Caros leitores,
Nos últimos dias aprovou-se, no Congresso Nacional, o projeto de lei que viabiliza o processo de privatização dos Correios. A ideia, considerada controvertida e alvo de críticas por parte dos especialistas, atua como um contraponto com algumas experiências de potências desenvolvidas do globo, tal como os Estados Unidos que mantém, ao mesmo tempo, um serviço aberto ao mercado com a participação ativa de uma companhia pública.
Nesse sentido, trazemos hoje uma notícia que busca analisar as razões pelas quais a USPS norte-americana sempre resistiu às privatizações, mesmo em um país marcado pelo liberalismo econômico e por uma percepção de participação minoritária do Estado no ambiente econômico.
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Ygor Alonso é membro do Grupo de Pesquisa em Estado, Instituições e Análise Econômica do Direito (GPEIA/UFF).
Dos anos 1990 para cá, mais de uma dezena de países, a maioria deles europeu, privatizou seus serviços de correio.
No Brasil, a Câmara dos Deputados aprovou na quinta-feira (5/8), por 286 votos a favor e 173 contra, o projeto de lei que autoriza a privatização da estatal ECT (Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos). Ainda serão propostas de mudança na matéria. Depois, o projeto segue para o Senado e, se for aprovada, vai à sanção do presidente Jair Bolsonaro (sem partido). A proposta elaborada pelo Ministério da Economia estabelece a venda de 100% da estatal. A expectativa da pasta é de que o leilão seja realizado no primeiro semestre de 2022.
Nos Estados Unidos, por outro lado, um país à primeira vista sem muito apego a empresas estatais, o United States Postal Service (USPS) segue sendo um serviço público — e com cifras superlativas. São mais de 34 mil agências espalhadas pelo país, conectadas por uma rede com 231 mil veículos e 495,9 mil funcionários.
O contingente é mais de cinco vezes o quadro da Empresa de Correios e Telégrafos (ECT) no Brasil, que soma 95 mil colaboradores e é uma das estatais na lista de privatizações do governo Bolsonaro. O pontapé foi dado neste início de ano: em fevereiro, o Executivo enviou o Projeto de Lei ao Congresso e em abril a Câmara votou sua urgência, abrindo espaço para uma tramitação mais rápida no Legislativo.
Já o USPS não é exatamente uma estatal, mas uma agência federal ligada ao Executivo americano. Sua data de criação se confunde à do próprio país — o primeiro "postmaster general" (uma espécie de diretor-geral) foi um dos patronos da independência americana, Benjamin Franklin.
Em teoria, os Correios não são financiados pelo contribuinte, mas pela receita das entregas de cartas e encomendas. Gerar lucro, entretanto, tem sido uma tarefa cada vez mais difícil — a última vez foi em 2006, pelo menos no papel. Desde então, os prejuízos acumulados chegaram a quase US$ 90 bilhões (R$ 460 bilhões) em 2020.
Ainda assim, a agência resiste há décadas a tentativas de privatização. A mais recente investida nesse sentido aconteceu em 2018, na gestão de Donald Trump, e encontrou forte oposição não apenas de políticos democratas, mas de correligionários republicanos do então presidente. Por quê?
EUA profundos
"Os Estados Unidos têm uma peculiaridade", afirma a economista Monique Morrissey, do centro de estudos progressista Economic Policy Institute (EPI). Dois tipos de conservadores convivem no Partido Republicano, diz ela. Há os conservadores liberais, pró-mercado, aqueles que defendem o Estado mínimo e outras posições que, muitas vezes, se confundem com a ideologia predominante do partido, e há os conservadores nacionalistas e religiosos.
Estes últimos vivem predominantemente em áreas rurais, que são, por sua vez, bastante dependentes das entregas de correspondências e pacotes do serviço postal. "Essas pessoas querem que ele continue sendo um serviço público 'patriótico', como as Forças Armadas ou as escolas públicas", avalia.
Milhares de pequenos negócios no interior do país contam com a infraestrutura da agência para distribuir seus produtos — especialmente com os preços tabelados de algumas categorias de entrega. "Um dos grandes usuários da estrutura dos Correios é um site chamado Etsy, onde milhares de pessoas vendem artesanatos e miudezas."
Como os preços praticados pela agência são determinados pelo Congresso, muita gente teme que uma eventual privatização leve a um aumento generalizado, especialmente em áreas mais remotas, que são menos rentáveis para o setor privado. Hoje, o USPS é obrigado a prestar um serviço universal em todo o território, da Flórida ao Alasca.
"Você tem republicanos que apoiam (a manutenção do serviço público) por causa dos pequenos negócios e os democratas que apoiam por causa dos sindicatos, entre outros motivos. Então existe esse apoio bipartidário incomum nos Estados Unidos", resume Morrissey.
Pobres e idosos
Os especialistas contra e a favor da privatização dos Correios ouvidos pela reportagem concordam em pelo menos um ponto: o serviço é seguro e confiável. Isso talvez ajude a explicar por que o USPS é uma das agências federais com melhor avaliação pelos americanos.
Uma pesquisa divulgada em maio de 2020 pelo Pew Research Center apontou que 91% tinham uma visão favorável à agência — o primeiro lugar da lista, à frente dos Centros de Controle e Prevenção de Doenças (CDCs), do Departamento de Saúde dos EUA, que está na linha de frente contra a covid-19.
