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terça-feira, 22 de janeiro de 2013

Crítica da Razão Econômica

Olá alunos,

A postagem de hoje, se tivesse que classificar em um ranking de interesses, certamente seria a mais interessante. Ela traz uma rica reflexão acerca dos rumos que a humanidade tem tomado, permitindo que cada vez mais a organização de mercados venha interferir nas formas de organização social, tomando como ponto de partida o caso de Ingrid Migliorini, que vendeu sua virgindade. Não obstante a reflexão por si só já ser bastante interessante, ela ainda inclui diversos autores célebres como Kant e o novo fenômeno mundial, direto da Universidade de Harvard, Michael Sandel, autor do livro que eu recomendo: "Justiça, o que é fazer a coisa certa".  Essa reportagem foi publicada na Revista Veja e foi editada em alguns pontos. Espero que gostem e participem.

Yuri Antunes Moreira
Monitor da disciplina ''Economia Política e Direito" da Universidade Federal Fluminense.


Vender a virgindade e comprar o apoio de partidos políticos são duas atitudes que revelam em seus autores a mesma concepção utilitarista e rasa da vida. Uma deprecia a intimidade. A outra ultraja a democracia", diz a Carta ao leitor desta edição. As duas reportagens que se seguem aprofundam esses conceitos. Ambas tratam dos limites do exercício do poder – sobre o próprio corpo e sobre a sociedade. São questões tão fundamentais quanto antigas. A espécie humana só começou a construir a civilização quando, conquistados o fogo, a agricultura e, posteriormente a escrita, aprendeu a conter o poder dos indivíduos. Foram esses freios que permitiram a constituição de famílias e clãs, que evoluíram para os estágios de tribo, cidade e estado na longa caminhada humana. Portanto, quando se discute hoje se tudo pode ser vendido e comprado, se a tudo é possível atribuir um preço, o que está em jogo são os freios éticos. No século IV antes de Cristo, o grego Aristóteles, refletindo a sabedoria de filósofos que o precederam, assentou a pedra fundamental da catedral de valores éticos e políticos que nos permite hoje condenar a compra de votos pelos mensaleiros do PT. Quase 2000 anos depois de Aristóteles, o alemão Immanuel Kant reagiria ao utilitarismo de Jeremy Benthan e afetaria seu discípulo Stuart Mill com a noção de que, para distinguirem o certo do errado, as pessoas têm a razão, que conecta cada uma delas ao conjunto da humanidade. Nesse contexto, o certo é o ato individual que, se repetido por toda a humanidade, a tornaria melhor. Kant, portanto, condenaria Ingrid Megliorini.

 Crítica da razão econômica

 O mercado é a melhor ferramenta para criar e distribuir riquezas, mas há um enorme perigo em acreditar que se possa pôr um preço em tudo. Valores familiares, ideais e senso cívico são inegociáveis

Nesta terça-feira, 20, em algum ponto entre a Austrália e os Estados Unidos, a catarinense Ingrid Migliorini, de 20 anos, perderá sua virgindade. Seguranças ficarão a postos para garantir que certas regras sejam cumpridas. Não haverá troca de carinhos ou beijos na boca nessa "primeira vez". O encontro terá a duração mínima de uma hora, mas poderá ser prolongado conforme a vontade de Ingrid. Tudo se passará a bordo de um avião, sobre águas internacionais, para escapar do alcance das leis dos países. Ingrid leiloou sua virgindade. O vencedor do leilão, um japonês identificado apenas como Natsu, deu o lance mais alto — 780000 dólares, o equivalente a 1,6 milhão de reais. A saga, digamos assim, de Ingrid está sendo documentada pela rede de televisão australiana que criou o Virgins Wanted (Procuram-se Virgens). Além dela, o russo Alexander Stepanov também participou, mas só conseguiu 2 600 dólares por sua virgindade.

