Poucas reuniões recentes suscitaram tantas expectativas internacionais quanto a da OTAN em Vilnius, capital da Lituânia, em 11 de julho passado. Discutiram-se ali novos passos do apoio à Ucrânia em sua guerra contra a Rússia. O resultado foi resumido num extenso documento de 30 páginas e 90 parágrafos, no qual não há uma única referência à América Latina.
Isto pode parecer normal. O tratado da OTAN define o Atlântico Norte como sua área de operações, e aos seus 12 países fundadores foram juntando-se outros 19, dos quais 15 são da Europa de Leste, depois da dissolução da União Soviética. Nenhum país latino-americano pertence à região, nem é membro da instituição e, com exceção da Costa Rica, nenhum aderiu às sanções impostas à Rússia pelos países da OTAN e seus aliados.
Mas a geografia provavelmente não esgota a explicação. Nas últimas décadas, a OTAN estendeu suas filiações a toda a Europa, até as fronteiras da Rússia, e o comunicado de Vilnius indica, no primeiro parágrafo, sua aspiração de assegurar a defesa coletiva de seus membros contra todas as ameaças, numa visão de 360 graus. Em outras palavras, o mundo inteiro.
Não se trata de discutir aqui afirmações do documento como a natureza defensiva da organização, nem o reconhecimento de sua dependência das forças nucleares estratégicas dos Estados Unidos, nem sua visão sobre a origem da guerra na Ucrânia, nem os acordos adotados para apoiar o país em sua guerra contra a Rússia. Trata-se aqui de outra questão: tentar entender a reiterada ausência da América Latina em documentos recentes de potências e organizações internacionais, nos quais a região ou não é mencionada, ou é citada apenas de forma secundária. Quanto à OTAN, é completamente ignorada, como já indicamos.
O documento faz referência a vários casos sensíveis para a estabilidade da Europa, como os Balcãs Ocidentais; menciona a importância da paz entre Bósnia e Herzegovina, as relações com a Sérvia, Kosovo, Geórgia (que pretende ingressar na aliança) e Moldávia, e reconhece que o papel de seus aliados não europeus é essencial para a defesa da Europa.
Destacam a República Popular da China como uma ameaça aos interesses, à segurança e aos valores da Aliança e que os desdobramentos na região do Indo-Pacífico “podem afetar diretamente a segurança euro-atlântica”. Saúdam a contribuição de seus aliados na região – Austrália, Japão, Nova Zelândia e Coreia do Sul – e ressaltam a importância das relações da OTAN com as Nações Unidas, a Organização para a Segurança e Cooperação na Europa (OSCE) e a União Africana. Reiteram sua determinação em impedir o Irã de desenvolver armas nucleares e condenam o programa de mísseis balísticos da Coreia do Norte.
Fazem referência aos vizinhos do sul da OTAN, particularmente o Oriente Médio, o Norte da África e o Sahel. Reafirmam a intenção de estabilizar a situação no Iraque, a importância geopolítica do Mar Negro, do Oriente Médio e de África. Mas a América Latina nem sequer aparece no parágrafo 68, no qual se afirma que a segurança energética desempenha um papel importante na segurança global, nos mesmos dias em que foi confirmada a descoberta da maior reserva de lítio do mundo na Bolívia.
Nenhum lugar para a América Latina
Talvez devêssemos procurar um lugar para a América Latina em outro local. Em outubro do ano passado, a Casa Branca publicou um documento sobre sua “National Security Strategy”. Se não devemos esperar referências especiais à América Latina num documento da OTAN, pareceria lógico encontrá-las nas definições estratégicas dos Estados Unidos, cuja longa e estreita relação com o hemisfério faz parte da história.
Na introdução do documento, Joe Biden compromete-se a continuar defendendo a democracia ao redor do mundo e celebra a renovação de uma formidável rede de alianças. Primeiro, com a União Europeia; depois, com o Quad na região do Indo-Pacífico, com a qual estabeleceu também um marco de cooperação econômica. Só em quarto lugar é citada sua iniciativa para a região, a “Parceria das Américas para a Prosperidade Econômica”, lançada em junho de 2022.
