Caros Leitores,
O período pós-pandemia tem sido permeado pelo retorno das políticas de austeridade muitas vezes associado à popularidade de novas lideranças ao redor do mundo que se referem ao Estado como sendo a fonte de todos os problemas.
Para compreender melhor esse fenômeno, a economista italiana Mariana Mazzucato traz uma reflexão acerca da importância da revisão do papel do Estado, para que as instituições públicas assumam um lugar de destaque no século XXI, de modo a dar o direcionamento necessário para que todos os setores da economia trilhem o caminho da inovação.
Esperamos que gostem e compartilhem!
Alejandro Louro Ferreira é membro do Grupo de Pesquisa em Estado, Instituições e Análise Econômica do Direito.
Mariana
Mazzucato, 55, não se surpreende ao ver o retorno de políticas de austeridade
após a pandemia de Covid ou o aumento da popularidade de novos líderes ao redor
do mundo que classificam o Estado como fonte de todos os problemas.
Para a
economista italiana, antes de criticar os eleitores que escolhem políticos
engajados em destruir o Estado, é preciso que as instituições públicas assumam
um novo papel no século 21, fornecendo uma direção e exigindo que
todos os setores da economia inovem.
Para se
adequar às demandas atuais, é preciso reinventar o capitalismo, diz a
professora, que esteve no Brasil na quarta-feira (27), para participar do 10º
Congresso Internacional de Inovação da Indústria, realizado pela CNI
(Confederação Nacional da Indústria) e o Sebrae (Serviço
Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas).
Mazzucato
tem se aproximado do Brasil. Uma das referências para os economistas do PT, em especial de
gestores do BNDES (Banco
Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social) —como Aloizio
Mercadante e Nelson Barbosa—, ela participou de seminário da instituição em
março.
Em julho, o
Ministério da Gestão e a Enap (Escola Nacional de Administração Pública)
assinaram acordo com o Instituto da Inovação e Propósito Público da University
College London (IIPP/UCL), fundado por ela. O objetivo é a capacitação de
servidores, além da inovação na administração pública.
Essa
proximidade tem reforçado sua visão de que o país pode ser um ator de destaque.
O presidente Lula tem
defendido no exterior o papel do Brasil como protagonista de um futuro de
desenvolvimento sustentável. Como colocar suas palavras em ação?
A razão
pela qual as pessoas estão ouvindo o que Lula tem a dizer é que não há líderes
suficientes no mundo hoje que levem a sustentabilidade a sério —fala-se muito,
mas muito pouco é feito.
Desde o
primeiro dia, quando ele começou o novo
governo, a questão da sustentabilidade e a Amazônia têm estado no
centro, e o fato de o plano de transição ecológica brasileiro incluir o Ministério da
Fazenda é algo radical.
Geralmente,
o que acontece é a velha maneira de pensar, em que o Ministério do Meio
Ambiente faz a política de sustentabilidade e o Ministério da Saúde se preocupa
com o bem-estar.
Todo o
governo deve estar voltado para um grande plano de economia verde?
A chave é
como as diferentes áreas trabalham juntas, porque cada ministério tem suas
próprias metas ambientais.
Ter um
banco público, como o BNDES, também é muito importante para o financiamento,
mas é preciso impor condicionalidades de inovação para o financiamento.
O grande
gargalo em países como o Brasil é que as empresas são fortes, mas muitas delas
não estão inovando, há uma inércia.
Mesmo um
setor consolidado, como a siderurgia, precisa inovar e transformar-se. A
Alemanha hoje tem o aço mais verde do mundo, não por ter decidido que seria
assim, mas por precisar ser verde para conseguir dinheiro do governo, é uma
parceria simbiótica em vez de uma parceria parasitária.
O Brasil
poderia, de fato, liderar um processo de inovação?
Imagine
pegar o orçamento de compras de cada ministério —Saúde, Transporte, Defesa,
Energia— e transformá-lo em um orçamento de inovação, orientado para programas
de mobilidade sustentável, que tentem resolver os congestionamentos nas grandes
cidades. Acho que o Brasil pode realmente liderar um movimento nesse sentido,
especialmente porque o Ministério da Fazenda é parte disso.
Trata-se de
reinventar o capitalismo, fazer tudo de uma forma diferente, estruturando as
organizações públicas e deixando que as organizações privadas também sejam
instadas a trabalhar em conjunto.
Para chegar
à lua, lá atrás, foram mobilizadas pessoas de diferentes setores —de
profissionais de nutrição ao setor de eletrônicos e aeronáutica— e esse
trabalho em conjunto solucionou muitos outros desafios
pelo caminho.
Hoje temos
câmeras, celulares, comida para bebê e softwares que são resultado dessas
grandes mobilizações de recursos. O mesmo deveria acontecer com a agenda de
sustentabilidade do Brasil, você a divide em diferentes frentes e as soluções
para os problemas que surgirem ao longo do caminho podem fomentar muita
inovação, é daí que vem o crescimento.
Deixar de
ser um exportador principalmente de commodities é uma ambição ainda distante?
No caso da
América do Sul, é preciso ter muito cuidado, porque os novos recursos são
muito atraentes, como o lítio para baterias elétricas.
Ele também
traz muitos problemas, um deles é que a extração de lítio cria enormes
quantidades de água poluída, por exemplo, então é preciso ter certeza de que a
solução para um lugar não caus e um problema em outro.
