Olá alunos,
A matéria de hoje irá abordar como o direito pode ser reformulado segundo o interesse de grupos, para fins diversos, como o de obter vantagens econômicas. No conteúdo da notícia, é abordado essa relação dentro do território estadunidense e como as empresas influenciam na extraterritorialidade do direito.
Esperamos que gostem,
Ramon Reis e Caio Malta, monitores da matéria "Economia Política e Direito" da Universidade Federal Fluminense.
Companhias europeias tiveram de pagar aos Estados Unidos mais de US$ 40 bilhões nas últimas décadas. A justiça norte-americana as acusa de não respeitar sanções determinadas por Washington (e não pelas Nações Unidas) contra determinados Estados. O direito torna-se então uma arma para absorver ou eliminar concorrentes
“Estamos diante de um painel de legislações norte-americanas extremamente complexo, com uma intenção precisa, que é utilizar o direito para fins de imperium econômico e político para obter vantagens econômicas e estratégicas.” Em 5 de outubro de 2016, o deputado republicano Pierre Lellouche não mediu palavras diante das comissões de Relações Exteriores e das Finanças da Assembleia Nacional, em Paris. Ele apresentou ali o relatório da missão de informação sobre a extraterritorialidade do direito norte-americano.1, cuja leitura “dá frio na espinha”, segundo os termos do deputado socialista Christophe Premat.
Duas multas colossais infligidas em 2014 ao BNP Paribas (US$ 8,9 bilhões) e à Alstom (US$ 772 milhões) foram necessárias para que os dirigentes e a mídia franceses tomassem consciência da vontade dos Estados Unidos de impor seu modelo jurídico e suas leis aos outros países, mesmo que fossem seus aliados mais próximos.
Tudo começou em 1977 com o Foreign Corrupt Practices Act (FCPA), que diz respeito à luta contra a corrupção. Destinado às companhias nacionais, ele se estendeu em 1998 às empresas estrangeiras. Segundo eixo: uma bateria de leis criminalizando o comércio com os Estados sob embargo norte-americano (Irã, Cuba, Líbia, Sudão…). Depois, após os atentados de 11 de setembro de 2001, o argumento era a luta contra a lavagem de dinheiro dos terroristas ou narcotraficantes. O Patriot Act deu poderes estendidos às agências norte-americanas para ter acesso aos dados eletrônicos, principalmente via National Security Agency (NSA). Em 2010, a Lei Dodd-Frank conferiu à SEC o poder de reprimir qualquer conduta que, nos Estados Unidos, concorresse de maneira significativa para a infração, mesmo quando a transação financeira fosse concluída fora de seu território e implicasse apenas agentes estrangeiros. Em 2013, o Foreign Account Tax Compliance Act (Fatca) deu ao fisco poderes extraterritoriais. Os bancos estrangeiros foram obrigados a se tornar seus agentes e a entregar todas as informações sobre as contas e posses dos cidadãos norte-americanos, dos residentes fiscais norte-americanos e daqueles com dupla nacionalidade.
Enfim, em 29 de setembro de 2016, o Justice Against Sponsors for Terrorism Act (Jasta), votado pelo Congresso, que se opôs ao veto do presidente Barack Obama, permite que qualquer vítima de terrorismo nos Estados Unidos processe um Estado ligado direta ou indiretamente a atos de mesma natureza perpetrados em seu solo. Essa lei visa a priori à Arábia Saudita, por não ter controlado seus cidadãos que cometeram os atentados de 11 de setembro, mas também cria o risco de provocar ações contra qualquer Estado considerado responsável, mesmo que indiretamente, pelos atos de seus cidadãos. Trata-se de um texto contrário ao princípio de soberania das nações, já que mistura a responsabilidade individual e a coletiva.
Por trás desse arsenal jurídico pacientemente construído transparece uma vontade hegemônica. Nos Estados Unidos, muitos se consideram um povo eleito, encarregado de difundir a boa palavra e fazer o bem. Eles estimam ter uma competência universal, em nome de uma visão universal. Por isso, os instrumentos dessa ideologia – a moeda (o dólar), a língua (o inglês) e o direito (a common law, em oposição ao direito escrito continental europeu) –2 têm como vocação se impor a todos.
A evolução das tecnologias e a financeirização da economia deram a Washington os meios técnicos para levar a cabo essa ofensiva ideológica. “Basta que uma operação contestada tenha sido redigida em dólares ou que uma troca de mensagens tenha transitado por um servidor norte-americano para que a jurisdição dos Estados Unidos se reconheça competente”, escreve Paul Albert Iweins, ex-presidente da ordem dos advogados da França.3
Objetivos pouco claros
Essa “política jurídica exterior” mobiliza meios consideráveis. Tudo começa pela informação. As diferentes agências – da CIA à NSA, passando pelo FBI e seus agentes instalados nas embaixadas – buscam a informação utilizando, se necessário, fontes remuneradas, até mesmo ONGs. Essas informações são tratadas por diversos órgãos: o Departamento de Justiça (DOJ), o Tesouro, a SEC, o Federal Reserve e o Office of Foreign Asset Control (Ofac), que vigia a aplicação de sanções internacionais norte-americanas. A isso pode-se acrescentar a ação de procuradores locais, como o de Nova York, que se mete frequentemente nos processos contra grandes grupos estrangeiros.