O documento de 48 páginas analisa os interesses estratégicos dos Estados Unidos por região. No que diz respeito à América Latina, em duas páginas, é abordada a promoção da democracia e de uma suposta “prosperidade compartilhada”. Entre os objetivos da Parceria está o de “restaurar a fé na democracia” na região, prometendo criar bons empregos e lidar com a desigualdade econômica. Não são objetivos menores, com países como os próprios Estados Unidos, ou o Brasil, ainda comovidos com as tentativas de subversão da ordem política e com a promoção de protestos violentos para desconhecer eleições por parte de apoiadores dos ex-presidentes Trump e Bolsonaro, para citar apenas dois casos extremos de tensões políticas renovadas, sustentadas por uma crescente disparidade econômica.
Em 27 de janeiro de 2023, a Casa Branca pretendia relançar, num evento ministerial com a participação de doze países da região, a proposta da Parceria que, apesar de tudo, definha sem qualquer perspectiva de desenvolvimento. No entanto, aqueles que, do fato que a América Latina é pouco mencionada nestes acordos, tiram a conclusão que seu papel é secundário na ordem internacional deveriam ler as duas páginas nas quais a National Security Strategy se refere à região.
O documento afirma que “nenhuma região tem um impacto mais direto no país do que o Hemisfério Ocidental”. Com um comércio anual de 1,9 trilhão de dólares, “com valores compartilhados e tradições democráticas”, a região tem contribuído decisivamente para a prosperidade e resiliência dos Estados Unidos, cuja segurança e prosperidade estão ligadas às de seus vizinhos, reconhece o documento.
Entre seus objetivos estão também “proteger-nos de interferências externas, incluindo da República Popular da China, Rússia ou Irã”, e, “em aliança com a sociedade civil e com outros governos, apoiar a autodeterminação democrática dos povos da Venezuela, Cuba e Nicarágua”. Reconhece-se, assim, a ingerência no processo político dos nossos países, a desestabilização permanente sustentada, no passado recente, por golpes civil-militares e, atualmente, por sanções econômicas unilaterais cujos efeitos devastadores, no caso de Cuba, já têm mais de 60 anos. Sanções condenadas todos os anos praticamente por unanimidade pela Assembleia Geral das Nações Unidas, sem que a Casa Branca acate nenhuma dessas resoluções.
A quinta-coluna
Sob sanções drásticas, Cuba, assim como a Venezuela e a Nicarágua, enfrentam enormes dificuldades não só para manter suas economias funcionando, mas também para desenvolver sua vida política com alguma normalidade, uma vez que a oposição conta com a deterioração econômica causada pelas sanções de Washington e com o apoio político de uma vasta rede de ONGs que a financiam com recursos, publicidade e capacitação profissional.
Muito recentemente, em 20 de julho, a subsecretária de estado para os assuntos políticos dos Estados Unidos, Victoria Nuland apelou ao Brasil, numa entrevista ao jornal O Globo, que utilizasse sua “liderança” e habilidade diplomática para influenciar as eleições na Venezuela, de modo a conseguir um jogo “livre e justo” em que “todos os candidatos possam concorrer”. O presidente Nicolás Maduro já tinha se referido a estas iniciativas norte-americanas, exigindo eleições livres das sanções econômicas impostas ao país por Washington, cuja intervenção a favor da oposição impossibilita a realização de eleições “livres e justas”.
O que gostaríamos de sugerir neste artigo é que precisamente esta “quinta-coluna”, financiada e organizada por Washington, é o que torna desnecessário, e inclusive inconveniente, fazer referência detalhada às políticas para a América Latina, num cenário em que a intervenção externa requer, na verdade, discrição.
