Caros Leitores,
A Amazônia, sobretudo nos últimos quatro anos, foi alvo de diversos prejuízos em razão da desmobilização das políticas públicas voltadas para proteção e manutenção dos biomas da região. Como consequência deste processo, o impasse associado à redução da cobertura midiática acerca dos desdobramentos dessa carência de diretrizes voltadas à região pode agravar tais aspectos, culminando em prejuízo ainda maior para as comunidades tradicionais e vida silvestre amazônica.
Diante dessa conjuntura, trazemos nesta semana uma notícia que discute a relevância das plataformas e mídias sociais para a retomada do debate acerca da conservação do território amazônico, bem como dos povos tradicionais que nele habitam.
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Fernanda Lima é membro do Grupo de Pesquisa em Estado, Instituições e Análise Econômica do Direito
A maior parte das comunidades tradicionais que fazem parte da Reserva Extrativista de Tapajós – Arapiuns, em Santarém, no Pará, não tem energia elétrica. Quem dispõe, recorre ao famoso “gatão”, como costumam denominar a tarefa árdua de passar dias na mata para abrir pico para linhão passar com o fio de energia. Contudo, a comunicação entre os territórios é feita principalmente por rádios postes. Elas funcionam a partir de um motor gerador, que é ligado quando há mutirão para compra de combustível. São 13 mil moradores em 75 comunidades, sendo 26 em aldeias indígenas, que utilizam desse tipo de mídia para receber e transmitir informações.
A conexão de internet também é precária e, muitas vezes, os moradores ficam sem acesso porque a antena de telefonia sofre algum tipo de dano. Mas ainda assim o rádio é fundamental porque “os principais assuntos tratados são avisos comunitários, vindas e atendimentos do barco hospital, os cuidados com o igarapé, com o lixo e a manutenção da unidade de conservação”, descreve Henrique Ferreira, indígena Tapajós e morador da Resex, representante do Coletivo Jovem Tapajônico. A rádio Mosquito, nome dado ao veículo construído pelos jovens, é um exemplo de resistência aos desertos de notícia, termo criado a partir da pesquisa Atlas da Notícia que tem como objetivo mapear veículos jornalísticos de cobertura local que trabalhem com pautas de interesse público.
Quando “municípios não dispõem de veículo ou informação jornalística são considerados um deserto de notícias”, explica Jéssica Botelho, jornalista e pesquisadora do Atlas da Notícia na região Norte do Brasil. O censo Atlas da Notícia é um projeto do Instituto para o Desenvolvimento do Jornalismo (Projor) em parceria com o Volt Data Lab e inspirado no projeto America’s Growing News Desert, da revista Columbia Journalism Review, que realizou um levantamento sobre a presença de jornais nos Estados Unidos. A iniciativa brasileira teve sua primeira edição em 2017 e já registrou mais de 13 mil veículos jornalísticos, dos quais 1.106 estão distribuídos entre os sete estados da região Norte, que está em primeiro lugar no país quando se trata de desertos de notícias, com 63,1% do seu território sem cobertura jornalística. Isso significa que, do total de 450 cidades nortistas, 284 não têm nenhum veículo local cobrindo pautas e produzindo conteúdo de interesse público.
“Os desertos de notícias são esses lugares em que não há uma cobertura. Então, as pessoas ficam mais vulneráveis à desinformação que recebem por grupos de mensageria sobre as questões de sua cidade. O WhatsApp funciona muito como esse canal de trocas de mensagens, que muitas vezes não são apuradas e verificadas, quando não há uma produção jornalística local”, complementa Mariama Correia, jornalista e também pesquisadora do Atlas da Notícia no Nordeste, atualmente a segunda região brasileira com maior deserto de notícias, com 62,4% dos municípios sem informação local.
