Olá alunos,
O crescimento do setor de serviços com base em baixos salários e queda do setor industrial na participação do PIB são fatores que impedem a transição de uma classe trabalhadora para uma classe média assalariada. Na postagem de hoje o autor Márcio Pochmann comenta a conjuntura da classe média no país e sugere políticas que poderiam ser implementadas no intuito de amplia-la e consolida-la.
O crescimento do setor de serviços com base em baixos salários e queda do setor industrial na participação do PIB são fatores que impedem a transição de uma classe trabalhadora para uma classe média assalariada. Na postagem de hoje o autor Márcio Pochmann comenta a conjuntura da classe média no país e sugere políticas que poderiam ser implementadas no intuito de amplia-la e consolida-la.
Esperamos que gostem e participem.
Fellype Fagundes e Carlos Araújo
Monitores da disciplina "Economia Política e Direito" da Universidade Federal Fluminense
Fellype Fagundes e Carlos Araújo
Monitores da disciplina "Economia Política e Direito" da Universidade Federal Fluminense
O cenário econômico e social brasileiro “repete o que
ocorreu no pós-guerra nos países desenvolvidos”, assinala Márcio Pochmann à IHU On-Line, ao analisar as
políticas públicas que favoreceram a ascensão econômica de uma parcela da
população, sem com isso garantir a incorporação dessas pessoas à classe média.
“O que está acontecendo no país é a pauta que o novo sindicalismo foi
construindo desde as greves dos anos 1970, ou seja, crescimento dos salários de
acordo com a produtividade mais a inflação, melhora nas políticas de renda,
etc. Tudo isso permitiu uma ampliação do acesso ao consumo, melhorou a renda, o
emprego, mas os valores continuam os mesmos. (...) Então, imagino que não é
possível fazer essa transição da classe trabalhadora para a classe média sem
uma mudança na estrutura produtiva, e isso depende de ações mais abrangentes do
que essas que nós tivemos até o momento”, adverte.
Na avaliação do economista, o crescimento do setor de
serviços com base em baixos salários e queda do setor industrial na
participação do PIB são fatores que impedem a transição de uma classe
trabalhadora para uma classe média assalariada no país. “Mas é claro que se
o Brasil tiver uma política de reindustrialização, de fortalecimento
de determinados setores industriais, associado aos serviços produtivos,
certamente terá condições de avançar em termos de uma classe média assalariada.
Do contrário, isso se torna mais difícil. O que se tem visto
no Brasil desde a primeira década deste século é uma difusão de
empregos não vinculados à indústria, mas aos serviços – pessoais,
sociais, de distribuição –, cujo emprego é de menor qualidade do que
aquele vislumbrado na indústria. Tanto é que dos 22 milhões de empregos que
o Brasil gerou, 95% são relacionados à faixa de até dois salários
mínimos mensais”, destaca.
Contradições
Apesar de as políticas públicas dos últimos anos terem
permitido aumento da renda salarial e terem incluído mais pessoas em programas
sociais, há uma série de contradições nesses processos. Entre os exemplos, o
economista menciona o Programa Minha Casa, Minha Vida, que possibilita a
construção da casa própria em “áreas que não vêm acompanhadas de serviços
públicos, transportes, áreas de lazer, postos de saúde, escolas”. Além disso,
pontua, “mais de dois milhões de jovens tiveram acesso ao ensino superior por
meio do ProUni e do Fundo de Financiamento Estudantil – Fies.
Apesar disso, evidentemente há problemas na educação brasileira”. E acrescenta:
“Há problemas, mas eles não estão sendo capturados pelas instituições
tradicionais, sejam elas associações de bairros, sindicatos, ou o movimento
estudantil”.
