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quarta-feira, 25 de setembro de 2019

Futuro promete colisões nas relações comerciais entre EUA e China


Olá alunos, 

A presente notícia ilustra o desfecho do enredo que já nos tempos de hoje se anuncia entre Estados Unidos e China.  

Esperamos que gostem e participem!
Lucas Pessôa é membro do Grupo de Pesquisa "Estado, Instituições e Análise Econômica do Direito" - GPEIA

Nos trabalhos elaborados para as reuniões que precederam as reformas de Bretton Woods em julho de 1944, John Maynard Keynes formulou a proposta mais avançada e internacionalista de gestão da moeda internacional. Baseado nas regras de administração da moeda bancária, o Plano Keynes previa a constituição de uma entidade pública e supranacional encarregada de controlar o sistema internacional de pagamentos e de provimento de liquidez aos países deficitários. Tratava-se não só de contornar o inconveniente de submeter o dinheiro universal às políticas econômicas do país emissor, como observamos agora, mas de evitar que a moeda internacional assumisse a função de perigoso agente da “fuga para a liquidez”.

As transações comerciais e financeiras seriam denominadas em bancor e liquidadas nos livros da instituição monetária internacional, a Clearing Union. Os déficits e superávits seriam registrados em uma conta corrente que os países manteriam na Clearing Union. No novo arranjo institucional, tanto os países superavitários quanto os deficitários estariam obrigados, mediante condicionalidades, a reequilibrar suas posições, o que distribuiria o ônus do ajustamento de forma mais equânime entre os participantes do comércio internacional. No Plano Keynes, não haveria lugar para a livre movimentação de capitais em busca de arbitragem ou de ganhos especulativos.


Em 1944, nos salões do hotel Mount Washington, na acanhada Bretton Woods, a utopia monetária de Keynes capitulou diante da afirmação da hegemonia americana que impôs o dólar, ancorado no ouro, como moeda universal.

Essas características do arranjo monetário realmente adotado em Bretton Woods sobreviveram ao gesto de 1971 (a desvinculação do dólar em relação ao ouro) e à posterior flutuação das moedas em 1973. Na esteira da desvalorização continuada dos anos 70, a elevação brutal do juro básico americano em 1979 derrubou os devedores do Terceiro Mundo, lançou os europeus na “desinflação competitiva” e culminou na crise japonesa dos anos 90. Na posteridade dos episódios críticos, o dólar fortaleceu-se, agora em obediência ao papel dos Estados Unidos como “demandantes e devedores de última instância”.

A crise dos empréstimos hipotecários e seus derivativos, que hoje nos aflige, nasceu e se desenvolveu nos mercados financeiros dos Estados Unidos. Na contramão do senso comum, os investidores globais empreenderam uma fuga desesperada para os títulos do governo americano.

A pretendida e nunca executada reforma do sistema monetário internacional, ou coisa assemelhada, não vai enfrentar as conturbações geradas pela decadência dos EUA. Vai, sim, acertar contas com os desafios engendrados pelas assimetrias de ajustamento provocadas pelo desarranjo da economia sino-americana, ancorada na força do dólar e no poder dos mercados financeiros dos Estados Unidos.

Impulsionado pela “deslocalização” da grande empresa dos EUA e ancorado na generosidade da finança privada do país, o processo de integração produtiva e financeira das últimas duas décadas deixou como legado o endividamento sem precedentes das famílias “consumistas” americanas, a migração da indústria manufatureira para a Ásia “produtivista” e os desregramentos do endividamento público nos países desenvolvidos.

A interdependência sino-americana não esgota seus efeitos no desequilíbrio comercial entre os dois países, mas avança suas consequências para a Ásia manufatureira e estende sua influência à África e à América Latina, não só como fontes provedoras de matérias-primas, mas como espaço de expansão de empresas chinesas que iniciam um forte movimento de internacionalização. Está claro que os chineses ensaiam cautelosa, mas firmemente a internacionalização do yuan ao ampliar a conversibilidade financeira e multiplicar rapidamente os acordos de troca de moedas (swaps) com seus parceiros comerciais mais importantes.

Não vai ser fácil para os americanos partilharem a liderança monetária com a China. Muitos argumentam que a política de inundação de liquidez destinada a adquirir, sobretudo, títulos de dívida de longo prazo (quantitative easing) em nada afetou sua utilização como moeda de denominação das transações comerciais e financeiras, a despeito do avanço do yuan nos negócios entre os países asiáticos e, provavelmente, agora nas transações entre os BRICS.

Seja como for, a crise demonstrou que a almejada correção dos chamados desequilíbrios globais vai exigir regras de ajustamento não compatíveis com o sistema monetário internacional em sua forma atual, aí incluído o papel do dólar como moeda reserva. Isso não significa prognosticar a substituição da moeda americana por outra moeda, seja o euro, seja o yuan, mas constatar que o futuro promete solavancos e colisões nas relações comerciais e financeiras entre as nações.


segunda-feira, 23 de setembro de 2019

Trump e Johnson se comprometem a "ambicioso" pacto comercial

Bildkombo Trump Johnson

Olá alunos, 

Trazemos hoje uma notícia que, além de demonstrar a aproximação entre as lideranças dos Estados Unidos e do Reino Unido, evidencia como acordos dessa natureza podem servir de argumento para fortalecer causas como o brexit. 

Esperamos que gostem e participem!
Lucas Pessôa é membro do Grupo de Pesquisa "Estado, Instituições e Análise Econômica do Direito" - GPEIA

O primeiro-ministro do Reino Unido, Boris Johnson, e o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, se comprometeram a negociar um "ambicioso" pacto comercial bilateral quando os britânicos deixarem a União Europeia (UE), informou neste sábado (27/07) um porta-voz do governo londrino.

"Os dois líderes expressaram seu compromisso de alcançar um ambicioso acordo de livre-comércio e iniciar as negociações o mais rápido possível depois que o Reino Unido deixar a UE", afirmou o porta-voz.

"Eles concordaram que o Brexit [saída britânica da União Europeia] oferece uma oportunidade incomparável para fortalecer a parceria entre o Reino Unido e os Estados Unidos", disse.

A fonte observou que Johnson, no cargo desde a última quarta-feira, e o mandatário americano conversaram na noite de sexta-feira por telefone, quando Trump lhe felicitou por sua chegada ao poder e ambos abordaram a futura relação bilateral.

"Já estamos trabalhando num acordo comercial", disse Trump no Salão Oval da Casa Branca, depois de falar com Johnson ao telefone. "Eu acho que será um acordo comercial muito substancial."

Trump afirmou que os dois países estavam "impedidos na área comercial" devido às relações do Reino Unido coma União Europeia (UE), acrescentando que "nós podemos

realizar muito mais comércio".

Na Casa Branca, Trump chamou o líder britânico de seu "amigo" e afirmou prever que "ele será um excelente primeiro-ministro".

Depois que Londres sair da União Europeia, o Reino Unido poderá negociar acordos comerciais com países não pertencentes à UE. Johnson afirmou que um acordo comercial pós-Brexit com os Estados Unidos seria uma prioridade inicial para ele como primeiro-ministro.