Populações alijadas do exercício do direito à informação não estão restritas somente aos municípios de pequeno porte, como o de Henrique Ferreira e dos moradores da Resex Tapajós – Arapiuns. “Muitas vezes, os municípios das regiões metropolitanas são desabastecidos de jornalismo local muito pela concentração dos veículos nas capitais. Ficando muito dependente desse olhar, sabendo que esses jornais, sobretudo os impressos que tinham suas redações nas capitais, vêm perdendo equipes, enxugando seus quadros, fechando sucursais, essa lacuna de cobertura se agravou nos últimos anos”, reforça Mariama.
Nos estados do Norte e do Nordeste, veículos online e rádios são os que mais contribuem para robustecer a cobertura noticiosa de proximidade e reduzir desertos de notícias, como mostra ainda o último Atlas da Notícia (2021). “A diminuição se deve principalmente à internet. Veículos nativos digitais têm mais facilidade de serem criados e com bem menos recursos e burocracia. A radiodifusão precisaria de uma concessão e infraestrutura”, compara Jéssica Botelho. Quem também constata essa realidade é Jesse Barbosa, fundador do Ubíqua, instituto que realiza formação de comunicadores em comunidades vulneráveis no Piauí e integrante da Associação Mundial de Rádios Comunitárias (Amarc). “No lugar que tem deserto de notícias, tem fake news. E aí, encontramos um oásis”, afirma.
Jesse comprovou o fenômeno quando visualizou os dados da pesquisa “Hábitos de uso da comunicação digital e offline” realizada em 2022 com trabalhadores da Cooperativa dos Produtores Rurais da Chapada Vale do Rio Itaim – a Coovita, que têm em sua maioria o ensino médio incompleto e até um salário mínimo de renda mensal. Praticamente todos os trabalhadores acessam a internet via celular (95,7%) e se informam via redes sociais, seja pelo Facebook (52%) ou grupos de mensageria, como o WhatsApp (82%). “Quando começamos nossa trajetória, ainda no início dos anos 2000, tínhamos a rádio como principal fonte de informação, depois da televisão, que é mais comum nos lares brasileiros. Hoje, essa realidade mudou. As pessoas têm se informado pelo que chamamos de micromeio, que são os grupos de WhatsApp, por isso resolvemos atuar nesse lugar”, explica.
Com base nos dados, a Ubíqua criou então a plataforma educacional Nestante, que informa de maneira mais direta os trabalhadores rurais locais. “Procuramos ir além de combater o deserto de notícias, porque sabemos que ele não é deserto de informação. As informações são muitas vezes de má qualidade e com objetivos escusos. E o deserto das notícias é um deserto útil à manutenção de poder. É claro que ainda atuamos em formação de rádio, porque ainda há o deserto digital, mas ainda assim, o que temos experimentado hoje é que as pessoas querem ter acesso à internet. E precisamos disputar esse espaço”, avaliou.
Para a pesquisadora Ana Regina Rego, fundadora da Rede Nacional do Combate à Desinformação (RNCD), o Brasil tem peculiaridades muito complexas, por isso o deserto de notícias possui dois vieses: o deserto de notícias mais tradicional, com ausência de veículos locais, e aquele provocado pela falta de credibilidade dos meios de comunicação tradicionais nas redes digitais. “E é nessa questão de entrar com os aplicativos de mensageria onde ocorre muita desinformação. A gente percebe que [os veículos tradicionais] não entram nessas esferas. Primeiro, porque já houve ali um movimento de desqualificar o papel da imprensa a priori e porque, assim como pesquisas já mostraram, as pessoas evitam as notícias. Podemos, portanto, ver no aspecto geográfico, mas também aqueles em que os meios não conseguem entrar porque outras informações estão tomando aquele espaço com outros interlocutores”, avalia.