O DOJ e os outros órgãos se comportam como procuradores, com um objetivo: obter uma “declaração de culpa” por parte do acusado. Quanto mais este último demorar para confessar e aceitar a sentença, mais pesada ela será. É o que explica em parte a diferença de tratamento em matéria de corrupção entre as empresas norte-americanas e as outras. Acostumadas com os procedimentos desse timo, as primeiras negociam muito rápido, enquanto as segundas, como a Siemens e a Alstom, demoram para ter noção do perigo.
Considerações estratégicas também intervêm. Em um caso de corrupção na Indonésia, a Alstom estava associada a um grupo japonês, o Marubeni. Este tinha feito um acordo em 2012 com o DOJ e foi condenado a uma multa de US$ 88 milhões. A conta para a Alstom, negociada em 2014, foi nove vezes maior. O Marubeni não preocupava os pesos-pesados norte-americanos no setor, enquanto a Alstom já era um alvo para a General Electric.
Outro exemplo: a Alcatel. Esse grupo francês de telecomunicações era malvisto do outro lado do Atlântico. Ele tinha equipado a rede iraquiana na época de Saddam Hussein e dispunha de tecnologias superiores às de seus concorrentes norte-americanos, principalmente a Lucent. Em 2005, o DOJ pôs as mãos em um processo de corrupção visando à Alcatel na Costa Rica e Honduras. Cinco anos depois, o grupo foi condenado a pagar US$ 137 milhões de multa. Nesse meio-tempo, ele teve de se fundir com a Lucent, que foi condenada por atos de mesma natureza cometidos na China a uma multa de… US$ 2,5 milhões. Depois da fusão, no final de 2006, a Lucent tomou progressivamente o controle da Alcatel – um roteiro precursor do que aconteceu com o ramo de energia da Alstom (três quartos da atividade do grupo), recuperado pela General Electric em 2015. Essas multas enfraquecem consideravelmente as empresas visadas, e não apenas na ótica de fazer prevalecer o direito.
Assim como a desregulamentação financeira permitiu ao mundo das finanças, do qual Wall Street é uma das capitais, crescer de maneira exponencial há um quarto de século, a common law explica o extraordinário desenvolvimento das profissões jurídicas nos Estados Unidos. É preciso muito dinheiro para sustentar mais de 1 milhão de advogados – um a cada trezentos habitantes. Impondo suas leis aos outros países, os Estados Unidos procedem então naquilo que alguns qualificam como extorsão.
Em alguns anos, as companhias europeias transferiram cerca de US$ 25 bilhões às diversas administrações norte-americanas: mais de US$ 8 bilhões em razão do FCPA e US$ 16 bilhões pelo não respeito às sanções econômicas. Desse total, a conta da França ultrapassa US$ 12 bilhões! Isso evidentemente repercute na balança das transações correntes. Se acrescentarmos a isso as multas pagas a título de outros procedimentos, principalmente para os bancos, chegaremos, para os europeus, a um total amplamente superior a US$ 40 bilhões. E esse número não leva em conta as multas que ainda vão ser aplicadas à Volkswagen, acusada de ter cometido fraude sobre as emissões tóxicas de seus motores a diesel nos Estados Unidos – a conta vai chegar a dezenas de bilhões de dólares –, e ao Deutsche Bank, por conta de sua ação sobre os subprimes – uma soma que deverá se situar entre US$ 5 bilhões e US$ 10 bilhões.
Para onde vai esse dinheiro? Diretamente para os caixas daqueles que realizaram a investigação, lançaram os processos e concluíram os acordos. É uma espécie de partilha da pilhagem entre o DOJ, a SEC, o Ofac, o FED, o Departamento de Serviços Financeiros do Estado de Nova York e o procurador de Nova York. Por fim, nos processos Fatca, o fisco recupera diretamente as somas reclamadas aos norte-americanos residindo no exterior. Essa partilha explica a motivação das equipes. Elas têm interesse em multiplicar os processos e recuperar o maná que virá alimentar o orçamento de suas agências ou departamentos, permitindo que recebam bons salários e empreguem colaboradores.