Segundo o porta-voz do governo britânico, Johnson e Trump também analisaram a disputa com o Irã e a necessidade de trabalhar juntos e com outros aliados para enfrentar "sua atitude desestabilizadora no Golfo Pérsico".

Os dois líderes concordaram em conversar novamente na cúpula do G7 em Biarritz (França), no final de agosto.


O premiê britânico também conversou com o primeiro-ministro do Canadá, Justin Trudeau, com quem combinou trabalhar em prol de um futuro acordo comercial bilateral.

sexta-feira, 20 de setembro de 2019

Ao liberar o FGTS, o governo põe em risco o financiamento habitacional


Olá alunos, 

A notícia de hoje mostra como a tentativa do atual governo de aquecer a economia pode ter efeitos colaterais negativos, chegando a resultados diametralmente opostos daqueles que tencionam atingir. 

Esperamos que gostem e participem!
Lucas Pessôa é membro do Grupo de Pesquisa "Estado, Instituições e Análise Econômica do Direito" - GPEIA

Com um repertório limitado quase que exclusivamente a privatizações, desnacionalizações, desregulamentação e austeridade fiscal, o ministro da Economia, Paulo Guedes, diante da perspectiva de crescimento do PIB inferior a 1% no terceiro ano consecutivo de estagnação, resolveu aumentar a aposta em um aquecimento imediato do consumo. Em vez de liberar 22 bilhões de reais do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço, como chegou a ser divulgado inicialmente, anunciou na quarta-feira 24 o desbloqueio de cerca de 30 bilhões do FGTS e do PIS/Pasep, com possibilidade de um saque imediato de 500 reais por conta vinculada e de uma retirada anual de um porcentual do salário a partir de 2020, segundo o Ministério da Economia.


O governo garantiu que a abertura da torneira não secará a fonte de recursos do Minha Casa Minha Vida, lançado pelo ex-presidente Lula em 2009, mas os empresários do setor receavam na véspera do anúncio da medida a drenagem do FGTS utilizado para financiar a compra e a construção de moradias do programa habitacional. O fundo, criado para ser uma proteção ao trabalhador em caso de demissão sem justa causa e que financia, além da habitação, a infraestrutura, o saneamento básico e a saúde, tem sido o “motor do mercado nos últimos anos e a falta de recursos para o MCMV seria um golpe duro para o setor”, alertou o presidente da Associação Brasileira de Incorporadoras Imobiliárias, Luiz França, segundo a publicação MSN Dinheiro

De acordo com a associação, o Minha Casa representou 78% dos lançamentos e 67% das vendas de moradias no País nos últimos 12 meses. “Se prejudicar a habitação popular, o setor da construção civil terá uma grande retração na geração de empregos e de impostos”, advertiu França. “Um saque dessa ordem mexerá com a liquidez do fundo. Todos os empresários do setor estão inseguros”, disse a O Estado de S. Paulo o vice-presidente de habitação do Sindicato da Indústria da Construção Civil do Estado de São Paulo, Ronaldo Cury. Usar recursos do FGTS para estimular o consumo é um “artifício populista que sempre termina muito mal”, alerta o ex-ministro Antonio Delfim Netto em sua coluna à página 52.

Para Rafael Menin, presidente da MRV, a maior operadora do Minha Casa Minha Vida, “uma ação do governo federal que possa diminuir a liquidez do fundo não seria boa para o setor”. Menin e Ricardo Valadares Gontijo, presidente-executivo da Direcional Engenharia, levaram a Bolsonaro a preocupação com a liberação do FGTS e chamaram atenção para o fato de que, em 2017, quando o ex-presidente Michel Temer liberou 44 bilhões em saques do Fundo e do PIS-Pasep, a construção sofreu um baque e que hoje, com a economia brasileira estagnada, outra onda de retiradas teria impacto mais grave.

O governo afirma que a liberação aquecerá a economia sem prejudicar o uso dos recursos do FGTS no financiamento para a construção civil, pois o valor anunciado representaria um pequeno porcentual do estoque de 525 bilhões, mas alguns empresários alegam que só 112 bilhões do fluxo de caixa do fundo estão disponíveis para investimentos como moradia e infraestrutura, e o Minha Casa fica com metade desse montante e um terço corresponde à reserva legal. Novos saques poderiam, portanto, reduzir o orçamento para aquela destinação a partir do próximo ano.

Drenar o FGTS e enfraquecer o Minha Casa Minha Vida significa jogar areia no principal motor da economia na década atual, o investimento em infraestrutura e habitação, que chegou a ser responsável por quase metade do aumento do PIB no período, segundo identificaram os economistas Guilherme R. Magacho, professor visitante da Universidade Federal do ABC e associado do Centro de Política Econômica e Pública da Universidade de Cambridge, no Reino Unido, e Igor L. Rocha, diretor de planejamento e economia da Associação Brasileira da Infraestrutura e Indústrias de Base. Os outros motores são a exportação de produtos primários, que respondeu por um terço do crescimento, e o consumo interno, de acordo com a classificação feita pelo economista Ricardo Bielchovsky e utilizada por Magacho e Rocha no trabalho intitulado “Uma decomposição estrutural do (de)crescimento brasileiro nos anos 2010”.

O investimento em infraestrutura, escreveram os autores, que foi de 134,8 bilhões de reais em 2010, atingiu o pico no período entre 2013 e 2014. Em 2013 totalizou 165,2 bilhões e, no ano seguinte, aumentou para 166,5 bilhões, em preços de 2017. A partir daquele ano, começou a diminuir. Em 2015 caiu para 139,7 bilhões e, em 2016, foi de apenas 113,1 bilhões. No intervalo de quatro anos, ele ficou 52,1 bilhões menor.

A construção habitacional, prosseguem, seguiu uma tendência similar. A quantidade de unidades residenciais contratadas pelo Minha Casa caiu de 912,9 mil em 2013 para 380,4 mil em 2016. O programa é dividido em três grupos: faixa 1, faixa 2 e faixa 3, a partir da renda do comprador. O primeiro grupo, destinado aos mais pobres, sofreu a queda mais significativa, de 537,2 mil unidades residenciais contratadas em 2013 para apenas 35 mil unidades em 2016. O número de unidades contratadas nos outros grupos também diminuiu, mas não no mesmo ritmo da faixa 1.

Para restaurar a economia, concluem Magacho e Rocha, “o governo brasileiro deve implementar um programa forte de investimentos em infraestrutura, uma vez que os preços das commodities são uma variável exógena e, consequentemente, têm uma influência limitada pela política econômica doméstica. Para tanto, é necessária uma nova onda de bons projetos estruturantes. Concessões e Parcerias Público-Privadas (PPPs) podem ser aceleradas, mas a agenda econômica de infraestrutura precisa integrar fontes públicas, privadas e internacionais para investimentos greenfield (criadores de capacidade adicional)”.