De Vilnius à CELAC
Mas houve mudanças no papel da América Latina na cena internacional. A presença de Lula, desde que assumiu novamente a presidência do Brasil em janeiro último, é o fator mais importante dessas mudanças, facilitando o ressurgimento da Unasul, acrescentando novas propostas para lidar com o conflito entre Rússia, Ucrânia e OTAN, redefinindo os termos das relações com a União Europeia, ou retomando a atividade dos BRICS, que se reunirão em agosto na África do Sul.
Em 30 de maio, Lula reuniu-se em Brasília com chefes de Estado latino-americanos (a única ausência foi a do Peru), incluindo o presidente venezuelano Nicolás Maduro, cujo isolamento faz parte da política promovida por Washington, com o apoio de governos conservadores e aliados políticos regionais: a “quinta-coluna”. Uma “quinta-coluna” que desvincula seu projeto de qualquer projeto de desenvolvimento nacional e faz lembrar a “quinta fronteira”, a que representava para o Panamá – nas palavras do general Omar Torrijos – a Zona do Canal, então nas mãos dos Estados Unidos.
Os fatores que unem a região “estão acima das ideologias”, afirmou Lula, referindo-se a uma possível reativação da Unasul. “Nenhum país pode enfrentar as ameaças atuais de forma isolada”. Uma ideia que reiterou na reunião com o Fórum Empresarial da União Europeia, em 19 de julho: “O Brasil só crescerá de forma sustentável com a integração do nosso entorno regional”.
Diante desta realidade e das mudanças que a guerra na Europa significaram para a cena internacional, a correspondente em Bruxelas do diário catalão La Vanguardia, Beatriz Navarro, ressaltou que “depois de anos de esquecimento e desinteresse, que outros atores globais – leia-se a China – aproveitaram a fundo para expandir sua influência na região, a União Europeia voltará hoje seu olhar para a América Latina e o Caribe com a realização da primeira cúpula de chefes de estado e de governo de ambos os blocos desde o distante 2015”.
Na ocasião, o presidente brasileiro reiterou uma vez mais a necessidade de uma aliança que ponha fim a uma divisão internacional do trabalho que só tem significado pobreza para a maior parte da região, com nosso papel de fornecedores de matérias-primas e de mão de obra migrante barata. Lembrou que, em 2009, os países desenvolvidos concordaram em destinar 100 bilhões de dólares por ano aos países em desenvolvimento, um compromisso “que nunca foi cumprido”. A frase lembra-nos que esses 100 bilhões de dólares na verdade foram gastos, em alguns meses, no fornecimento de armas à Ucrânia, numa indicação das prioridades do Ocidente.
Para o diretor do La Vanguardia em Madri, Enric Juliana, a posição dos países latino-americanos sobre a guerra na Ucrânia, expressa na cúpula da CELAC com a União Europeia, explica-se pelo fato de “não quererem confrontar diplomaticamente a Rússia e a China, por razões econômicas, mas também políticas”. Juliana, tal como os líderes europeus, tem dificuldade em entender que, para Lula, é urgente reformar a governança global, como ele explicou na Europa, e que “dividir o mundo em blocos antagônicos não faz sentido”.
Com o mundo em transição, talvez valha a pena ouvir mais uma vez as palavras do acadêmico e diplomata de Cingapura Kishore Mahbubani, uma figura que precisa ser ouvida na América Latina para uma visão mais equilibrada destas mudanças. Em seu mais recente livro, The Asian 21st century (com livre acesso), reitera sua ideia de que o século de predomínio norte-americano terminou e que as tentativas de Washington para conter a China apenas acabarão isolando os Estados Unidos do resto do mundo. Os editores de seu livro esperavam cerca de 20.000 visitas ao texto, disse Mahbubani. No entanto, já ultrapassaram três milhões.
A “quinta-coluna” não nos ajuda a pensar nesse mundo no qual a América Latina ainda não encontrou seu lugar, apesar das recentes iniciativas para reforçar sua unidade e desempenhar um papel nos esforços de paz que renovem a governança global e ponham fim a uma visão de mundo baseada em blocos antagônicos.