Autor do livro recém-lançado, O mito da grande classe média: capitalismo e estrutura social (São
Paulo: Boitempo, 2014), Pochmann comenta, na entrevista a seguir,
concedida por telefone, o mito em torno da classe média e a tendência a uma polarização
entre ricos e uma “classe trabalhadora mais alargada submetida a empregos
precários, com baixos salários, maior informalidade, maior flexibilidade nas
contratações”. Segundo ele, o emprego assalariado de classe média estava
associado ao capitalismo industrial, mas hoje há um deslocamento das indústrias
para a Ásia, “de tal forma que a divisão internacional do trabalho de classe
média sofre um deslocamento da classe média dos países europeus e da América
para a Ásia. É dentro desse contexto que o Brasil se coloca,
convivendo com o esvaziamento de empregos e da classe média tradicional”. E
conclui: “É por isso que a classe média se converte num mito, porque estamos
vendo uma estrutura de classe cada vez mais polarizada e não medianizada, como
foi o capitalismo do pós-Segunda Guerra, assentado no fordismo”.
IHU On-Line – Em que
consiste o mito da classe média do qual trata o seu livro O Mito da Grande
Classe Média – Capitalismo e Estrutura Social (São Paulo: Editora Boitempo,
2014)?
Márcio Pochmann – Este livro é resultado de uma
pesquisa que busca analisar o conceito de classe média, o qual foi utilizado,
ao longo do tempo, em situações muito distintas. Na constituição do capitalismo, a definição de classe média foi
adotada para identificar justamente a política nascente, os pequenos
empresários, como a classe média intermediária entre a aristocracia fundiária e
os trabalhadores. Esse é um conceito que foi se alterando, e tal como o
utilizamos ao longo do século XX, refere-se à classe assalariada em geral,
embora compreenda também a classe média proletária, os pequenos comerciantes,
que de certa forma, em algum momento, se transformariam em comerciantes
maiores, ou seriam incorporados nos segmentos maiores. A classe média
assalariada está relacionada ao que se identifica como sendo o capitalismo
urbano e industrial, associado à grande empresa, inclusive ao fordismo, que
permitiu, dentro das grandes empresas, o estabelecimento de ocupações
vinculadas à maior escolaridade. Nesse caso, trata-se especificamente dos
gerentes, dos administradores, dos supervisores, das atividades que demandam
ensino médio ou ensino superior.
O que conhecemos hoje sobre o conceito de classe média se
associa, portanto, à fase do desenvolvimento do capitalismo urbano e
industrial, associado à grande empresa privada, que foi responsável pela
geração de um segmento de salários mais altos e de empregos que se relacionavam
com um nível de educação superior ou ensino médio especializado (técnico).
Esse segmento tinha sua remuneração através de salários, os
quais, de maneira geral, eram complementados por benefícios, como cartão de
crédito, aluguel de moradia, pagamento de mensalidades escolares dos filhos dos
funcionários, de tal forma que a remuneração dessa classe média resultava do
salário mais os adicionais vinculados a metas de produção e venda.
Além dessa classe média assalariada da empresa privada,
também houve uma expansão da classe média assalariada vinculada ao Estado,
seja na administração pública, seja nos empregos oriundos através de concursos
públicos, como de juízes, promotores, oficiais das Forças Armadas, ou seja, uma
tecnocracia que se constitui em torno do Estado por meio do emprego público.
Esse segmento assalariado que se denominou classe média vem
apresentando sinais de decréscimo da década de 1970 para cá. Tanto é que a
literatura internacional especializada usa expressões como “adeus à classe
média” assalariada, seja a oriunda das empresas privadas, seja as do emprego
público. Isso porque houve uma transição da empresa privada anteriormente
organizada em torno do fordismo para a empresa organizada em torno do
toyotismo. Essa transição gerou a chamada empresa enxuta, na qual grande parte
do emprego foi externalizado, ou seja, saiu da grande empresa e se transformou
em serviços terceirizados, vinculados à produção, mas não mais vinculados à
grande empresa. Isso fez com que se tivesse uma redução do emprego assalariado
de classe média tradicional. Da mesma forma, a revolução informacional acabou
permitindo que várias das atividades que a classe média exercia fossem
agregadas a novas ocupações, que simplificaram a própria estrutura ocupacional
da classe média. Por fim, o avanço do próprio neoliberalismo terminou por
reduzir várias das funções do Estado, principalmente aquelas em que se tinha
uma tecnocracia avantajada com o enxugamento de vários empregos, de tal forma
que estamos caminhando para uma estrutura de ocupação, para uma estrutura de
classe desse capitalismo do século XXI, que de certa maneira vai comprimindo
o processo de medianização do pós-guerra.