 A ousadia de Ingrid não pode ser entendida apenas como um ato de compra e venda. É mais do que isso. "É um exemplo perfeito para retratar uma era em que todas as relações, sejam emocionais, sejam cívicas, estão tendendo a ser tratadas pela lógica da economia de mercado", diz Michael Sandel, o filósofo-celebridade da Universidade Harvard, nos Estados Unidos Sandel diz que passa da hora de abrir um debate amplo sobre o processo que, nas palavras dele, "sem que percebamos, sem que tenhamos decidido que é para ser assim, nos faz mudar de uma economia de mercado para uma sociedade de mercado". A economia de mercado é o corolário da democracia no campo das atividades produtivas. Não é um regime perfeito, apenas é melhor que todos os outros. Mas o que seria uma "sociedade de mercado"? É uma sociedade qual as adolescentes podem pôr em leilão sua virgindade sem que isso produza mais do que uma simples discussão sobre o preço e as reais condições de inviolabilidade em que o produto será entregue ganhador. É uma sociedade em que valores sociais, a vida em família, a natureza , a educação, a saúde, até os direitos cívicos podem ser comprados e vendidos. Em resumo, uma sociedade em que todas as relações humanas tendem a ser mediadas apenas pelo seu aspecto econômico. Já chegamos a ela? Segundo Michael Sandel, felizmente ainda não, mas estamos a caminho.

 A visão prioritariamente econômica dos fenômenos sociais tem seus méritos. Gary Beefcer, o famoso professor da ; Universidade de Chicago, ganhou o Prêmio Nobel de Economia em 1992 por suas pesquisas a respeito do fundamento econômico de certas decisões humanas importantes — entre elas o casamento e o divórcio. Outro expoente acadêmico dessa maneira de ver o mundo é o jurista americano Richard Posner. Os dois colaboram em um blog na internet em que, invariavelmente, sustentam que é certíssimo que as pessoas decidam o que fazer pensando apenas nos custos e benefícios de suas opções. A dupla é a favor de que seja posto a funcionar um mercado de órgãos. Eles argumentam que o altruísmo de doadores e suas famílias é insuficiente para satisfazer a demanda.

 Na visão de Becker e Posner, o mercado viria em socorro dos necessitados de órgãos — seja um rim, seja um pedaço do fígado, que podem ser extraídos ao custo de expor a própria vida a um risco que chega a 50%, A conta deles é irrefutável. Se existisse um mercado de órgãos, as filas nos serviços de transplante acabariam e milhares de mortes seriam evitadas. O jurista da dupla, Richard Posner, advoga também a venda de bebês recém-nascidos pelas mães que não se sintam capazes de lhes dar um lar e uma educação decente. A lógica é a mesma aplicada ao transplante de órgãos. Um mercado de bebês acabaria com as filas para adoção, e isso ainda teria um impacto social altamente positivo, pois aumentaria em muito a chance de um maior número de crianças crescer em meio a famílias abastadas, equilibradas socialmente e que valorizam a educação de qualidade.

 A ideia de um mercado de órgãos e de bebês é perfeitamente defensável quando se analisa apenas o aspecto econômico das proposições. Mas, em se tratando de relações humanas, existem muitas e outras variáveis que não podem ser desprezadas. Entre elas, é claro, o poder do dinheiro. Em pouco tempo, sustentam os adversários de Becker e Posner, os miseráveis seriam fatalmente doadores de órgãos e vendedores de crianças e os ricos, os beneficiados pela solução de mercado. Os dilemas individuais também seriam atrozes. Um deles, muito amargo, seria produzido, por exemplo, por uma mãe que se arrependesse de ter vendido o bebê. Ou, pior ainda, uma mãe que tenha sido obrigada por um marido cruel a vender o filho contra sua vontade. Portanto, o mercado funciona na economia, mas nem todas as relações sociais podem ou devem ser mediadas por sua lógica de compra e venda. Muitos se esquecem, por exemplo, de que os bancos de sangue americanos experimentaram sua maior escassez quando, em 1970, a venda de sangue foi legalizada nos Estados Unidos. Quem doava por altruísmo deixou de doar e não apareceram vendedores de sangue em número suficiente para compensar essa perda.

 O grande adversário dessa linha de pensamento, o filósofo Michael Sandel, está a anos-luz de distância de propor que o mercado é um mal em si. Ele reafirma sempre que, com todos os seus defeitos, o mercado ainda é a forma mais eficiente de organizar a produção e distribuir bens. Reconhece que a adoção de economias de mercado levou a prosperidade a regiões do globo que nunca a haviam conhecido. Sandel enfatiza também que, junto com a adoção da economia de mercado, vem quase sempre o desenvolvimento de instituições democráticas, ambas baseadas na liberdade. Os riscos apontados por Sandel, portanto, são de outra natureza. Ele alerta para o fato de que, por ser tão eficiente na economia, a lógica econômica está invadindo todos os outros domínios da vida em sociedade.

