Olá Alunos,
A matéria de hoje traz uma análise, que tem como objeto a flexibilização do ordenamento jurídico em prol de interesses econômicos. Dentro do âmbito jurídico, o escopo é a terceirização do trabalho.
Espero que gostem e participem,
Ramon Reis, monitor da matéria "Economia Política e Direito" da Universidade Federal Fluminense.
Ao longo dos anos, o ordenamento jurídico vem sendo sistematicamente flexibilizado pela jurisprudência em prol de interesses econômicos, invertendo-se a lógica do direito trabalhista que deve sempre ser ampliado. Mas, afinal, porque tanta confusão e polêmica em torno do tema da terceirização?
Enquanto o meio jurídico passou os últimos anos interpretando e buscando adequações jurídicas para a terceirização, o pragmático meio empresarial tratou de difundir essa forma de gestão do processo produtivo em todos os setores e atividades econômicas. Embora distintas, a terceirização acabou se confundindo com intermediação de mão de obra, reduzindo o trabalhador à condição de mercadoria. Prova disso, que, segundo dados do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), 90% dos casos de trabalho análogo à escravidão ocorrem entre trabalhadores terceirizados.
Curioso constatar que, respeitadas as divergências doutrinárias, ambas, a terceirização e a intermediação de mão de obra, encontram-se perfeitamente disciplinadas no ordenamento jurídico brasileiro. A primeira, de natureza jurídica contratual, encontra fundamento no Código Civil, através de diversos tipos de contratos como os de prestação de serviços, de empreitada, fornecimento de bens, consórcio, concessão e etc., respeitando sempre o princípio da boa-fé objetiva. A segunda, por sua vez, é expressamente vedada, por força dos art. 1º, IV e 170 da CF/88, art. 8º, da CLT e art. 203 do Código Penal, posto que viola o princípio fundamental internacional de que o trabalho não é uma mercadoria, sendo admitida excepcionalmente, nos casos de trabalho temporário, conforme disciplina a Lei 6.019/74.
A “ultrapassada” CLT já previa regramento para a terceirização, na modalidade de empreitada, desde 1943, estabelecendo, em conformidade com o princípio da proteção, a responsabilidade solidária entre tomadora e prestadora, nos moldes do art. 455. Do mesmo modo, a Lei 6.019/74 reiterou a responsabilidade solidária.
Nessa perspectiva, o ordenamento jurídico vem sendo sistematicamente flexibilizado pela jurisprudência em prol de interesses econômicos, invertendo-se a lógica irrenunciável do direito do trabalho, que deve sempre ser ampliado na medida do princípio da condição mais benéfica, mantendo-se um patamar mínimo civilizatório com base na dignidade da pessoa humana.
Mas, afinal, porque tanta confusão e polêmica em torno do tema da terceirização? Porque tanta oscilação do Poder Judiciário frente ao Poder Econômico, haja vista os recuos da jurisprudência do Tribunal Superior do Trabalho (TST) e a desconstitucionalização da norma trabalhista pelo Supremo Tribunal Federal (STF)? Porque tanto labor do Poder Legislativo em regulamentar a terceirização, tendo a Câmara aprovado dois Projetos de Lei para regulamentar a mesma matéria?
Inicialmente, o TST se posicionou, através da Súmula 256, de 1986, quanto à ilegalidade a contratação de trabalhadores por empresa interposta, formando-se o vínculo empregatício diretamente com o tomador dos serviços. Mais tarde, reviu seu posicionamento, cedendo à pressão da livre iniciativa, admitindo como lícita a terceirização de serviços especializados ligados à atividade-meio do tomador, desde que inexistente a pessoalidade e a subordinação, através da vigente Súmula 331.
Em 2010 o STF ao julgar a Ação Declaratória de Constitucionalidade (ADC) 16, decidiu pela irresponsabilidade do Estado na contratação de serviços terceirizados, considerando constitucional o art. 71, §1º, da Lei 8.666/93, com base no princípio da supremacia do interesse público secundário, prevalecendo o erário sobre o bem-estar social. Atualmente, tramita no STF o Recurso Extraordinário 958.252, questionando a constitucionalidade da Súmula 331, do TST, quanto à restrição da terceirização em atividades-fim.
Muitos doutrinadores sustentam a imprecisão da terminologia adotada pelo TST, mesmo ela tendo seguido as diretrizes do toyotismo, de que a empresa deve manter o foco na atividade-fim, subcontratando atividades periféricas, para maximizar sua competitividade e seus lucros, num contexto global de reestruturação produtiva.