Os investimentos em infraestrutura correspondem a 1,7% do PIB e a necessidade brasileira de promover competitividade e produtividade no País requer ao menos 4,8% do PIB por ano durante o período de dez anos. “Como os atuais níveis de investimento nem cobrem a depreciação dos ativos, a infraestrutura deve figurar como a principal fonte de crescimento econômico. A curto prazo, para tornar isso possível é central excluir investimentos do teto de gastos do governo”, chamam atenção os economistas.

Desde 2014 o setor de infraestrutura é sucateado por fatores conjunturais e estruturais, sublinham em artigo o presidente da Abdib, Venilton Tadini, e Igor Rocha. “A parcela privada dos investimentos apresentou queda de 27,4% entre 2014 e 2017, que corresponde a uma redução de 100,8 bilhões de reais para 73,2 bilhões. No mesmo período, a participação pública caiu ainda mais, com uma variação de 43,5%, de 65,9 bilhões para 37,2 bilhões. No total, o investimento em infraestrutura somou 110,4 bilhões em 2017, inferior em 34% ao pico atingido em 2014, de 166,7 bilhões”, dizem os economistas, que destacam a necessidade de ao menos 284 bilhões anuais nos próximos dez anos para o País suprir as exigências mais prementes no setor.

quarta-feira, 18 de setembro de 2019

A função social da propriedade: pedra angular da Constituição Cidadã


Olá alunos, 

Hoje trazemos uma reportagem que discorre acerca do instituto da função social da sociedade, princípio constitucional que se encontra em evidência nos dias de hoje por conta de in´meros conflitos fundiários. 

Esperamos que gostem e participem!
Lucas Pessôa é membro do Grupo de Pesquisa "Estado, Instituições e Análise Econômica do Direito" - GPEIA


Compulsando algumas agendas que conformam o tema geral do direito à terra e à reforma agrária, notadamente desde a conjuntura que antecede o golpe parlamentar-judicial-midiático, que levou ao afastamento da presidenta Dilma Rousseff e, com ela, à derrocada do projeto popular-democrático que abriu ensejo à construção dessas agendas e, logo, à instalação de uma governança a serviço do modelo capitalista de concentração da terra e do território, vê-se nitidamente que o tema da função social da propriedade compõe essa agenda.

Um dos mais recentes ataques tem dupla face. A primeira, bruta e cruenta na linha do coronelismo que baliza o processo oligárquico, que caracteriza a nossa formação econômica, social e política: a criminalização da reivindicação social (com a pretensão de tipificar as formas de luta no elenco do crime de terrorismo) e a volta legal ao armamentismo que equipa as milícias urbanas e rurais a serviço a propriedade e do latifúndio.

A outra face, mais sutil, mas não menos instrumental é a do disfarce legislativo, embutido na estratégia de desconstitucionalização em curso no país. Nos referimos à Proposta de Emenda à Constituição, subscrita pelo Senador Flávio Bolsonaro, com assinaturas de apoio de conhecidos membros da bancada ruralista, que tem por objetivo “alterar os artigos 182 e 186 da Magna Carta de 1988 para definir de forma mais precisa a função social da propriedade urbana e rural e os casos de desapropriação pelo seu descumprimento”.

A justificativa embora tente – não disfarça – o objetivo de inverter o fundamento constitucional que preserva direitos fundamentais transsubjetivos porque principiológicos, já que salvaguardam valores civilizatórios: meio ambiente, autonomia do trabalho, licitude da atividade, direitos humanos, produção social, para facilitar o ganho privado da apropriação egoísta, que a Constituição – projeto avançado de sociedade – procurou superar.

Ainda bem que a proposta, escondendo o corpo do gato com uma redação aveludada, deixou-lhe o rabo de fora: “como a relativização do direito à propriedade privada deve ser feita com cautela

a fim de evitar arbitrariedades, abusos ou erros de avaliação pelo Poder Público nos processos de desapropriação fundamentados na simples justificativa de se estar agindo em atenção ao interesse social, apresentamos essa Proposta de Emenda Constitucional. A intenção é diminuir a discricionariedade do Poder Público na avaliação de desapropriação da propriedade privada, tendo em vista que é um bem sagrado e deve ser protegida de injustiças”.

A proposta deixa em evidência a sua inviabilidade porque toca a função social da propriedade (art. 5º), bem preservado como direito fundamental que é pedra angular da Constituição e não tolera sequer deliberação sobre emendas tendentes a aboli-lo (art. 60). Somente uma nova constituinte pode suprimi-lo. O tema da propriedade como um direito sagrado é rechaçada desde Leon Duguit, em seu Traité de Droit Constitutionel, publicado em 1911. Hoje, mais de um século depois, volta a ser invocada como um direito absoluto, num contexto de realidade distópica, em que mentes autoritárias voltam a invocar a “sacralidade” para retirar do seio da sociedade direitos conquistados historicamente por lutas sociais.

Este direito consagrado na Constituição Federal perpassa por um processo histórico de lutas que visa democratizar o uso da propriedade atendendo o princípio da solidariedade, proibindo arbítrios do proprietário, como a não observância da proteção ambiental e a exploração de trabalhadores. O conteúdo da proposta visa de um lado relativizar a função social da propriedade urbana, enfraquecendo um dos instrumentos mais importantes de democratização do espaço urbano: o Plano Diretor, quando retira do município a competência de definir a função social da propriedade urbana; e de outro lado, liquidar as exigências constitucionais da função social da propriedade rural.

A proposta de emenda, ainda, estimula o descumprimento da função social da propriedade quando prevê a indenização por desapropriação no valor do mercado para ambos os tipos de propriedade por motivo de não cumprimento da função social; trocando em miúdos: tanto faz se a propriedade cumpre ou não a função social, em caso de desapropriação, o valor a ser indenizado será o do mercado.

Um dos aspectos que salta aos olhos da proposta de emenda é a relativização da proteção ambiental da propriedade. Considerada como uma das exigências tanto da propriedade urbana, como da propriedade rural, a proposta de emenda faculta ao proprietário o atendimento de apenas um dos requisitos propostos, nos seguintes termos: “§ 2° A propriedade urbana cumpre sua função social quando é utilizada sem ofensa a direitos de terceiros e atende ao menos uma das seguintes exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor: I- parcelamento ou edificação adequados; II – aproveitamento compatível com a sua finalidade; III- preservação do meio ambiente ou do patrimônio histórico, artístico, cultural ou paisagístico”.

Assim, basta que uma edificação seja adequada para que ela não precise respeitar o meio ambiente ou mesmo que tenha aproveitamento compatível com a sua finalidade.
No plano da propriedade rural, o absurdo é ainda maior. A proposta faculta que o proprietário rural cumpra apenas um dos seguintes requisitos: “I – aproveitamento racional e adequado; II – utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente; III – observância das disposições que regulam as relações de trabalho; IV – exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores” (artigo 186). Assim, para os senadores que assinam a referida proposta é suficiente que a propriedade seja aproveitada de forma racional e adequada, sendo desnecessária a utilização adequada dos recursos naturais e a preservação do meio ambiente.

