanto, informa o autor, com base em levantamento quantitativo, ainda existem muitas empresas grandes, com dezenas, ou até centenas, de milhares de empregados. E elas continuam crescendo.
O fato é que o ambiente corporativo segue em modo de destruição criativa. Alguns gigantes de outrora desapareceram, mas outros continuam firmes e fortes, e surgiram novos e diferentes animais na floresta. Cabe retomar as preocupações que despertaram a atenção de alguns legisladores do início do século XX. Em nome do bem comum, eles procuraram criar condições para viabilizar a vida dos mostrengos e o chamado espírito animal de seus empreendedores, mas ficaram atentos aos seus desvios e excessos. 

segunda-feira, 3 de outubro de 2016

Vamos para uma nova revolução industrial: assim será



Olá alunos,

A notícia de hoje mostra que a concentração de inovações científicas e técnicas deram lugar a um novo abalo no mercado mundial. Diante disso, é possível afirmar que o próximo triênio será mais decisivo que os 50 anos anteriores.

Esperamos que gostem e participem.
Palloma Borges, monitora da disciplina “Economia Política e Direito” da Universidade Federal Fluminense.

Assistimos a uma nova revolução industrial. Os avanços tecnológicos e científicos se sucedem a uma velocidade vertiginosa. Seu impacto não se limita a melhorar os produtos e serviços existentes; o processo inovador atual tem um caráter disruptivo, ou seja, está alterando as regras de jogo em múltiplos âmbitos. A robotização em grande escala, o big data, os smartphones, as finanças cibernéticas, a Internet das coisas, o sequenciamento do genoma humano, o bitcoin, as energias limpas, as plataformas digitais de trocas entre particulares... Em menos de uma década, o mundo assistiu a tamanha enxurrada de novidades que o resultado é uma transformação radical de muitos setores com a entrada de novos concorrentes.
“Ao longo da história houve muitos momentos disruptivos graças aos avanços técnicos. A diferença do momento atual é a velocidade com que as mudanças se sucedem, num ritmo jamais visto”, diz João Saint-Aubyn, especialista da consultoria Roland Berger, que participou recentemente de uma série de jornadas organizadas pelo programa de fomento empresarial Cre100do, da Espanha. A primeira Revolução Industrial trouxe inovações mecânicas como a máquina a vapor e a ferrovia; a segunda abrangeu a produção em massa através da eletrificação; a terceira popularizou os computadores e a Internet. “Agora estamos às portas da quarta Revolução Industrial, que seria caracterizada pela conectividade dos aparelhos, as comunicações móveis, as redes sociais e a inteligência artificial. Trata-se de uma época em que as barreiras entre o mundo físico e o digital são mais confusas, e o consumidor está sempre conectado”, descreve Guillermo Padilla, sócio-diretor de Consultoria de Gestão da KPMG Espanha.
Um dos traços característicos do momento disruptivo atual é que se trata de uma revolução principalmente no âmbito da informação. Os dados são o ingrediente essencial das empresas e da economia. “Essa é a diferença: não é um projeto, processo ou inovação tecnológica simples. Na verdade, está sendo gerado há anos, primeiro com a informatização de processos, e depois com a Internet. Agora o que acontece é que todos esses avanços tecnológicos se democratizaram, e isso os torna globais, poderosos e, em muitos aspectos, ainda incertos sobre quem ganhará em cada setor, com quais tecnologias e com quais avanços”, diz Santiago Carbó, catedrático de Economia da Universidade Bangor (Reino Unido) e pesquisador do think tank espanhol Funcas.
Uma das consequências econômicas de tanta inovação disruptiva é que o eixo do sistema se desloca da oferta para a demanda. Os consumidores assumiram o controle nas relações comerciais. Além disso, há uma mudança sociológica, quase cultural, pela qual está sendo abandonada a ideia burguesa de que a melhor forma de demonstrar um determinado status é com a posse de objetos materiais. Esses dois fatores, junto com desenvolvimento tecnológico de plataformas digitais que colocam consumidores em contato uns com os outros, estão por trás do fenômeno da economia colaborativa. Os especialistas da PwC preveem que os ganhos da chamada economia compartilhada saltarão dos atuais 15 bilhões de dólares (48 bilhões de reais) para 335 bilhões (1 trilhão) em 2025.
O intercâmbio de bens e serviços entre particulares está colocando contra as cordas as empresas tradicionais de setores como turismo, transporte, entretenimento, finanças e música. O Airbnb, por exemplo, oferece três vezes mais leitos do que o maior dos grupos hoteleiros, e a Uber, em apenas cinco anos de vida, se tornou a maior rede de transportes do mundo.