Tenho
aprendido muito com a Dinamarca,
que hoje é um grande fornecedor de serviços verdes digitais de alta tecnologia,
tendo criado um ecossistema de inovação. Não cabe a mim dizer ao Brasil o que
fazer, mas a questão é que você não quer cair na armadilha das commodities
novamente.
A falta de recursos é sempre um problema, sobretudo em países com problemas em diferentes áreas. Como contornar a limitação cada vez maior do Orçamento?
Todos os países reclamam de falta de recursos. O erro é pensar que a restrição
se dá pelo déficit, a restrição real é a dívida em relação ao PIB [Produto
Interno Bruto]. Sem investir de
forma inteligente, no setor privado e no setor público, a
produtividade não aumenta e ela é o principal impulsionador.
Sou
italiana, e depois da crise financeira, todos os países do sul da Europa
[Portugal, Itália, Grécia e Espanha] foram forçados a reduzir os seus déficits,
o que aconteceu foi que a dívida em relação ao PIB aumentou.
O que
realmente importa não é ter um Estado grande ou pequeno, o que faz diferença é
um investimento público inteligente, estratégico e orientado, que catalisa o
investimento privado, mas para isso é preciso saber qual é a direção que está
sendo tomada em relação ao bem-estar e à sustentabilidade, para depois
redesenhar empréstimos, concessões e subsídios. Não basta distribuir dinheiro
para as empresas.
E é claro
que o dinheiro público só deve ser usado por aqueles que não conseguem obter o
dinheiro privado, é preciso ajudar a promover um ecossistema competitivo
inovador, em que pequenas e médias empresas estão dispostas a trabalhar em
torno de temas, como saúde, clima, digitalização e a preservação da Amazônia.
Encontrar
uma forma de construir um ecossistema simbiótico de público e privado é muito
importante para qualquer governo progressista, como o brasileiro.
A popularidade de políticos extremistas ao redor do mundo, como no caso da Argentina, em que Javier Milei prega a destruição das instituições, não aponta que parte da população deixou de acreditar no Estado?
Com certeza e, infelizmente, a onda de populismo está acontecendo por toda parte.
A Espanha
pode ter escapado por pouco dela, mas vemos fenômenos assim na Itália e com o
Brexit no Reino Unido.
Não
deveríamos ser condescendentes e dizer que as pessoas são estúpidas por estarem
votando nessas pessoas com ideologias malucas. Elas perderam a confiança no
governo e nas empresas, por isso não é coincidência que muitos desses partidos
populistas se apresentem como anarquistas.
Mas a
realidade é que as ideias deles são muito antigas, é uma ideologia velha e, em
alguns casos, até feudal, por isso é muito importante retirar a máscara de
novidade que esses políticos "outsiders" usam.
Eles
apresentam soluções simplistas e que olham para o sintoma, dizem que é preciso
colocar mais pessoas na prisão ou que os imigrantes são a fonte dos problemas.
A teoria liberal, com menos Estado, também ganhou força nos últimos anos. Tivemos um exemplo disso no Brasil, durante o governo anterior, em que o ministro da Economia se orgulhava de defender as ideias da Escola de Chicago.
Por se tratar de um centro acadêmico, era de se esperar que a Escola de Chicago
se importaria com as evidências, e as evidências nos dizem que a austeridade
não funciona nem para o planeta nem para as pessoas, por aumentar a pobreza.
A ideologia
dos "chicago boys" é
uma economia estúpida e eles sabem disso, então, para ser honesta, cheguei à
conclusão de que eles apenas não se importam. Por que mais alguém cortaria as
refeições escolares ou a verba para centros juvenis e bibliotecas públicas?
A pandemia alterou a relação das pessoas com o Estado, mas essa mudança foi passageira?
De repente,
o Estado foi lembrado como o agente que proporcionou a vacinação, mas essa fase
durou bem pouco, muitos países já estão passando por novas ondas de austeridade
e dizem que gastou-se muito [durante a pandemia].
Os governos
deram recursos para as famílias que não estavam trabalhando durante a
quarentena e agora dizem "precisamos cortar programas sociais", só
que as consequências desses cortes acabam custando mais.
A disputa
dos países na aquisição das vacinas nos deveria ensinar que todos temos
interesses diferentes e conflitantes.
Estou
escrevendo um novo livro sobre esse tema —por exemplo, a água é um grande
problema mundial e o ciclo global nos une a todos, o desmatamento na Amazônia
causa uma seca do outro lado do mundo, então, em teoria, poderíamos pensar que
o mundo todo está preocupado com a água de forma conjunta, mas isso não está
acontecendo.
Salvar o planeta é o grande desafio para o Estado no século 21?
O Estado tem de fornecer uma direção e exigir que todos os setores da economia
inovem, pensando que o maior objetivo, claro, é a sustentabilidade, mas também
a saúde e o bem-estar. É preciso estar preparado para a próxima pandemia.
O meu livro
mais recente "The Big Con" é sobre como os governos precisam
investir na capacidade de implementação de ações, sem investir no serviço
público, você não saberá como agir e então ficará refém de consultorias, como
ocorreu na crise de Covid.
O livro reforça como a indústria de consultorias infantilizou os governos.
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