Da mesma forma não é necessário observar as leis que regulam as relações de trabalho, o que vale dizer, em última instância, o mesmo que a aceitação escancarada de práticas que submetem trabalhadores e trabalhadoras às condições análogas à de escravo – prática comum nos grandes latifúndios no Brasil, cujas políticas públicas de enfrentamento vêm sofrendo duros desmontes desde a interrupção democrática.

Na proposta de emenda dos parlamentares vê-se nitidamente um projeto de assoreamento da função socioambiental da propriedade, que inclui a proteção dos recursos naturais renováveis existentes, manutenção dos serviços ecológicos, preservação do meio ambiente para a presente e futuras gerações, preservação da vida e de condições dignas de trabalho à serviço do modelo capitalista de concentração da terra e do território.

Por isso que sustentamos com Plínio de Arruda Sampaio (Constituinte em 1988), que “o desenvolvimento de um país está travado por uma questão agrária quando a trama das relações econômicas, sociais, culturais e políticas no meio rural produz uma dinâmica perversa que bloqueia tanto o esforço para aumentar a produtividade, como as tentativas de melhorar o nível de vida da população rural e sua participação ativa no processo político democrático” (vol 3, da Série O Direito Achado na Rua “Introdução Crítica ao Direito Agrário”, Brasília/UnB/São Paulo/Imprensa Oficial de São Paulo, 2002, pág. 317).


Em sentido contrário a essa iniciativa concentradora e programática da governança ultra-neoliberal que aliena o País, nos mantemos concordes com o qualificado coletivo de participantes do Seminário Terra, Território, Diversidade e Lutas – movimentos populares e sindicais do campo, águas e florestas, trabalhadores e trabalhadoras rurais, pesquisadores e pesquisadoras, organizações não governamentais, ambientalistas, representantes de governos progressistas, lideranças partidárias e parlamentares, reunidos entre os dias 06 e 08 de junho de 2019, na Escola Nacional Florestan Fernandes (Guararema, São Paulo) – uníssonos na reafirmação de “defesa das políticas agrárias de Estado, cumprindo à Constituição Federal: a desapropriação para fins de reforma agrária das terras que não cumpram função socioambiental, a demarcação de territórios indígenas, a titulação de territórios quilombolas e o reconhecimento de terras tradicionalmente ocupadas”.


segunda-feira, 16 de setembro de 2019

Reforma da Previdência ameaça famílias chefiadas por aposentados


Olá alunos, 

A notícia de hoje relata mais um dos impactos que serão provocados pela reforma da previdência. 

Esperamos que gostem e participem!
Lucas Pessôa é membro do Grupo de Pesquisa "Estado, Instituições e Análise Econômica do Direito" - GPEIA

Depois de quase 40 anos no vaivém entre conchas, pratos e caldeirões, a ex-merendeira Geralda da Silva Costa, 79 anos, ganhou uma missão tão laboriosa quanto aquela que cumpria em uma escola estadual no Jardim das Flores, bairro pobre no extremo sul de São Paulo. No mesmo ano em que deu entrada na papelada da aposentadoria, em 2000, ela assumiu a criação de uma neta desamparada, fruto do casamento de um dos filhos. A mãe biológica de Iara, conta a avó, tem problemas psíquicos graves e era incapaz de cuidar de uma criança. “Se não fosse ela, sei que minha vida seria muito pior. Nem sei se estaria viva”, lembra a menina, hoje com 20 anos completos e grávida de nove meses.


Apesar de crescidos, os filhos continuam a orbitar em torno de dona Geralda. Sete dos seus nove rebentos moram com ela em um terreno de 25 de metros de comprimento por 10 de largura, adquirido pela família ainda nos anos 60 e convertido em um condomínio improvisado de quatro pavimentos. A aposentada acompanha de perto o crescimento da terceira e da quarta geração da família. Também vivem lá 13 netos e 6 bisnetos. Sete, aliás, se contabilizado o bebê na barriga de Iara.

Sua aposentadoria e a do marido de 86 anos, que somam dois salários mínimos, seguram as pontas do orçamento familiar em um mercado de trabalho cada vez mais incerto. Todos trabalham, mas a renda fixa do casal é garantia. Com ela por perto, os netos não precisam ir para a creche. “Tenho um filho segurança, que chega tarde. Outro que às vezes vira a noite no trabalho. Só eu mesma sei o horário de quem chega e de quem sai”, relata a aposentada. Outra filha, de 54 anos, que vive com ela, em tratamento para artrite e problemas na coluna, briga na Justiça para receber o auxílio-doença. Enquanto a decisão não vem, o sustento sai do salário do neto, cobrador de ônibus, e da pensão que o garoto recebe desde o falecimento do pai. Os Silva Costa contam ainda com o suporte de um filho que conseguiu se aposentar antes dos 60 anos por trabalhar com carteira assinada desde a adolescência.

O mito do idoso que se torna um fardo para a família no fim da vida está longe de refletir a realidade brasileira. Desde os anos 1990, o número de famílias chefiadas por maiores de 60 anos só cresce. Com o aumento da expectativa de vida, os idosos brasileiros passaram a viver melhor, trabalhar mais e manter a autonomia pessoal e financeira. Na virada deste século, o IBGE contou 9,9 milhões de idosos provedores, aumento de 40% em relação a 1991. Foram 12,2 milhões em 2006, total que em 2015 chegou a 17 milhões. Em tempos de informalidade e desemprego, retomam a responsabilidade pelo sustento da família com a renda garantida das aposentadorias e pensões. Segundo um levantamento da LCA Consultores com base em dados oficiais, o número de domicílios em que esses benefícios respondem por mais de 75% da renda cresceu 12% entre 2016 e o ano seguinte, em grande parte por causa do desemprego e do aumento da informalidade. Como o IBGE postergou a divulgação dos dados de renda de todas as fontes do ano de 2018 para algum momento deste segundo semestre, trata-se da estimativa mais recente. “Acredito que eles estejam revisando os dados, inclusive”, avalia o economista Cosmo Donato, responsável pelo estudo. Uma pesquisa do Serviço de Proteção ao Crédito confirma essa tendência: 9 em cada 10 idosos contribuem com o orçamento da casa. Desses, quatro são os principais responsáveis por pagar as contas e colocar o pão na mesa. 

No Itaim Paulista, a 70 quilômetros do lar da família de dona Geralda, o aposentado José Batista de Araújo, de 71 anos, também engrossa as estatísticas. “Pago o colégio do neto, dentista, alimentação, roupas…”, enumera. Araújo afirma gastar cerca de 2,5 mil reais por mês com as despesas da família. E completa: “Também ajudo a minha filha de 40 anos, que está desempregada faz tempo”. 