Apoio milionário

Os especialistas acreditam que a força da economia colaborativa acabará se refletindo em outros setores, como material esportivo, joalheria, têxteis e calçados. “As empresas da economia compartilhada recebem mais financiamento do capital de risco do que qualquer outra atividade, superando as redes sociais nos últimos anos. Desde 2009 elas captaram 23 bilhões de dólares (73,4 bilhões de reais) em financiamentos. Esse respaldo econômico cria uma força disruptiva em numerosos setores”, observa Solange Le Jeune, analista da gestora de fundos Schroders.
As empresas tradicionais não conseguem acompanhar o ritmo, porque os gostos dos seus clientes mudaram, e os novos competidores não são os tradicionais, e sim recém-chegados com DNA 100% digital. Um evidente campo de batalha dessa agitação transformadora é o setor financeiro. O crescimento do crowdfunding –o Banco Mundial estima que as vaquinhas digitais movimentarão 90 bilhões de dólares (287 bilhões de reais) em 2020– e o desenvolvimento do setor fintech (empresas tecnológicas que prestam serviços financeiros) geram uma pressão sobre os bancos tradicionais. “A disrupção é algo traumático porque acarreta uma transformação profunda. No setor financeiro, a combinação de diferentes fatores está gerando uma ruptura na cadeia de valor”, admite Álvaro Martín, chefe de regulação digital do BBVA Research, durante sua palestra no evento do Cre100do. “É preciso escutar os millennials, inclusive copiar o que outras empresas fizeram com sucesso. São necessários uma mudança de cultura e um pouco de humildade, porque uma mudança tão profunda você não consegue fazer sozinho”, acrescenta o executivo bancário.
O investimento em novas tecnologias relacionadas ao setor financeiro cresceu de maneira exponencial nos últimos anos, passando de 1,8 bilhão de dólares em 2010 para 19 bilhões em 2015 (de 5,7 para 60,6 bilhões de reais, pelo câmbio atual). A maior parte desse dinheiro se concentra por enquanto na área de pagamentos. Apesar de tanto investimento e da contínua especulação sobre a extinção dos bancos, até agora apenas 1% dos lucros dos bancos de varejo migrou para modelos digitais. “Embora as companhias de fintech tenham vantagem em tudo o que é relativo à inovação, os bancos tradicionais ainda têm a sua escala a seu favor. Não chegamos ao ponto de inflexão da disrupção digital. Entretanto, dado o crescimento do investimento em fintech, esta situação não vai continuar por muito tempo”, alertou Kathleen Boyle, analista do Citi, em um relatório.
A indústria automobilística é outro setor exposto a uma profunda transformação graças aos avanços tecnológicos. O Barclays calcula que a demanda por carros poderia cair até 40% em médio prazo. “Muitos jovens não precisam carro. Um veículo compartilhado pode substituir oito carros individuais. O conceito de mobilidade sob demanda, o uso do veículo entre várias pessoas e a condução automática já estão colocando o setor à prova, ao romper a cadeia de valor”, salienta Saint-Aubyn.