Todavia, o erro não foi terminológico, mas sim procedimental, uma vez que se instituiu a prática de terceirizar todo tipo de atividade para depois levá-la à apreciação do Judiciário para se manifestar quanto à sua licitude caso a caso. Isto acarretou a elevação acentuada da litigiosidade na esfera trabalhista, sendo que 22 das 100 maiores executadas da Justiça do Trabalho são empresas terceirizadas, conforme dados do Banco Nacional de Devedores Trabalhistas (BNDT).
O controle deveria ser prévio e não posterior, nos moldes da legislação trabalhista japonesa, que prevê a necessidade da empresa se habilitar para adquirir uma licença para prestar serviços terceirizados, evitando que empresas inidôneas se beneficiem ilicitamente da terceirização e assegurando que tenham know-how e patrimônio próprio para atuar neste setor altamente concorrido e especializado. No Brasil existem empresas terceirizadas sem qualquer patrimônio e experiência na sua área de atuação, muitas vezes até sem endereço, que são criadas e mantidas pelas próprias tomadoras para se furtarem das obrigações trabalhistas.
Não há nenhuma dificuldade em se distinguir a atividade-fim de uma empresa, bastando que se identifique sua principal fonte de lucros, aplicando-se o princípio da primazia da realidade. Afinal, o lucro será sempre a atividade-fim de qualquer empreendimento. Admitir a terceirização de atividades-fim, como reivindicam os empresários brasileiros, incorreria na abstração tautológica de uma empresa ter como sua principal atividade econômica a prática da terceirização, se tornando uma grande “terceirizadora” que apenas coordena e administra os contratos de prestação de serviços.
A lógica do poder econômico
A terceirização, por si só, não pressupõe uma lógica razoável de fomento ao desenvolvimento econômico e à maximização dos lucros. Se não, vejamos, um empresário que decide terceirizar todas as atividades da sua empresa sem infringir as leis trabalhistas, teria de pagar no valor do contrato, os custos e o lucro das prestadoras de serviços. Consequentemente, ao terceirizar, estaria, de uma forma irracional, onerando ainda mais seu produto.
O conceito de terceirização tem estreita relação com a dinâmica de produção industrial, tendo sido concebido para atender a uma necessidade conjuntural específico do mercado japonês no pós-guerra, sendo a terceirização um dos elementos constitutivos do modelo toyotista de produção que pressupõe qualidade associada à produtividade por demanda.
Essa técnica de gestão permite à empresa controlar os custos fixos de produção e administrar os riscos da atividade econômica em função das flutuações do mercado consumidor que pode ser afetado por crises financeiras. Além disso, ao descentralizar a produção, isso faz com que seja estimulada a concorrência entre as empresas terceirizadas, estimulando o desenvolvimento de inovações tecnológicas que possibilitem reduzir os custos globais de produção.
Nesta cadeia produtiva em rede, uma terceirizada deve produzir as peças de um veículo Toyota com a mesma qualidade que esta produziria, sendo necessário que haja forte sintonia e confiança entre tomadora e prestadora para se obter bons resultados, o que configura a subordinação estrutural, estabelecendo-se vínculo elementar entre a tomadora e o trabalhador terceirizado. Caso contrário, o resultado final seria apenas um amontoado aleatório de peças baratas e não uma das marcas de automóveis mais desejadas do mundo.
Não se trata de reduzir o custo da produção pela precarização da força de trabalho. Esta, inclusive deveria ser valorizada, uma vez que se trata de mão de obra altamente especializada, criativa e polivalente. De outro modo, seria como exigir que os empregados trabalhassem mais e com mais qualidade e ao final recebessem proporcionalmente menos pelo serviço prestado. Contraditoriamente, no Brasil, os trabalhadores terceirizados recebem em média 30% menos que os efetivos, segundo pesquisa do DIEESE.
A redução dos custos, considerada como o principal motivo para se terceirizar por 88,9% dos empresários, segundo sondagem estatística da Confederação Nacional da Indústria, deve ser alcançada pela livre concorrência entre setores periféricos de produção, sem que isso cause danos ou prejuízos ao trabalhador, que é terceiro de boa-fé na relação contratual entre a tomadora e a prestadora. Ao terceirizar, os empregadores já tem a vantagem econômica de que os salários de cada categoria de empregados passam a ser regulados pelo mercado de trabalho e não mais no âmbito interno da empresa, o que por si só já representa grandes perdas para a classe trabalhadora.