O perigo da verdade única para pautas ambientais
Outra consequência dos desertos de notícias e/ou coberturas concentradas é a falta de acesso a informações diversas e plurais sobre pautas complexas. Jéssica Botelho, durante pesquisa que realizou em 2022 para o Projeto Mentira tem Preço – monitoramento sobre desinformação socioambiental nas plataformas digitais – identificou narrativas enviesadas sobre desmatamento. “Os veículos aqui em Manaus costumam reproduzir releases da Agência Amazonas, que acaba por reproduzir os releases sobre a Amazônia do Governo Federal. Então, tivemos uma série de informações sobre desmatamento, sem apresentar dados em cada localidade, sem demonstrar as consequências e impactos às populações ribeirinhas e tradicionais, sem mencionar o desequilíbrio ambiental, sem trazer as atividades ilegais que promovem desmatamento”, analisa.
Numa democracia, o governo não pode ser a única fonte para colaborar com o debate público sobre a pauta do desmatamento. Além do problema da negação da existência das mudanças climáticas, há como agravante o uso da ciência e suas evidências para desinformar tanto formadores de opinião quanto o público em geral. “Você tem um escopo bem vasto de desinformação climática que não se prende só em negar a influência humana sobre o aquecimento global. Tem certa sofisticação que vai além da negação pura e simples do problema”, afirma Meghie Rodrigues, jornalista e doutoranda do Programa do Departamento de Política Científica e Tecnológica da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).
A pesquisadora tem se dedicado a estudar o negacionismo científico a partir dos vídeos do Youtube, a plataforma de vídeo mais assistida no Brasil, de acordo com estudo da Kantar Ibope Media. Segundo Meghie, a desinformação climática é exemplificada por várias categorias, desde o discurso anti-globalista que fala de climatismo (entendido como a apropriação na lógica negacionista de pautas relativas ao clima) e é usado bastante pela extrema-direita e por parte da esquerda, passando por crítica às soluções de adaptação e mitigação com o pretexto de que ou vão prejudicar a economia ou simplesmente não vão funcionar, até por um discurso de base religiosa que afirma: “Deus quis assim”.
E é exatamente nesse volume e audiência das mídias digitais que a desinformação sobre as questões climáticas tem encontrado eco e estratégias com interesses econômicos. “O setor do agronegócio faz uma campanha onde insere dúvidas sobre se as atividades do setor têm relação direta com as mudanças climáticas. Dessa forma, você evita discutir a regulação desses setores e passa o máximo de boiada para que as pessoas continuem lucrando”, destaca Meghie.
Na pesquisa Amazônia Livre de Fake, realizada pelo Intervozes com mais oito organizações da Amazônia Legal, foram identificadas 18 figuras públicas de representação política que propagam notícias falsas através de seus perfis nas plataformas digitais e com recorrência de violação de direitos. Alguns deles são parlamentares, inclusive reeleitos nas eleições de 2022, e outros que tentaram pela primeira vez o pleito, o que acende um alerta para o período eleitoral municipal, em 2024.
Outro monitoramento que desde 2016 apresenta relatórios mensais sobre a infodemia socioambiental é o do laboratório Netlab da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). De acordo com os estudos, as principais narrativas utilizadas por políticos e influenciadores em 2022 endossaram as teorias negacionistas, exaltaram o agronegócio e defenderam as ações do ex-governo Bolsonaro em torno das questões ambientais.
Temos, como exemplos, a mobilização do significante “Amazônia” atrelado a imaginários patrióticos, como nação e riqueza brasileiras, ou ainda a linguagem de marketing que é utilizada para convocar a ideia de desenvolvimento e mercado: “agro é pop”, “agro é tudo”, “a Amazônia é nossa”. No ano passado, canais oficiais do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) e sua família se destacaram por disseminar desinformação e pautar esse tipo de discurso em diversas redes, como Twitter, Facebook e Telegram.
Os relatórios do Netlab apontam caminhos para combater a desinformação ambiental. Entre as reivindicações do órgão, direcionadas a diferentes agentes públicos e privados, estão o levantamento e fornecimento de informações confiáveis à população sobre o extrativismo que acaba com a floresta Amazônica e com a população indígena, quilombola e ribeirinha; a ocupação dos desertos de notícias na Amazônia Legal; a mitigação da desinformação; a disseminação de contra narrativas na mídia comercial; e a amplificação da visibilidade de lideranças e organizações socioambientais junto à defesa da justiça social.