Como Araújo, os idosos muitas vezes são os únicos em condições de amparar os demais afetiva e economicamente. São as chamadas famílias intergeracionais, nas quais netos, filhos e avós convivem sob um mesmo teto. A aprovação da reforma da Previdência tende a mudar drasticamente esse cenário. Agora, além da idade mínima, quem quiser pleitear a aposentadoria terá de comprovar ao menos 15 anos de contribuição. O economista Eduardo Fagnani, professor da Unicamp e pesquisador do Centro de Estudos Sindicais e do Trabalho, diz que a reforma vai aumentar o contingente de inaposentáveis. “Quem recebe um quarto de salário mínimo pode pleitear o BPC, mas tem muita gente que ganha um pouco mais que isso.” Segundo ele, as regras aprovadas até agora não levam em conta a realidade demográfica brasileira. Em média, o trabalhador brasileiro do sexo masculino contribui 5 meses a cada 12 trabalhados. 

Goste-se ou não, as pensões, benefícios e aposentadorias são essenciais para combater a desigualdade no Brasil. Sem a transferência previdenciária, 46% dos brasileiros viveriam abaixo da linha de pobreza, segundo um estudo da  Secretaria de Previdência publicado em 2017. Com ela, o porcentual fica em 26%. O repasse também é essencial para a economia das cidades. De acordo com um estudo da Associação dos Auditores-Fiscais da Receita Federal do Brasil (Anfip), o volume pago pelo INSS supera as transferências da União em 73% dos municípios. Essa taxa é ainda mais expressiva no Nordeste, que viu crescer a renda nos rincões com os programas sociais e outras políticas incrementadas durante os governos petistas. Com a crise e os cortes disfarçados de “pente-fino”, a procura pela seguridade social voltou a crescer. No Recife, a Secretaria de Assistência Social tem notado um aumento na busca por benefícios como o Bolsa Família, o BPC e o auxílio-doença. 

Outro ponto de atrito é o corte na pensão por morte, que afeta principalmente as mulheres. Conforme as regras aprovadas até agora, o benefício integral será substituído pela soma da metade do valor da aposentadoria e uma cota suplementar de 10% por dependente. Além de viver mais do que os homens, as mulheres são minoria entre quem se casa de novo depois da viuvez e costumam assumir o cuidado dos netos quando os filhos se separam, incluído o apoio financeiro. Viúvas, ex-cônjuges, filhas, irmãs e mães são 83% daqueles que recebem pensão por morte do INSS, aponta o Anuário Estatístico da Previdência. Destas, 7 em cada 10 têm 60 anos ou mais. Para lidar com essa realidade, a Confederação Brasileira de Aposentados, Pensionistas e Idosos pretende sugerir ao Senado uma emenda que garanta às pensionistas o recebimento de valores até o limite do teto do INSS. O presidente da entidade, Warley Martins, explica: “Eu e minha mulher ganhamos 2 mil reais cada. Pelas novas regras, se eu morrer, ela recebe só a metade do meu benefício. Queremos garantir essa segurança às viúvas”.

Não quer dizer, porém, que os idosos estejam confortáveis com essa demanda. Muitas vezes, os problemas de saúde e o sustento dos filhos e netos viraram sinônimo de endividamento. Ex-funcionário dos Correios, o mineiro Adilson Rodrigues, de 66 anos, compromete mais da metade da aposentadoria de 3 mil reais com empréstimos. Rodrigues viu-se obrigado a vender o carro para manter um filho de 18 anos desempregado e uma neta também de 18 anos, além de ajudar a nora e cuidar da sogra quase centenária que vive na casa da família, em Belo Horizonte. “Faz três anos que a situação está ruim, mas piorou de um ano para cá. Todos os meus colegas estão na mesma situação, enrolados com o banco.” No estado, um em cada 3 idosos tomaram empréstimos consignados, segundo dados do INSS divulgados pelo jornal O Tempo no fim do ano passado. A dívida desses aposentados chega a impressionantes 74 bilhões de reais. O cenário nacional é parecido: dos quase 28 milhões de beneficiários da Previdência, ao menos 75% deixam uma parte da aposentadoria com uma instituição privada. 

A inadimplência dos mais velhos é a que mais cresce no País. Disputados pelos bancos graças ao acordo com o INSS que garante desconto direto na folha, os idosos assumem os débitos gerados pela penúria financeira da família. Essa guerra abre espaço para práticas abusivas. A Secretaria Nacional do Consumidor acaba de abrir investigações contra dez bancos por supostos abusos. Há até casos de empréstimos contratados por analfabetos.


No Brasil, além de sustentar os parentes, os aposentados cuidam das crianças e de outros idosos. Como fica depois da reforma?
Depois de quase 40 anos no vaivém entre conchas, pratos e caldeirões, a ex-merendeira Geralda da Silva Costa, 79 anos, ganhou uma missão tão laboriosa quanto aquela que cumpria em uma escola estadual no Jardim das Flores, bairro pobre no extremo sul de São Paulo. No mesmo ano em que deu entrada na papelada da aposentadoria, em 2000, ela assumiu a criação de uma neta desamparada, fruto do casamento de um dos filhos. A mãe biológica de Iara, conta a avó, tem problemas psíquicos graves e era incapaz de cuidar de uma criança. “Se não fosse ela, sei que minha vida seria muito pior. Nem sei se estaria viva”, lembra a menina, hoje com 20 anos completos e grávida de nove meses.
Apesar de crescidos, os filhos continuam a orbitar em torno de dona Geralda. Sete dos seus nove rebentos moram com ela em um terreno de 25 de metros de comprimento por 10 de largura, adquirido pela família ainda nos anos 60 e convertido em um condomínio improvisado de quatro pavimentos. A aposentada acompanha de perto o crescimento da terceira e da quarta geração da família. Também vivem lá 13 netos e 6 bisnetos. Sete, aliás, se contabilizado o bebê na barriga de Iara. 

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Sua aposentadoria e a do marido de 86 anos, que somam dois salários mínimos, seguram as pontas do orçamento familiar em um mercado de trabalho cada vez mais incerto. Todos trabalham, mas a renda fixa do casal é garantia. Com ela por perto, os netos não precisam ir para a creche. “Tenho um filho segurança, que chega tarde. Outro que às vezes vira a noite no trabalho. Só eu mesma sei o horário de quem chega e de quem sai”, relata a aposentada. Outra filha, de 54 anos, que vive com ela, em tratamento para artrite e problemas na coluna, briga na Justiça para receber o auxílio-doença. Enquanto a decisão não vem, o sustento sai do salário do neto, cobrador de ônibus, e da pensão que o garoto recebe desde o falecimento do pai. Os Silva Costa contam ainda com o suporte de um filho que conseguiu se aposentar antes dos 60 anos por trabalhar com carteira assinada desde a adolescência.