Hoje estamos caminhando para uma polarização, porque esse
emprego de classe média está sendo comprimido, e avança, de um lado, uma classe
trabalhadora mais alargada submetida a empregos precários — há autores que
denominam esse fenômeno de o novo precariado —, com baixos salários, maior
informalidade, maior flexibilidade nas contratações, e, no outro extremo, há um
fortalecimento dos muito ricos, que vêm crescendo e indicando inclusive o
aumento da desigualdade. Por fim, esse emprego assalariado de classe média
estava muito associado ao capitalismo industrial, e observamos, hoje, olhando o
mundo como um todo, um deslocamento das indústrias e do emprego para
a Ásia, que responde por 80% da manufatura mundial, de tal forma que a
divisão internacional do trabalho de classe média sofre um deslocamento da
classe média dos países europeus e da América para a Ásia. É dentro desse
contexto que o Brasil se coloca, convivendo com o esvaziamento de
empregos e da classe média tradicional.
É por isso que a classe média se converte num mito, porque
estamos vendo uma estrutura de classe cada vez mais polarizada e não
medianizada, como foi o capitalismo do pós-Segunda Guerra, assentado no
fordismo.
Ainda existe uma
classe média?
Sim, existe, mas não nas proporções que se estabeleceram no
período anterior. É uma classe média mais contida, mas que convive com enormes
dificuldades de reprodução, seja porque os empregos tradicionais de classe
média têm dificuldade de serem expandidos, seja pelo esvaziamento industrial,
seja porque ela está submetida a uma competição muito acirrada, pois aquilo que
anteriormente era quase um monopólio de classe média e dos ricos, sofreu um
processo de universalização, de tal forma que hoje há mais pessoas qualificadas
para disputar empregos que, anteriormente, eram ofertados para segmentos de
classe média e, portanto, menor quantidade de pessoas disputavam postos de
trabalho de classe média. Hoje há mais pessoas e menos empregos.
Como se dá esse mito
da classe média no mundo? Por que não foi possível constituir uma classe média?
Algumas políticas poderiam ter sido implementadas nesse sentido?
O livro analisa o mito da classe média no mundo. Percebe-se
que o esvaziamento industrial, seja nos EUA, seja na União Europeia,
está levando ao esvaziamento da classe média nesses países, que são países que
convivem com uma estrutura social polarizada. No caso brasileiro, vive-se um
quadro de esvaziamento do setor industrial. Basta dizer que nos anos 1980 a
indústria respondia ao redor de um terço do PIB brasileiro e hoje é algo ao
redor de 20%. Houve um esvaziamento do setor industrial e ao mesmo tempo houve
um deslocamento de várias indústrias para diferentes regiões do país.
Então, o Brasil sofre desse problema. Mas é claro
que se o Brasil tiver uma política de reindustrialização, de
fortalecimento de determinados setores industriais, associado aos serviços
produtivos, certamente terá condições de avançar em termos de uma classe média
assalariada. Do contrário, isso se torna mais difícil. O que se tem visto no
Brasil desde a primeira década deste século é uma difusão de empregos não
vinculados à indústria, mas aos serviços – pessoais, sociais, de
distribuição –, cujo emprego é de menor qualidade do que aquele vislumbrado
na indústria. Tanto é que dos 22 milhões de empregos que o Brasil gerou, 95%
são relacionados à faixa de até dois salários mínimos mensais.