Aí reside, em grande medida, a dificuldade da indústria nacional, atrasada e subdesenvolvida, em assimilar essa lógica complexa de produção, utilizando a terceirização apenas como meio para reduzir os custos da força de trabalho em qualquer tipo de atividade. Tanto assim que um dos setores que mais se terceiriza no Brasil, com fortes resquícios de uma cultura escravocrata, são os serviços gerais de limpeza e conservação, onde há pouquíssima margem para redução dos custos pelo implemento de novas tecnologias.
O problema é que a ideologia da terceirização trouxe consequências negativas até mesmo para os países desenvolvidos. No Japão a rotina de trabalho se tornou tão árdua que se cunhou o termo “karoshi” para designar os trabalhadores que literalmente morrem de tanto trabalhar. Em nenhum lugar do mundo efetivou-se o milagre econômico de haver trabalhadores terceirizados com melhores condições de trabalho que os efetivos.
Pelo contrário, a terceirização aprofundou a divisão social do trabalho e fragmentou a organização da classe trabalhadora, criando segregação até mesmo entre os terceirizados, dividindo-os em especializados e precarizados, em desconformidade com o princípio da não-discriminação e da isonomia. Isso tem levado alguns países, como a Rússia, a rever suas leis de terceirização, para torná-las mais rígidas.
Feitas todas essas considerações acerca das contradições que envolvem o processo de terceirização, cabe analisar o elemento central nas tentativas de regulamentação da terceirização no Brasil. É preciso esclarecer que não há, em ambos projetos, PL 4330/04 e o PL 4.302/98, qualquer perspectiva ampliadora de direitos para os terceirizados, além das promessas messiânicas de retomada da economia e geração de empregos. O que distingue as duas propostas substancialmente a questão da responsabilidade jurídica da empresa tomadora pelos prejuízos que possam resultar ao trabalhador terceirizado.
A resistência e a luta organizada dos trabalhadores contra o PL. 4330/04 levou à alteração da redação original para a inclusão da responsabilidade solidária entre tomadora e prestadora, em sintonia com o direito comparado de países como França, Espanha, Itália, Canadá, Portugal, Chile, Argentina, Venezuela, México, Índia e Coreia do Sul. Isso motivou o Presidente da Câmara, Deputado Rodrigo Maia, defensor do fim da Justiça do Trabalho, a desengavetar o retrógrado projeto recém-aprovado pela Câmara dos Deputados, que consiste na legalização da contratação de mão de obra por empresa interposta, o que configura o crime de “marchandage” na França (art. L125-1, Code du Travail).
Tal artifício legislativo para burlar direitos trabalhistas pressupõe a má-fé das prestadoras de serviços, terceirizando os riscos do negócio para o trabalhador. Traduzindo, significa dizer que diante da possibilidade do prestador de serviços agir de forma inidônea para reduzir os custos da força de trabalho, deve-se primeiramente resguardar, com a responsabilidade subsidiária, a empresa tomadora, que é quem se beneficia diretamente do serviço prestado pelo terceirizado. Tanto assim, que logo após a aprovação da Lei Anticorrupção (Lei 12.846/13), de iniciativa popular, houve um processo de desterceirização em muitas empresas brasileiras, receosas das possíveis consequências jurídicas.
Aqueles que defendem e acreditam na terceirização como eficiente técnica de gestão empresarial, não deveriam temer a responsabilidade solidária, assumindo os riscos e os benefícios do negócio. Se porventura vierem a sofrer ações trabalhistas decorrentes de atos praticados pelas prestadoras, restará, ainda, o direito de regresso junto à Justiça Comum, que é o local próprio das relações contratuais cíveis, como é o caso da terceirização. Não se pode de maneira ardil, como está sendo feito, condenar o trabalhador a ter seus direitos frustrados perante a insolvência da empresa terceirizada, sob o argumento da segurança jurídica da tomadora.
Tal raciocínio jurídico soa absurdo por qualquer ramo do direito que se analise: constitucionalmente viola o valor social do trabalho, civilmente viola o princípio da boa-fé, na seara trabalhista viola o princípio da proteção e no âmbito dos direitos humanos viola a própria dignidade humana do trabalhador. Em síntese, significa admitir que as empresas tomadoras se beneficiem da própria torpeza, incorrendo no enriquecimento ilícito às custas dos prejuízos causados pela prestadora ao trabalhador. Contra a lógica precarizante da terceirização, somente a consciência coletiva dos trabalhadores pode resistir.