O mito do idoso que se torna um fardo para a família no fim da vida está longe de refletir a realidade brasileira. Desde os anos 1990, o número de famílias chefiadas por maiores de 60 anos só cresce. Com o aumento da expectativa de vida, os idosos brasileiros passaram a viver melhor, trabalhar mais e manter a autonomia pessoal e financeira. Na virada deste século, o IBGE contou 9,9 milhões de idosos provedores, aumento de 40% em relação a 1991. Foram 12,2 milhões em 2006, total que em 2015 chegou a 17 milhões. Em tempos de informalidade e desemprego, retomam a responsabilidade pelo sustento da família com a renda garantida das aposentadorias e pensões. Segundo um levantamento da LCA Consultores com base em dados oficiais, o número de domicílios em que esses benefícios respondem por mais de 75% da renda cresceu 12% entre 2016 e o ano seguinte, em grande parte por causa do desemprego e do aumento da informalidade. Como o IBGE postergou a divulgação dos dados de renda de todas as fontes do ano de 2018 para algum momento deste segundo semestre, trata-se da estimativa mais recente. “Acredito que eles estejam revisando os dados, inclusive”, avalia o economista Cosmo Donato, responsável pelo estudo. Uma pesquisa do Serviço de Proteção ao Crédito confirma essa tendência: 9 em cada 10 idosos contribuem com o orçamento da casa. Desses, quatro são os principais responsáveis por pagar as contas e colocar o pão na mesa. 


ARRIMO. SETE FILHOS, 13 NETOS E 6 BISNETOS GRAVITAM EM TORNO DE DONA GERALDA. HÁ ESPAÇO PARA TODOS

No Itaim Paulista, a 70 quilômetros do lar da família de dona Geralda, o aposentado José Batista de Araújo, de 71 anos, também engrossa as estatísticas. “Pago o colégio do neto, dentista, alimentação, roupas…”, enumera. Araújo afirma gastar cerca de 2,5 mil reais por mês com as despesas da família. E completa: “Também ajudo a minha filha de 40 anos, que está desempregada faz tempo”. 

Como Araújo, os idosos muitas vezes são os únicos em condições de amparar os demais afetiva e economicamente. São as chamadas famílias intergeracionais, nas quais netos, filhos e avós convivem sob um mesmo teto. A aprovação da reforma da Previdência tende a mudar drasticamente esse cenário. Agora, além da idade mínima, quem quiser pleitear a aposentadoria terá de comprovar ao menos 15 anos de contribuição. O economista Eduardo Fagnani, professor da Unicamp e pesquisador do Centro de Estudos Sindicais e do Trabalho, diz que a reforma vai aumentar o contingente de inaposentáveis. “Quem recebe um quarto de salário mínimo pode pleitear o BPC, mas tem muita gente que ganha um pouco mais que isso.” Segundo ele, as regras aprovadas até agora não levam em conta a realidade demográfica brasileira. Em média, o trabalhador brasileiro do sexo masculino contribui 5 meses a cada 12 trabalhados. 

Desde os anos 90, o número de famílias chefiadas por maiores de 60 anos só cresce

Goste-se ou não, as pensões, benefícios e aposentadorias são essenciais para combater a desigualdade no Brasil. Sem a transferência previdenciária, 46% dos brasileiros viveriam abaixo da linha de pobreza, segundo um estudo da  Secretaria de Previdência publicado em 2017. Com ela, o porcentual fica em 26%. O repasse também é essencial para a economia das cidades. De acordo com um estudo da Associação dos Auditores-Fiscais da Receita Federal do Brasil (Anfip), o volume pago pelo INSS supera as transferências da União em 73% dos municípios. Essa taxa é ainda mais expressiva no Nordeste, que viu crescer a renda nos rincões com os programas sociais e outras políticas incrementadas durante os governos petistas. Com a crise e os cortes disfarçados de “pente-fino”, a procura pela seguridade social voltou a crescer. No Recife, a Secretaria de Assistência Social tem notado um aumento na busca por benefícios como o Bolsa Família, o BPC e o auxílio-doença. 

Outro ponto de atrito é o corte na pensão por morte, que afeta principalmente as mulheres. Conforme as regras aprovadas até agora, o benefício integral será substituído pela soma da metade do valor da aposentadoria e uma cota suplementar de 10% por dependente. Além de viver mais do que os homens, as mulheres são minoria entre quem se casa de novo depois da viuvez e costumam assumir o cuidado dos netos quando os filhos se separam, incluído o apoio financeiro. Viúvas, ex-cônjuges, filhas, irmãs e mães são 83% daqueles que recebem pensão por morte do INSS, aponta o Anuário Estatístico da Previdência. Destas, 7 em cada 10 têm 60 anos ou mais. Para lidar com essa realidade, a Confederação Brasileira de Aposentados, Pensionistas e Idosos pretende sugerir ao Senado uma emenda que garanta às pensionistas o recebimento de valores até o limite do teto do INSS. O presidente da entidade, Warley Martins, explica: “Eu e minha mulher ganhamos 2 mil reais cada. Pelas novas regras, se eu morrer, ela recebe só a metade do meu benefício. Queremos garantir essa segurança às viúvas”.

Sem as transferências previdenciárias, 46% dos brasileiros viveriam abaixo da linha de pobreza

Não quer dizer, porém, que os idosos estejam confortáveis com essa demanda. Muitas vezes, os problemas de saúde e o sustento dos filhos e netos viraram sinônimo de endividamento. Ex-funcionário dos Correios, o mineiro Adilson Rodrigues, de 66 anos, compromete mais da metade da aposentadoria de 3 mil reais com empréstimos. Rodrigues viu-se obrigado a vender o carro para manter um filho de 18 anos desempregado e uma neta também de 18 anos, além de ajudar a nora e cuidar da sogra quase centenária que vive na casa da família, em Belo Horizonte. “Faz três anos que a situação está ruim, mas piorou de um ano para cá. Todos os meus colegas estão na mesma situação, enrolados com o banco.” No estado, um em cada 3 idosos tomaram empréstimos consignados, segundo dados do INSS divulgados pelo jornal O Tempo no fim do ano passado. A dívida desses aposentados chega a impressionantes 74 bilhões de reais. O cenário nacional é parecido: dos quase 28 milhões de beneficiários da Previdência, ao menos 75% deixam uma parte da aposentadoria com uma instituição privada. 

A inadimplência dos mais velhos é a que mais cresce no País. Disputados pelos bancos graças ao acordo com o INSS que garante desconto direto na folha, os idosos assumem os débitos gerados pela penúria financeira da família. Essa guerra abre espaço para práticas abusivas. A Secretaria Nacional do Consumidor acaba de abrir investigações contra dez bancos por supostos abusos. Há até casos de empréstimos contratados por analfabetos.

Desde 2014, o Brasil viu evaporarem 4 milhões de empregos com carteira assinada. O efeito colateral foi a explosão da informalidade e do porcentual de subocupados, aqueles que trabalham menos do que gostariam. Os netos de dona Geralda experimentam essa realidade. Natalia Costa Santos, de 23 anos, faz bicos como manicure desde que perdeu o emprego no setor administrativo, ironicamente, em um posto de atendimento da Secretaria Estadual do Emprego. “Dos seis netos maiores, dois estão desempregados, mas os outros trabalham em mercado, loja… ganham por hora”, lista.  

Daqui em diante, em um futuro no qual o emprego formal será cada vez mais incerto – a FGV estima que a inteligência artificial tende a aumentar o desemprego em até 4 pontos porcentuais na próxima década e meia –, a figura dos avós como esteio emocional e financeiro pode dar lugar a um cenário no qual os maiores de 60 anos disputarão empregos cada vez mais precários com os próprios netos. “Os idosos têm a renda, conseguem manter a família, mas também ficam doentes. Quem vai cuidar deles?”, pergunta Fagnani.