"Não deveria ser uma surpresa o fato de que muitos americanos expressam alguma admiração pelos Correios. Talvez seja a agência com a qual as pessoas mais têm contato aqui nos EUA. Nós recebemos pacotes e correspondências seis dias por semana, o serviço postal é de forma geral bastante confiável", diz Joel Griffith, pesquisador do Heritage Foundation, centro de estudos conservador que cedeu vários de seus quadros para o governo Trump.
O historiador Ted Widmer enxerga pelo menos duas outras razões — uma subjetiva e outra mais prática. O nascimento do serviço postal, em 1775, um ano antes de as 13 Colônias se declararem independentes do Império Britânico, se confunde com a própria história dos Estados Unidos.
"Está ligada à ideia de democracia, de que pessoas comuns são capazes de gerir seu próprio governo", diz o professor da Macaulay Honors College, da City University de Nova York.
E ainda que parte dos americanos não necessariamente enxergue o serviço como um símbolo, muitos convivem com ele como parte da rotina. "Não é como as Forças Armadas — você pode ter admiração pelos militares, mas dificilmente um cidadão comum vai vê-los em ação. O carteiro é alguém que vem diariamente à sua casa, que presta um serviço bom e barato."
A internet reduziu substancialmente a quantidade de correspondências que cruzam o país, de um pico de 59 bilhões em 1996 para 15,2 bilhões em 2020, considerando a chamada "first class mail", sobre a qual o USPS tem monopólio. Ainda assim, ressalta o historiador, um volume grande de americanos ainda depende do serviço.
"Ele é importante para os idosos e os mais pobres — pessoas que não têm um computador em casa e que sabem que com 50 centavos de dólar podem enviar uma carta ou um documento para qualquer lugar do país."
E o prejuízo?
A questão dos prejuízos bilionários da agência não é um consenso entre os especialistas. Morrissey afirma que boa parte das perdas que aparecem nos registros contábeis é reflexo de uma exigência — em sua avaliação, draconiana — aprovada pelo Congresso em 2006 para que a agência faça provisões para benefícios de saúde e aposentadoria que serão pagos décadas à frente. Ao desembolsar pelas obrigações de forma antecipada, registrar lucro teria ficado cada vez mais difícil.
Griffith, por sua vez, afirma que a agência paga salários e benefícios acima da média do setor privado e que precisa reconhecer essas obrigações nas suas demonstrações contábeis. A economista do EPI argumenta ainda que, se de um lado a circulação de correspondências tem diminuído drasticamente, o volume de endereços que a agência tem de contemplar só aumenta com o crescimento populacional. O princípio da universalidade obriga o serviço postal a atender todo o território — e, em um país de dimensões continentais como os EUA, o custo é alto, diz Morrissey.
Ambos os lados concordam que a transformação nas comunicações e nos hábitos de consumo dos americanos tornou imprescindível repensar o modelo de negócio dos Correios para que ele sobreviva financeiramente — ainda que discordem sobre o que exatamente deve ser feito.
"O serviço postal está hoje de mãos atadas por causa do Congresso, que o impede de implementar muitas medidas que o tornariam mais rentável", diz Griffith.
O Postal Accountability and Enhancement Act (PAEA), que impôs em 2006 o reconhecimento contábil das obrigações futuras com benefícios trabalhistas, também colocou uma série de limitações às atividades que o serviço postal pode desempenhar. Além das entregas, o máximo que os Correios podem fazer é tirar fotocópias, vender selos colecionáveis e processar pedidos de passaporte.
Hoje o USPS entrega até sorvete e pintinhos vivos, diz Morrissey. Assim, realizar entregas de supermercados, por exemplo, é algo que poderia ser feito com a atual infraestrutura para expandir os negócios — mas isso é proibido pelo PAEA.
Outra alternativa seria oferecer serviços bancários básicos, à semelhança do que aconteceu entre 1911 e 1967, quando os americanos podiam ter pequenas poupanças por meio do United States Postal Savings System.
Conforme os dados do Federal Reserve, o Banco Central americano, cerca de 6% dos cidadãos do país não têm qualquer tipo de conta em banco e outros 16% são considerados "underbanked", ou seja, não têm acesso a serviços financeiros suficientes.
Sem bancos públicos, para descontar os cheques dos benefícios sociais pagos pelo governo as famílias de baixa renda muitas vezes têm de pagar tarifas abusivas em bancos privados. "Isso aconteceu também durante a pandemia, com os pagamentos do auxílio emergencial", acrescenta Morrissey. "É um problema que as pessoas tenham dificuldade para ter acesso ao próprio dinheiro e às vezes tenham que pagar muito do próprio bolso."
Já Griffith preferiria que o Congresso desse "alguma margem de manobra para que se pudesse ajustar salários [para baixo], para que ficassem em linha com o setor privado, simplificar operações e talvez até diminuir os dias de entregas de 6 para 5".
O pesquisador diz que ele, assim como a Heritage Foundation, acreditam que a privatização seja a melhor solução, mas admite que não há "clima político" para isso no país.
Em junho de 2018 o governo Trump chegou a propor uma reorganização da operação da agência para prepará-la para uma futura privatização. A proposta enfrentou forte oposição de republicanos e democratas no Congresso e não foi para frente. Ainda assim, o presidente conseguiu implementar uma série de mudanças controversas até sua saída da Casa Branca.
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