Já os fluxos financeiros gerados por esses processos alimentam a esfera jurídica, os escritórios de advogados. Não apenas é preciso pagar seus honorários durante todo o processo, mas, uma vez que a multa foi paga, as empresas em questão ainda não estão liberadas. Elas devem também acolher em sua sede um monitor encarregado de zelar durante um período de três a cinco anos para que permaneçam em conformidade com as diretivas impostas pelo regulamento. Esse monitor é pago pela empresa e auxiliado por dezenas de colaboradores, também pagos por seus hóspedes. Para isso, explica Iweins, “indica-se ao ‘pecador’ quatro ou cinco escritórios especializados de Washington, que podem acompanhar sua atividade durante os anos de vigilância” – e principalmente entrar em conformidade com as leis norte-americanas. É preciso então multiplicar o valor da multa por dois, ou até por três, para que se tenha uma ideia do custo total.
Regras de confidencialidade
A declaração de culpa e a transação não apagam formalmente os riscos de processos penais individuais, que são suspensos… com a condição de que os termos do acordo sejam escrupulosamente respeitados, sobretudo as regras de confidencialidade. Patrick Kron nega que a investigação do DOJ tenha tido qualquer tipo de influência em sua decisão de vender a Alstom Power para a General Electric? Ele simplesmente não pode dizer. É por isso que, por muito tempo, as empresas visadas tentaram resolver o problema sozinhas, discretamente, sem mobilizar seu respectivo governo e muito menos a opinião pública.
Elas tinham efetivamente algo a esconder, e as legislações europeias, em especial as francesas, não eram adaptadas a esse tipo de delito. É aí que a ofensiva norte-americana foi particularmente eficiente: “Vocês não estão fazendo nada? Nós vamos fazer”. Hoje, os olhos se abriram na Europa. Na França, enfim entendemos que é preciso se dotar de um verdadeiro dispositivo anticorrupção e não hesitar em perseguir as empresas culpadas. Por pelo menos duas razões: por um lado, o engajamento de processos pela justiça francesa permite invocar o princípio do non bis in idem (não se julga duas vezes pelos mesmos fatos); por outro lado, a multa então é paga para o Tesouro francês. O recente projeto de lei Sapin 2, “relativo à transparência, à luta contra a corrupção e à modernização da vida econômica”, vai nesse sentido.
A agressividade jurídica norte-americana envenena cada vez mais as empresas e os bancos europeus, que reveem suas redes comerciais para adaptá-las às normas anglo-saxãs. Eles privilegiam os grandes escritórios de auditoria norte-americanos, sem ver que estes últimos devem comunicar a suas autoridades qualquer operação contrária ao interesse nacional que poderiam observar nessas empresas. Elas hesitam em trabalhar com países sob a mira de Washington, principalmente o Irã. Mesmo depois do acordo nuclear fechado sob a presidência de Barack Obama, em 2015, os bancos franceses não querem mais correr o risco de acordar créditos para o Irã. Assim como são reticentes em financiar investimentos na Rússia (a Airbus teve de se dirigir a bancos chineses). Ou as empresas encontram outros financiamentos que não sejam emitidos em dólares, o que é praticamente impossível para as pequenas e médias empresas (PME); ou elas renunciam a seus projetos. Esse é o objetivo, a fim de reservar o mercado iraniano. Em 30 de setembro de 2016, o grupo norte-americano Xerox dirigiu a seus clientes e fornecedores franceses uma mensagem pedindo que não fizessem negócios com o Irã… se quisessem manter boas relações com a Xerox.
O contra-ataque não é fácil. Primeiro porque certas empresas envolvidas preferem não enfrentar os Estados Unidos. Depois, no próprio seio da tecnoestrutura francesa e principalmente europeia, não faltam boas almas convencidas da superioridade da common law e da necessidade de fazer evoluir o direito europeu. Por fim, a França sozinha não pode aplicar medidas de retaliação eficientes. A Europa precisa se mobilizar. Umas pistas começam a ser evocadas em Bruxelas: questionar o comportamento das grandes multinacionais, a começar por Google, Amazon, Facebook, Apple e Microsoft (Gafam).
Três ângulos de ataque se apresentam. O primeiro seria designar a responsabilidade dos grandes bancos de negócios norte-americanos em certo número de casos. Assim, o Goldman Sachs é corresponsável por ter dissimulado o estado real das finanças da Grécia no momento de sua adesão ao euro; se tal caso acontecesse nos Estados Unidos, ninguém duvida de que o banco estrangeiro culpado teria sido perseguido pelas autoridades locais. O segundo é atacar os mecanismos de otimização fiscal das multinacionais. Starbucks no Reino Unido, Google na França, Apple na Irlanda: os processos se encadeiam. As somas em jogo representam dezenas de bilhões de euros a serem ganhos pelos países europeus. Terceiro ângulo: os procedimentos antitruste contra os gigantes da web, em posição de quase monopólio.
No entanto, para que essas ações desemboquem em uma nova correlação de forças, ainda seria preciso que os inumeráveis lobbies a serviço do império norte-americano não as bloqueassem. Pois, em matéria de lobby, os Estados Unidos também são mestres.
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