 Sandel se assusta com o fato de, em certas cidades americanas, carros de polícia circularem com placas de publicidade, penitenciárias permitirem que escritórios de advocacia anunciem seus serviços aos detentos logo após a prisão ou, ainda nessa mesma área, cadeias municipais oferecerem, em troca de dinheiro, celas vips confortáveis a quem possa pagar por elas. Ele se assusta também com o fato de que por 500000 dólares qualquer estrangeiro pode se tomar americano, comprando a cidadania. Diz Sandel: "Não acho que colocar no mercado serviços públicos e valores cívicos possa trazer qualquer benefício para as sociedades".

 Ele tem toda a razão. É evidentemente doentia uma sociedade em que seja natural vender o filho recém-nascido, anunciar o próprio rim nos classificados dos jornais, leiloar a virgindade ou comprar votos ou a cumplicidade de partidos políticos e parlamentares. Que pensariam os fundadores dos Estados Unidos, que conquistaram no campo de batalha a independência do país, se soubessem que a cidadania americana está à venda? Colocar certas coisas no mercado sinaliza que elas podem ter preço, mas não têm valor. Nações são erguidas sobre valores.

 Se o mercado de órgãos e bebês é ainda hipotético, há exemplos mais concretos da adoção da lógica econômica em esferas que antes eram impermeáveis a ela. É o caso das empresas especializadas na compra de apólices de seguro de vida de pessoas com doenças graves nos Estados Unidos. Pacientes que não esperam viver muito vendem seu seguro por uma fração do prêmio estipulado e usam o dinheiro para custear seu tratamento ou apenas obter conforto nos último meses de vida. Quanto mais rápido vier a morte, maior será o lucro de quem comprou a apólice. Esses "derivativos da morte" têm até um índice nacional com suas cotações diárias. Se as duas partes envolvidas lucram com os "derivativos da morte" e não há danos a terceiros, por que razão eles seriam antiéticos? Diz Sandel: "Quem sabe o problema moral não esteja nos danos tangíveis, mas no efeito corrosivo sobre o caráter dos investidores".

 Colega de Sandel em Harvard, o economista Roland Fryer Jr. tomou-se célebre por defender o uso de incentivos e o dinheiro para que alunos façam o dever de casa. Para Fryer, boas notas, é comparecimento em aula e a leitura de livros deveriam ser recompensados com dinheiro. Funcionou por um tempo em algumas escolas. Mas logo os professores começaram a notar que aquilo que deveria ser feito por orgulho de melhorar as notas ou pelo fato de o aluno e sua família darem valor ao estudo passou a ser feito só por dinheiro. Quando a mesada de incentivo cessava, os alunos regrediam ao estágio anterior sem ter aprendido nenhuma lição para o resto da vida. Vão ter de aprender mais tarde que dignidade, autonomia e valores éticos não podem ser medidos pelo seu preço.

 O filósofo que ligou o alarme


 0 filósofo Michael Sandel é uma estrela em Harvard. Seu curso Justiça, que virou livro em 2009, já foi frequentado por mais de 15000 alunos, formou-se um fenômeno na internet. Sua primeira aula teve 4 milhões de visualizações no YouTube. No livro O que o Dinheiro Não Compra, ele discute os limites éticos do mercado. Sandel disse ao jornalista de VEJA Guilherme Rosa que os casos de Ingrid Migliorini e do mensalão são exemplos da aplicação da lógica de mercado em domínios em que ela deveria ficar ausente.

 Em seu livro, o senhor faz uma distinção entre economia de mercado ema sociedade de mercado. Qual a diferença?

A economia de mercado é uma ferramenta valiosa e efetiva para organizar a atividade produtíva. Trouxe prosperidade e riqueza para diversas sociedades ao redor do mundo. Uma sociedade de mercado, no entanto, é diferente. Nela tudo está à venda. É um modo de vida no qual o pensamento econômico invade esferas a que ele não pertence.

 O senhor acha que já vivemos nesse tipo de sociedade em que tudo se vende e tudo se compra, sem limites éticos?