O jornalismo local como base para educação midiática
As iniciativas que já realizam o que os relatórios da NetLab recomendam necessitam de apoio financeiro para manter suas atividades e ampliar o debate acerca da regulação da radiodifusão e das plataformas digitais. O Tapajós de Fato é um exemplo disso. Criado em Santarém, no Pará, tem o intuito de descentralizar a comunicação regional e trazer pautas sobre a Amazônia para dentro dela. O jornal, em formato de site, tem perfis em redes sociais e podcast, possui uma equipe de redação formada por extrativistas, quilombolas, indígenas, pessoas que vivem os impactos e a realidade diretamente de dentro de suas comunidades.
“Resolvemos fundar um veículo que pudesse contar nossas histórias para conectar o Tapajós ao mundo, mas também conosco mesmo, mas foi na pandemia que passamos a pautar a falta de medicamentos, depois dos projetos de mineração que não cessavam, além de outros projetos como a São Luiz do Tapajós, que é uma hidrelétrica. Assim, nós reafirmamos e entendemos que esse era nosso lugar de atuação como veículo de enfrentamento de grandes corporações exploradoras de nossos territórios e recursos”, explica o comunicador popular Marcos Wesley Pedroso, um dos fundadores da iniciativa.
Em janeiro de 2021, a equipe do jornal realizou a primeira grande série de reportagens que denunciava o rompimento da barragem de uma mineradora na cidade de Juruti, onde os moradores tiveram suas roças soterradas, igarapés assoreados, e foi “a partir daí que gente começou a se entender de falar sobre o contexto ambiental também”, avalia Wesley. O fundador acredita que é importante manter a pluralidade de vozes, mas que é necessário apoio para isso. “Muitas das vezes gravamos um programa em pendrive, enviamos a uma comunidade por barco, eles recebem na comunidade e de lá é disparado ou o inverso. Mas é importante garantir essa comunicação com os territórios, entendendo as limitações, entendendo a ausência da democracia na Amazônia e contar para outros lugares que não têm essa visão daqui”, explica.
A educação midiática é outro jeito encontrado por jovens jornalistas de Manaus para combater a desinformação e os desertos de notícias. Diferente dos checadores ou investigadores, a Abaré Escola de Jornalismo, criada em 2020, realiza formações junto a diversos públicos, mas principalmente comunidades escolares. “Apesar da Educação Midiática já estar incluída na Base Nacional Comum Curricular (BNCC), não é sempre que ela é tratada nas salas de aula. Recentemente, promovemos na Escola Petrônio Portela uma oficina com professores, e eles multiplicaram os conteúdos para outros educadores e alunos”, informa Julie Pereira, jornalista e co-fundadora da Abaré.
A educação midiática vai ser incorporada pelas escolas brasileiras em articulação com a sociedade civil, segundo Victor Pimenta, diretor do departamento de Direitos na Rede e Educação Midiática criado na gestão Lula. A pasta integra a Secretaria de Políticas Digitais, que por sua vez compõe a Secretaria de Comunicação da Presidência. “Como forma de articulação nessa implementação como ‘vacina’ para a desinformação e discurso de ódio, estamos em parceria com o Ministério da Educação e da Saúde para pensar formas de como inseri-la nas políticas públicas de ambos os setores”, afirma Pimenta.
Outro público beneficiário da medida será o de idosos. De acordo com uma pesquisa realizada em 2021 pela Confederação Nacional de Dirigentes Lojistas (CNDL) e pelo Serviço de Proteção ao Crédito (SPC Brasil), em parceria com a Offerwise Pesquisas, o percentual de pessoas com mais de 60 anos no Brasil usando a internet é de 97%, o que exige, de fato, um trabalho de educação midiática com esse segmento.
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