Esse é um aspecto interessante de ser destacado, porque a
geração desse tipo de emprego foi fundamental para incorporar um segmento da
sociedade que era praticamente intocável por políticas públicas. Porque se
fossem gerados empregos de quatro, cinco ou mais salários mínimos mensais,
dificilmente esses segmentos de baixa escolaridade, que viviam na
informalidade, teriam tido acesso ao emprego. Na minha avaliação, foi muito
positiva a expansão desse tipo de emprego, pois permitiu que determinados
segmentos da sociedade que estavam engajados na estrutura social pudessem ter
essa oportunidade. Além da geração de empregos, foram importantes as políticas
de renda – do salário mínimo, de transferência de renda, como o Programa Bolsa Família – associadas às políticas de
crédito e até mesmo à mudança dos preços relativos. O meu livro se debruça um
pouco sobre a análise da estrutura de preços, bens e serviços, e se percebe que
os preços dos produtos manufaturados não acompanharam a inflação, enquanto os
preços dos serviços subiram acima da inflação. Isso fez com que determinados
segmentos com menor renda pudessem, através da sua remuneração maior ou do
crédito, ter acesso a bens de consumo duráveis que até então não teriam.
Essa combinação
de acesso a crédito com aumento do salário mínimo permitiu
ascensão econômica de uma parcela significativa da população. À época do
governo Lula falava-se da ascensão da classe C, da “nova classe média”.
Contudo, apesar de ter possibilitado acesso ao mercado de consumo, essa
política teve contradições no sentido de não possibilitar acesso a outros bens,
tais como educação de qualidade, saúde? É possível fazer a transição da classe
trabalhadora para a classe média?
A mudança do conceito de classe média ao longo do
capitalismo está diretamente relacionada à estrutura produtiva, ou seja,
dependendo do tipo de emprego que o capitalismo gera, tem como reflexo uma
estrutura de classe. Todavia, o que tivemos no capitalismo industrial foi uma
melhora no nível de vida dos trabalhadores. Eu sempre gosto de dizer que, na
década de 1940, de cada dez operários franceses, apenas um tinha automóvel. Na
de 1970, de cada dez operários franceses, nove tinham automóveis. Eles elevaram
o nível de renda, tiveram acesso a crédito, ou seja, uma expansão do estado de
bem-estar social permitiu-lhes ampliar o consumo, ter acesso à casa própria,
mas isso não mudou a condição de classe: eles continuaram sendo operários.
O que acontece no Brasil simplesmente repete o que ocorreu
no pós-guerra nos países desenvolvidos. O que está acontecendo é a pauta que o
novo sindicalismo foi construindo desde as greves dos anos 1970, ou seja,
crescimento dos salários de acordo com a produtividade mais a inflação, melhora
nas políticas de renda, etc. Tudo isso permitiu uma ampliação ao acesso ao
consumo, melhorou a renda, o emprego, mas os valores continuam os mesmos. Os
serviços não foram profundamente alterados. Não obstante, apesar da elevação da
quantidade para o acesso à educação, a qualidade da educação no país ainda é
muito difícil. Então, imagino que não é possível fazer essa transição da classe
trabalhadora para a classe média sem uma mudança na estrutura produtiva, e isso
depende de ações mais abrangentes do que essas que nós tivemos até o momento.
O senhor disse
recentemente que o que acontece hoje é parecido com o que acontecia à época da
ditadura, referindo-se às pessoas que têm acesso ao Programa Minha Casa, Minha
Vida, mas moram distante e não têm acesso a outros bens. Isso é consequência de
que processo?
Aí é outro debate, porque a ampliação da classe trabalhadora
no Brasil desde os anos 1970, mesmo durante a ditadura, foi repleta de
contradições que geraram grandes possibilidades de mobilizações sociais. Quer
dizer, muitos trabalhadores saíam da zona rural e vinham para as cidades, que
não estavam preparadas para recebê-los, mas eles vinham trabalhar na indústria
moderna e não tinham habitação e transporte adequados.