Acho que é uma tendência que vem se desenvolvendo desde o começo da década de 80 do século passado. Hoje, muita gente tem no pensamento econômico como o único instrumento para atingir o bem público. O Freakonomics (livro lançado em 2005, de Steven Levitt e Stephen Dubner) é um símbolo da tentativa de explicar qualquer comportamento humano em termos puramente econômicos. Essa visão isoladamente é limitada e desconsidera os valores morais, as atitudes e as complexidades das relações humanas. Precisamos desafiar essa ideia. 0 mercado produz riquezas materiais, mas sua lógica não pode dominar todas as demais relações entre as pessoas, isso é empobrecedor.

 Em que situações a lógica da economia de mercado pode se tornar perigosa para a sociedade?

Sempre que os mecanismos de mercado são introduzidos em esferas novas da vida, precisamos fazer duas perguntas. A primeira é se a escolha dos indivíduos envolvidos nas transações é realmente voluntária ou se existe um elemento de coerção. No caso da prostituição, precisamos questionar se a pessoa que vende seu corpo é desesperadamente pobre. Sua escolha pode não ser livre de verdade. A segunda pergunta deve ser sobre a degradação e a corrupção de certos valores. Alguém pode se opôr à prostituição dizendo que ela é intrinsecamente degradante. E a tira o valor da sexualidade e torna a pessoa humana em um objeto, um instrumento de uso e lucro.

 Por que o ato de estabelecer o preço de estabelecer o preço de algo altera o seu valor?

Bem, esse é o ponto central de meu argumento. Muitos economistas acreditam que o mercado não altera a qualidade ou o caráter dos bens. Acho absurdo que um estrangeiro possa se tornar cidadão americano apenas por ser rico o bastante para comprar a cidadania. Essa é uma realidade em nosso país.
  Isso ajuda a explicar a repulsa ao leilão de virgindade realizado pela brasileira Ingrid Migliorini?

Sim, isso joga luz sobre a degradação envolvida nesse leilão. Essa história é uma ilustração chocante da nossa tendência de colocar uma etiqueta de preço em tudo. Outro exemplo dessa tendência é a compra de votos, Do ponto de vista da lógica do mercado, faz sentido alguém que não se importa com seu voto vendê-lo ao melhor comprador. Mas nós não deixamos isso acontecer, porque não encaramos o voto com propriedade privada, mas como um dever cívico que não deveria estar à venda.



 Como podemos saber em quais áreas a lógica de mercado pode atuar por ser útil à sociedade?


É uma questão muito difícil, e eu acho que uma das razões para isso é que nas últimas décadas nós fomos muito relutantes em debater esse tema publicamente. Não podemos mais evitar a discussão sobre o significado dos valores morais e das circunstâncias nas quais eles se degradam. Todas as visões; sejam elas religiosas ou seculares, deveriam ser convocadas para um debate democrático e amplo sobre esse assunto. Sem dúvida, as respostas serão diferentes para a educação e para a saúde, para a vida privada e para a pública.

4 comentários:

  1. Na minha opinião é um absurdo a visão defendida pelo jurista Posner.Não há dúvida de que defender um mercado de órgãos é algo extremamente ingênuo, seria apenas uma visão unilateral, ou seja, o jurista não está enxergando as consequências que isso traria.Se atualmente já ocorre tráfico de órgãos, sendo proibida a sua venda, imagine se isso for legalizado.Diversas pessoas irão ser assassinadas só para terem seus órgãos roubados.Enfim, concordo plenamente com o que Michael Sandel disse em relação à sociedade estar caminhando a um estágio de sociedade de mercado e adorei a postagem acerca do livro "justiça, o que é fazer a coisa certa".É sempre interessante conhecer outros livros, ainda mais sendo da área do Direito.

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  2. Interessante o texto , principalmente, ao corroborar a distinção de economia de mercado e sociedade de mercado. Um assunto bastante ligado em outras matérias que estamos dando no período. Parabéns!

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  3. Que bom que vocês gostaram. Concordo com sua opinião Carlos Araújo embora há de se reconhecer que existe sim um pouco de razão em alguns pontos que o jurista Posner defendeu. Alguns, reitero.

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  4. Não há dúvida de que o jurista Posner possui razão em alguns momentos, porém ele não está enxergando as consequências desse tipo de legalidade, ou seja, um ponto de vista apenas unilateral reafirmo. Mas muito importante você ressaltar esse ponto, obrigado.

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