Tudo indica que essa responsabilidade será de outros idosos. No Brasil, a maioria dos cuidadores de doentes ou dependentes também tem mais de 60 anos, em geral mulheres da mesma família que não recebem pelo trabalho. Como os cuidadores formais são caros, a maior parte das famílias recorre a algum parente. Seriam estes os “privilegiados” que a reforma da Previdência diz combater?

sábado, 14 de setembro de 2019

Convite!


Olá alunos, 

Viemos convida-los para o evento: 

“A Quarta Revolução Industrial: Impactos na Segurança Internacional e a Reformulação da Ordem Global."




O Evento ocorrerá ao longo de todo o dia 20/09 e contará com diversas palestra com os mais variados nomes contando com ministros de Estado, professores internacionais e estrangeiros de diversas nacionalidades, bem como agentes diplomáticos internacionais.
Atenção: O prazo limite para as inscrições vai até o dia 17/09 

Data: 20/09, Sexta-feira
Horário: 08h às 18h
Local: Escola de Guerra Naval
Endereço: Av. Pasteur, 480 - Urca, RJ

Inscrições aqui!

Esperamos que gostem e participem!
Lucas Pessôa é membro do Grupo de Pesquisa "Estado, Instituições e Análise Econômica do Direito" - GPEIA 


quinta-feira, 12 de setembro de 2019

A "uberização" do trabalho em Portugal

Portugal - Ascensor da Bica in Lissabon (picture alliance / J. Woitas)

Olá alunos, 

Trazemos hoje uma notícia que demonstra como o fenômeno da economia compartilhada trouxe diversas vicissitudes alterando sua dinâmica e servindo em muitos momentos como instrumento de precarização do trabalho. Embora o exemplo dado seja Portugal, o mesmo vale para nosso país. 

Esperamos que gostem e participem!
Lucas Pessôa é membro do Grupo de Pesquisa "Estado, Instituições e Análise Econômica do Direito" - GPEIA

Compartilhar está na moda em Portugal: ali, a plataforma de aluguel Airbnb oferece mais apartamentos do que na China ou na Alemanha. Recentemente, a chefe do Uber para o sul da Europa, Giovanna D'Esposito, classificou Portugal como "modelo de ouro" da sua empresa.

A economia compartilhada não se tornou apenas um fator econômico importante, mas os portugueses participam dela com grande entusiasmo, Mas pessoas que atuam em categorias como motorista de Uber, de entregador de comida e guia turístico não conseguem ganhar muito. É por isso que economistas e alguns poucos políticos duvidam que o negócio de compartilhamento efetivamente funcione.

Por exemplo, segundo dados do Airbnb, turistas gastaram mais de 2 bilhões de euros (cerca de 8,4 bilhões de reais) no ano passado em Portugal: 115 euros por dia, quase metade disso supostamente nos bairros onde pernoitaram. Isso faz do país o décimo mercado mais importante para a plataforma no mundo, apesar de os habitantes reclamarem cada vez mais de uma "invasão de turistas com malas de rodinhas". Portugal registrou cerca de 3,4 milhões de usuários do Airbnb no ano passado.

No entanto, a plataforma de aluguel de temporada tornou-se uma espécie de modelo de negócio para a classe média, que se muda do centro para bairros mais afastados e mais baratos a fim de alugar seus apartamentos em áreas centrais de cidades como Lisboa por meio do Airbnb.

Rendimentos adicionais e necessários

"Muitos precisam da renda extra para sustentar a família", constata José Soeiro, porta-voz de política econômica da legenda Bloco da Esquerda. Por falta de alternativa para lidar com o aumento do custo de vida, até professores universitários e altos funcionários estão alugando seus apartamentos em plataformas de internet, diz Soeiro, ressaltando que não se trata de compartilhar um apartamento com pessoas de outros países, mas simplesmente da sobrevivência econômica.

"Grande parte dos portugueses ganha apenas o salário mínimo garantido pelo Estado de 600 euros mensais. Como motoristas de Uber, eles consegue guardar mais nos bolsos no final do mês", apontou o sociólogo Elísio Estanque, do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra. Seu tema de pesquisa é a "uberização" do trabalho em Portugal.

Preço alto

Segundo o sociólogo, o preço do boom da economia compartilhada é alto: com uma receita um pouco maior, os próprios motoristas passam a ter que pagar contribuições previdenciárias e custos operacionais. Além disso, eles também são totalmente responsáveis por acidentes e outros problemas potenciais.

"Muitos também dirigem em seu tempo livre. Têm na verdade um emprego diferente. Até eu mesmo recebi uma oferta. Só é preciso se inscrever. Tudo é incrivelmente fácil", afirmou o sociólogo. Além disso, o governo português está constantemente promovendo empresas inovadoras de empreendedorismo e plataforma digitais. Resultado: nas cidades há agora mais motoristas de Uber do que de táxi.

Elísio Estanque ainda adverte que a economia compartilhada em Portugal gera ainda um paradoxo: a precarização de condições de trabalho que já são ruins. "Não existe jornada fixa de trabalho, garantia de renda, seguridade social. Leis trabalhistas são afrouxadas".

Um motorista de táxi assalariado ganha cerca de mil euros líquidos mensais. Já um motorista do Uber com muitas corridas só consegue acumular cerca de 750 euros a mais no bolso – mas  isso antes do pagamento de impostos e contribuições para a seguridade social. E claro que não tem proteção contra o desemprego.

Espaço sem direitos trabalhistas

O político esquerdista José Soeiro diz considerar a "indústria compartilhada" uma "maldição" em vez de uma "bênção", apontando que por isso que seu partido é um dos poucos a exigir mais regulamentação sobre o negócio de plataformas de internet: "O boom da economia compartilhada em Portugal deve-se principalmente ao fato de ela se realizar num espaço quase sem legislação".

E o governo não ousa enfrentar o problema, acrescentou. "Tivemos a grande crise e agora o turismo é um fator econômico importante, o desemprego caiu, ninguém quer se preocupar com o Uber ou o Airbnb", apontou Soeiro. Mesmo que isso crie empregos precários e promova um trabalho autônomo enganador, acrescentou.

No entanto, o governo tomou apenas um medida em relação às regras relaxadas para o Uber e o Airbnb: os rendimentos dos seus prestadores de serviços portugueses devem ser reportados ao fisco do país.

As plataformas de internet, por outro lado, elogiam o silêncio do governo e, à medida que o boom do turismo continua, realizam negócios cada vez mais lucrativos. Também o motorista do Uber Nuno, que preferiu ser chamado apenas pelo primeiro nome, mostrou-se entusiasmado com a economia compartilhada.

Ele dirige para uma firma que presta serviços para o Uber, tendo antes trabalhado para uma empresa de segurança. Ele diz ganhar bem e não se incomodar com a jornada de trabalho de dez horas. "Eu, explorado?", indaga Nuno com certa surpresa. "Todos os outros empregadores fizeram isso comigo antes."