Essas dificuldades foram muito bem compreendidas pelas
associações de bairro das áreas em que foram sendo construídas habitações,
gerando um ambiente de pressão e organização social. Ou seja, os anseios dos
trabalhadores foram capturados, se não pelas direções dos sindicatos, pelas
oposições às direções dos sindicatos, que souberam trabalhar e utilizar esse
mal-estar para forjar lutas que viabilizaram a transição para a ditadura e para
a criação de partidos políticos. Na realidade essa ascensão dos anos 1970 teve
a ver com a expansão do emprego industrial. O que acontece desde a primeira
década deste século é uma expansão de empregos de serviços, os quais têm uma
natureza distinta do trabalho industrial: é quase imaterial e não vem associado
ao surgimento de algo concreto e palpável, mas associado às tecnologias da
informação e comunicação, e estamos tendo dificuldades de representação desses
setores que emergiram no Brasil. Basta dizer que, segundo pesquisas, de
cada dez novos empregos gerados, apenas dois trabalhadores buscaram os
sindicatos. Há várias razões que explicam isso, mas não quer dizer que os
trabalhadores não estão vivendo um quadro de contradições.
Nesse sentido, o Programa Minha Casa, Minha Vida está sendo construído em
muitas áreas que não vêm acompanhadas de serviços públicos, transportes, áreas
de lazer, postos de saúde, escolas. Há problemas, mas eles não estão sendo
capturados pelas instituições tradicionais, sejam elas associações de bairros,
sindicatos, ou o movimento estudantil. Mais de dois milhões de jovens tiveram
acesso ao ensino superior por meio do ProUni e do Fundo de
Financiamento Estudantil – Fies. Apesar disso, evidentemente, há problemas na
educação brasileira, mas esses problemas não são capturados pelo movimento
estudantil.
Acredito que isso está associado ao descolamento entre as
insatisfações desse novo mundo do trabalho no país e as instituições que devem
representá-lo e que hoje têm grande dificuldade para fazer isso. Talvez
estejamos próximos de viver um novo ciclo de instituições, como ocorreu nos
anos 1970, sem que o governo à época oferecesse resultados adequados.
Guardadas as devidas proporções, acho que estamos numa
situação parecida. Basta ver o que acontece hoje: sindicatos e empregadores
firmam um acordo de trabalho, e no dia seguinte tem uma paralisação porque os
trabalhadores não foram consultados ou estão insatisfeitos com o acordo. Isso
demonstra que não estamos caminhando para uma sociedade homogênea, medianizada,
mas para uma sociedade mais polarizada, tensa, em torno dos direitos que têm de
ser adequados às demandas.
As manifestações de junho passado são um reflexo desse
mito da classe média ou ao menos dessa ascensão econômica que não gera outros
ganhos para a população?
Essa mobilidade social que aconteceu é positiva e demonstra
que um segmento que parecia intocável por políticas públicas passou a ter
acesso a emprego, a programas de capacitação, programa habitacional — o país
tem um grande déficit habitacional concentrado nas famílias de baixa renda. Há
iniciativas fundamentais e importantes que representam uma inversão de
prioridades do Estado brasileiro, mas ao mesmo tempo não podemos deixar de
lembrar que há contradições nessa ascensão social, as quais derivam da falência
das grandes cidades brasileiras, das catástrofes que foram as cidades em termos
de investimento público a partir das décadas de 1980 e 1990, ou seja, houve uma
paralisia em termos de investimento de mobilidade social. Temos contradições que
exigem um programa de reformas que olhem para essa situação. O problema das
cidades é o grande estopim para grandes manifestações, porque o cotidiano da
vida nas cidades é muito perverso: as pessoas saem cedo de suas casas e voltam
tarde. Hoje vivemos uma sociedade de serviços e isso requer um reposicionamento
do Estado brasileiro em relação a essa questão.
Inclusive as manifestações ocorridas desde o ano passado têm
demandas voltadas para os serviços, sejam privados ou públicos: bancários, de
saúde, de educação, de transporte.
O Brasil parece ser visto com bons olhos no exterior no
sentido de ser um país em ascensão econômica e desenvolvimento, se comparado
com outros países que estão em crise atualmente. No que se refere ao
crescimento econômico e ao desenvolvimento, o Brasil está num caminho certo ou
também pode-se falar de um mito nessa área?