Mortalidade empresarial

A disrupção tecnológica teve um primeiro impacto visível: a longevidade média das empresas caiu em dois terços nos últimos 50 anos. Além disso, é cada vez mais efêmera a liderança de uma companhia na classificação global de lucros ou faturamento, devido ao encurtamento dos ciclos de inovação. “Uma empresa que não assumir sua transformação profunda e permanente como ferramenta fundamental para assegurar a competitividade perante a globalização dos mercados não poderá manter sua posição de liderança”, observam os autores do estudo intitulado Setores da Nova Economia, publicado pela Universidade Politécnica de Madri.
As companhias tradicionais costumam ter dois tipos de reação quando ameaçados por novos competidores digitais. A primeira é pressionar os Governos para que imponham barreiras de entrada. Os especialistas consultados, entretanto, acreditam que é impossível instalar porteiras no mercado. “Enganam-se aqueles que querem reagir à inovação com mais regulação. As normas nunca solucionaram nada em momentos de mudança, exceto aquelas que serviram para garantir a saúde e as condições de vida dos trabalhadores”, recorda Josep Valor, professor de Sistemas da Informação da escola de administração IESE, em Madri.
A outra reação das empresas da velha economia tem sido aplicar o axioma que recomenda se unir ao inimigo quando não for capaz de derrotá-lo. Em outras palavras, sacar o talão de cheques e comprar (a preço de ouro) start-ups que possam futuramente lhes fazer sombra. “Haverá fusões, aquisições, joint ventures... Mas atenção, comprar uma empresa por si só não vale nada, o que traz a disrupção é tudo o que vem depois. O importante é modificar a cultura e gerar um ambiente onde o talento possa emergir”, avisa Carlos Emilio Gómez, diretor do Waze Europe, uma empresa do Google.
A inovação disruptiva que estamos observando afeta não só as empresas como também numerosas variáveis econômicas, da produtividade ao déficit público, passando pelo nível de emprego e os índices de crescimento. “A transformação digital que vivemos poderia ser comparada à transição de uma sociedade agrária para uma sociedade industrial”, dizem os especialistas da consultoria Pioneer num relatório titulado Investir em um Mundo Disruptivo.
Funcionários dessa gestora de recursos recordam que a economia mundial atravessa um momento onde a maior parte dos países sofre um excesso de endividamento. Uma possível solução para reduzir essa pesada carga seria aumentar o ritmo de crescimento e, assim, reduzir o montante da dívida em relação ao PIB. Outra saída seria gerar inflação. No entanto, muitas das inovações que estão sendo implantadas são altamente desinflacionárias. “Os objetivos de preços se popularizaram nos anos setenta, depois da crise petroleira, para dar aos agentes econômicos alguma certeza. Muitos bancos centrais têm como meta situar a inflação em menos de 2%, mas devemos nos expor se essas finalidades continuam a ser relevantes”, explicam fontes da Piooner.
Aqueles que sustentam a tese de que, depois da crise financeira, a economia mundial entrou em uma fase de estancamento secular - caracterizada pelos baixos níveis de crescimento e de incremento dos preços-, defendem, também, que as inovações que estão sendo desenvolvidas não têm o mesmo poder de gerar crescimento que os anteriores avanços tecnológicos, como a máquina à vapor ou a automação. “O paradoxo dessa grande transformação é que não parece que, de momento, haverá mudanças suficientes para falar de uma revolução econômica clássica, com o aumento de ofertas de emprego e grandes expansões. É, melhor dizendo, uma enorme mudança qualitativa que afetará cada indústria conforme a tecnologia seja imposta ou adotada. Ao mesmo tempo, nas economias avançadas, muitos cidadãos enfrentam uma perda de qualidade em seus empregos e maiores desigualdades. O ajuste não vai ser singelo e muito menos cômodo”, admite Santiago Carbó.
O emprego é, sem dúvidas, uma das variáveis mais colocadas à prova com a concatenação dos avanços tecnológicos. É verdade que a inovação gerará uma demanda de profissionais em novos campos, mas desenvolvimentos como a robotização e a inteligência artificial têm um impacto evidente nas indústrias mais intensivas no que diz respeito ao uso de mão de obra. “A tecnologia deve ser entendida como um motor de crescimento. Em termos de postos de trabalho, por exemplo, a inovação não pode ser concebida como uma ameaça. De fato, em determinadas áreas, as novas ferramentas digitais podem substituir funções mais mecânicas, mas essa transformação resultará na necessidade de novos perfis profissionais, com outras qualificações”, conclui Guillermo Padilla, da KPMG.