Talvez o compartilhamento não funcione tão bem como se pensa em Portugal.

terça-feira, 10 de setembro de 2019

A desconhecida riqueza mineral da terra Wajãpi, palco de tensão entre indígenas e garimpeiros

Garimpo no Amapá

Olá alunos, 

Hoje a notícia retrata como a especulação econômica pode entrar em rota de colisão com o direito originário, e reconhecido por nossa Carta Magna, dos indígenas de possuir reservas fundiárias para seu usufruto exclusivo . 

Esperamos que gostem e participem!
Lucas Pessôa é membro do Grupo de Pesquisa "Estado, Instituições e Análise Econômica do Direito" - GPEIA

Palco de tensões desde a semana passada, quando um líder indígena morreu em meio a relatos de uma invasão de garimpeiros, a Terra Indígena Wajãpi desperta interesses por seus recursos minerais desde os anos 1960 e ocupa parte da Renca (Reserva Nacional do Cobre e Associados) - área na divisa do Pará e do Amapá que ganhou os holofotes em 2017, quando o então presidente Michel Temer (MDB) tentou extingui-la.

O conflito ocorre num momento em que o presidente Jair Bolsonaro (PSL) defende liberar a exploração mineral em terras indígenas brasileiras e em meio à expansão do garimpo ilegal por vários desses territórios, conforme mostrado por uma reportagem da BBC News Brasil na última quinta-feira (25/7).


O potencial minerário da área wajãpi é objeto de grande especulação. Embora seja cobiçado por garimpeiros, o subsolo da região jamais foi estudado em profundidade, e o relevo acidentado do território tende a dificultar operações mais vultosas.

Criação da Renca

Quando a Reserva Nacional do Cobre e Associados foi criada, em 1984, a Terra Indígena Wajãpi ainda não havia sido demarcada, o que só aconteceu em 1996. A criação da reserva travou as pesquisas minerais na região.

Em 2017, dias após o governo Temer extinguir a reserva numa tentativa de abrir o território para a mineração, a BBC entrevistou o geólogo Breno Augusto dos Santos, um dos maiores especialistas na área. Santos coordenava as pesquisas que a Vale, então uma empresa estatal, realizava no território nos anos 1980.

Após a criação da Renca, a Vale teve de suspender os trabalhos, pois a Companhia de Pesquisa de Recursos Minerais (CPRM), ligada ao Ministério de Minas e Energia, ganhou exclusividade para trabalhar no local.

Mas Santos disse que as pesquisas nunca avançaram. "Desde que criaram a Renca, nunca houve ali pesquisa mineral. Não se sabe qual o potencial real daquela área - ainda é uma grande incógnita", ele afirmou à BBC, após a extinção da reserva.

Criticado por indígenas e ambientalistas, que temiam uma exploração desenfreada da região, Temer revogou em poucas semanas o decreto que acabava com a Renca. Com isso, a possibilidade de explorar legalmente minérios na reserva segue bloqueada.

Mineração em terras indígenas

A criação da Terra Indígena Wajãpi, em 1996, impôs outra barreira à pesquisa mineral no trecho da Renca que se sobrepõe ao território, pois a mineração em terras indígenas é hoje ilegal.

Segundo a Constituição de 1988, a liberação da atividade depende da aprovação de leis específicas pelo Congresso, o que nunca ocorreu.

Mesmo ao tentar extinguir a Renca, em 2017, o governo Temer disse que a mineração continuaria proibida nas duas terras indígenas que compõem a reserva (além da área Wajãpi, o território agrega parte da Terra Indígena Paru d´Este, das etnias Aparai e Wayana).

Muito do que se sabe sobre o potencial da região se deve à ação de garimpeiros. Sabe-se que há ouro, por exemplo, porque garimpeiros já extraíram o metal do território.

Segundo Breno Santos, há ainda duas reservas com potencial para exploração de titânio e fosfato em trechos da Renca fora do território wajãpi - o que poderia indicar a presença dos materiais também dentro da terra indígena.

Santos diz que, ironicamente, as pesquisas jamais detectaram a presença de cobre, metal que deu nome à reserva.

Extração de tantalita

Outra reserva existente no território wajãpi é a de tantalita, mineral composto nióbio e tântalo na mesma proporção que é usado pelas indústrias eletrônica e de vidro e que tem suas maiores reservas conhecidas no Brasil.

Dominique Tilkin Gallois, professora de Antropologia da Universidade de São Paulo (USP) que trabalha junto aos wajãpi desde os anos 1970, diz à BBC que garimpeiros já extraíram tantalita no norte da terra indígena, atividade que teria provocado o envenenamento de membros da etnia.

Outros pontos do território sofreram com a ação de garimpeiros que buscavam ouro - e que começaram a transitar pelas bacias dos rios Jari e Amapari nos anos 1960.

Na década de 1970, a mineradora Icomi (Indústria de Comércio e Minérios) também se interessou pela área. Durante trabalhos de prospecção, técnicos a serviço da empresa se depararam com indígenas wajãpi até então isolados.

Epidemia de sarampo

Inicialmente apoiado pelos indígenas, o avanço do garimpo pela região do rio Karapanaty provocou um episódio traumático para a comunidade, conta Gallois no livro "Terra Indígena Wajãpi: da demarcação às experiências de gestão territorial".

Ela diz que, nos anos 1970, os garimpeiros disseminaram o sarampo por cinco aldeias. A doença matou mais de 80 indígenas, segundo a antropóloga.

Em 1973, novas invasões de garimpeiros foram facilitadas pelas obras da estrada Perimetral Norte, com a qual a ditadura militar pretendia conectar o Amapá a Roraima, atravessando partes do Pará e do Amazonas.

A estrada cortou parte do território wajãpi, que ficava num dos extremos do projeto, mas foi abandonada antes de ser concluída.

Segundo Gallois, as experiências trágicas fizeram com que os indígenas se tornassem avessos ao garimpo.

"Eles estão denunciando e procurando as autoridades porque temem que essa experiência traumática seja vivida outra vez", ela afirma à BBC.

Morte violenta de líder

Em nota divulgada no domingo (28/7), o Conselho das Aldeias Wajãpi (Apina) diz que o líder Emyra Wajãpi "foi morto de forma violenta" perto de sua aldeia na última segunda-feira (22/7), quando não era acompanhado por outros indígenas. Segundo a nota, parentes do líder "encontraram rastros e outros sinais de que a morte foi causada por pessoas não indígenas".

O texto diz que, na sexta-feira (26/7), membros da comunidade encontraram um grupo de não-índios armados, que teriam se instalado em uma aldeia e ameaçado os moradores. Nesta segunda-feira, a Funai divulgou uma nota na qual diz que sua coordenadoria no Amapá encaminhou para a presidência do órgão um memorando "informando sobre um possível ataque de garimpeiros à Terra Indígena Wajãpi".

A Polícia Federal abriu um inquérito para investigar a morte do líder.