O Brasil como país subdesenvolvido tem
determinados graus de autonomia em momentos em que os países do centro do
capitalismo vivem em crise. Tivemos dois momentos que se assemelham ao que
estamos vivendo no mundo de hoje: um ocorreu no final do século XIX, do
ano de 1873 a 1896; e o segundo foi a grande depressão de 1929-1939. Esses dois
períodos de problemas sérios abriram para o Brasil a possibilidade
de trilhar caminhos próprios e ele o fez, seja na década de 1980, quando fez
uma reforma política, seja a mudança mais antiga de passar do Império para
República. Isso permitiu ao Brasil se inserir no ciclo de comércio
mundial e através da economia cafeeira criar as bases para a própria
industrialização a partir de 1930. Na segunda grande depressão,
o Brasil fez uma transição, abandonando a sociedade agrária e
construindo um setor urbano e industrial.
Hoje o país está criando um novo caminho — não muito bem
identificado —, mas é um caminho que permitiu ao Brasil se diferenciar do que
está acontecendo no mundo. Basta ver que segundo a Organização Internacional do Trabalho - OIT, entre 2008 e
2013, o mundo destruiu 62 milhões de empregos e o Brasil criou 11 milhões de
empregos. Isso é uma demonstração de que o Brasil está trilhando um caminho
próprio, o qual deriva de uma maioria política que dá sustentação a iniciativas
dessa natureza, em defesa da produção e do emprego. Apesar da dificuldade
internacional, o Brasil segue crescendo. Cresce um pouco menos, mas esse
crescimento permite continuar reduzindo a pobreza e a própria desigualdade de
renda. Há um ambiente internacional desfavorável, mas oBrasil dá passos
firmes no sentido de evitar o aumento da pobreza e da desigualdade como estamos
vendo nos países ricos.
O livro Capital in the Twenty-First Century (O capital no
século XXI), do economista Thomas Piketty, retomou o debate em relação às desigualdades sociais. Para o senhor, quais são as razões
de ainda termos tantas desigualdades?
A desigualdade é um fenômeno intrínseco ao capitalismo. A
natureza do capitalismo é a produção da desigualdade. A desigualdade entre
aqueles que têm propriedade e condições de constituir sua renda oriunda de
lucros, aluguéis, da terra, são segmentos que acumulam e ampliam a sua renda e
o seu poder de forma mais rápida em relação a outros que não possuem
propriedade, mas somente o seu próprio esforço, através do trabalho, de
acumular riqueza.
Em 2003, foi publicado o livro Os ricos no Brasil, que
utiliza dados equivalentes aos que Piketty utilizou, e mostra que 20 mil famílias
controlam quatro quintos da propriedade brasileira. A desigualdade da
propriedade é muito maior do que essa desigualdade que medimos através do fluxo
de renda do trabalho ou de benefícios de políticas públicas que é capturado pelo IBGE. Então, se
considerarmos outras fontes de renda que não a do trabalho, é possível perceber
melhor as desigualdades.
O fato é que com o processo de financeirização e
globalização, esse 1% de ricos analisados por Piketty se constituiu
numa grande elite mundial que vem sendo favorecida enormemente pelo processo de
financeirização do capitalismo.
A tentativa de resolver as desigualdades já é recorrente e
há um certo consenso teórico acerca da tributação de grandes fortunas. A
questão é que não há maioria política no mundo para se fazer esse tipo de
tributação, sobretudo em países como Inglaterra e EUA, que são
os principais centros financeiros. Eles não aceitam essa proposta, de modo que
é muito difícil a aplicação de políticas dessa natureza. De certa forma, também
se abre uma lacuna, porque até a década de 1980-1990 a construção
do Estado era apenas de caráter nacional, mas hoje estamos diante de
um capitalismo global que exige uma regulação supranacional; e esse é um dos
grandes desequilíbrios que temos hoje. Esse desequilíbrio gera pressões e
basicamente aprofunda ainda mais o processo de desigualdade entre pessoas,
classes e países.
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