Caros Leitores,
Diante das mudanças resultantes das deliberações adotadas pelo oligopólio das chamadas Big Techs - Google, Amazon, Facebook, Apple e Microsoft - no ambiente cibernético, diversas áreas têm sido influenciadas nos dias de hoje em razão desse processo - sobretudo aquelas de ordem econômica e social.
Para discutir esse tema, trazemos nesta semana uma notícia que apresenta algumas ideias do livro: “Bit Tyrants: a Economia Política do Vale do Silício”, escrito por Rob Larson, Professor de Economia da Faculdade de Tacoma (EUA) que, busca abordar o tema por uma perspectiva histórica, social, política e econômica.
Nesse livro, são abordadas algumas das limitações e desdobramentos suscitados pelas diretrizes adotadas por essas organizações para atender seus interesses privados, resultando assim em maior grau de distorção da realidade no que tange à influência dessas empresas no mundo do trabalho bem como nas esferas da política e geopolítica.
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Esperamos que gostem e compartilhem!
Fernanda Lima é membro do Grupo de Pesquisa em Estado, Instituições e Análise Econômica do Direito
Imagina-se dois garotos na garagem de uma casa no subúrbio de alguma cidade californiana tirando da cartola ideias de mudança estrutural da sociedade, criando soluções para um progresso qualitativo da humanidade. Acorda-se. Ainda no andar dos anos 2020 o mito do empreendedorismo de base tecnológica “caseiro” ainda alimenta muitos imaginários de jovens, sobretudo homens heterossexuais de classe baixa, média e alta, bem como sustenta o racional dos atuais tomadores de decisão, sobretudo homens brancos heterossexuais de classe alta. Tendem a achar que as novas corporações da ou na Internet são melhores representações do “bom capitalismo”, destoando-se dos monopólios do petróleo, por exemplo. Alguns livros de economia e políticos neoliberais difundem a ideia de que o melhor vencerá a competição, uma condição da natureza humana. Na prática o que ocorre são acordos para evitar a concorrência.
O livro Bit Tyrants: a Economia Política do Vale do Silício, escrito por Rob Larson, professor de economia da Faculdade pública e comunitária Tacoma nos Estados Unidos, busca justamente investigar a formação, desenvolvimento e consolidação do oligopólio das empresas de base tecnológica e digital nas últimas décadas. Isto por meio de uma análise histórica, social, política e econômica. As “Bitiranas” aqui são também conhecidas como GAFAM, as “big techs” centrais e ocidentais: Google (Alphabet), Amazon, Facebook (Meta), Apple e Microsoft [1]. O livro nos mostra justamente a distorção da realidade no que tange às influências dessas empresas no mundo do trabalho, da política e da geopolítica.
Com um tom sarcástico e debochado, Larson faz um compilado robusto, basilar e necessário de ensaios. Pode-se alegar que o autor não elenca novos elementos para entender o fenômeno econômico e político conjuntural, com dados primários, por exemplo, mas congrega de forma instigante fatos históricos que nos fornecem um panorama da economia política da inovação das últimas décadas. Mostra, portanto, a farsa por trás da ideia de que a criatividade atrelada a modelos de negócios “disruptivos” que empresas certas se sustentam não surgiram do acaso, nem por meio de um par de “ideias geniais” e “trabalho duro”. Embora exista certa sobreposição e redundância em alguns capítulos, o livro vai, definitivamente, incomodar quem acredita em contos de fadas e em benevolência corporativa neoliberal.
Por outro lado, o livro nos permite parametrizar importantes discussões acerca da dinâmica da economia de plataforma vigente. A análise de Rob é necessária para não só compreender como essas empresas se tornaram “quase-monopólios”, indo além do discurso de que tudo é “efeito rede”[2] ou “economias de escala”[3], mas para entender as assimetrias de poder em diversas esferas e desenhar uma regulação de plataformas digitais eficaz e abrangente, por exemplo. O autor também sugere novas reflexões para a Pesquisa e Desenvolvimento (P&D) no âmbito da Internet, bem como propõe ideias para ressocializar a rede das redes. Logo, Bit Tyrants: A economia política do Vale do Silício trata de decisões de políticas tecnológicas que a nova e atual geração terão de fazer e podem fazer diferente.
De forma introdutória, o primeiro capítulo trata justamente da origem dos monopólios de tecnologia, com o tal efeito rede. Steve Steinberg, jornalista da Wired, já apontava para o caminho ao qual o “efeito rede” nos leva: a vitória de padrões ruins. Steve exemplifica o próprio Protocolo de Internet (IP) e alega que alterar padrões existentes se tornou praticamente algo inimaginável. Fato é que a economia de rede tem nos levado e nos levará ao monopólio.[4] Todavia, esta resenha se concentra nos capítulos das respectivas empresas, os quais são apresentados e discutidos a seguir.
O segundo capítulo trata da “gigante e original plataforma”: a Microsoft. O livro já começa apontando que da mesma forma que o PC se tornou um padrão industrial, o sistema operacional da Microsoft também: por meio da ampla oferta de ‘clones’ de modo a reforçar a posição dominante como estratégia corporativa. Além disso, o autor reitera que a BASIC, linguagem de programação utilizada no desenvolvimento do sistema operacional e software fundacional da empresa, foi desenvolvida graças a um edital da National Science Foundation (NSF) por professores da faculdade de Dartmouth empenhados em promover o ensino de programação. Também elenca o capital cultural e financeiro da família Gates como elemento fundamental do triunfo da empresa. Aliás, o próprio Bill teria reconhecido as conexões da elite que pertencia em Seattle como fator determinante de seu sucesso.
Embora Bill Gates tivesse dito que não havia dinheiro a ser feito na Internet, pela sua característica “livre”, “aberta” e “universal”, não demorou muito para ele mudar de opinião. Na verdade, bastou os navegadores da Web emergirem no início dos anos 90 como ameaças concorrenciais enquanto “sistemas operacionais online”, disputa desproporcional que durou quase uma década. Aliás, durante esse processo Gates se tornou a pessoa mais rica do mundo, aumentando seu patrimônio em cerca de sete vezes entre 1995 e 1999.
Este período foi apelidado de “Guerra dos Browsers” e contou com uma série de atitudes deliberadas de Gates, entre essas: i. a retenção de APIs[5] da Netscape, então navegador líder, quando informações da versão seguinte do Windows foram solicitadas; ii. a obtenção da licença de operação do Mosaic, primeiro navegador amplamente disponibilizado, para se tornar Internet Explorer; iii. a manobra para assegurar que documentos do pacote Office se tornassem dependentes do uso do Internet Explorer (tornando mais difícil a sua desvinculação); iv. a tentativa de acabar com a linguagem de programação Java por sua característica de interoperabilidade; v. o “investimento” de cerca de 150 milhões de dólares para que Steve Jobs removesse o então Navigator do Mac… É melhor parar por aqui.
No inquérito antitruste realizado pela FTC (Federal Trade Commission, dos Estados Unidos) Bill negou todas essas práticas acima mencionadas. A conclusão, contudo, foi a mesma do caso AT&T: quebrar a Microsoft em partes. No entanto, justamente no famigerado setembro de 2001, no governo do então Presidente Bush filho, o Departamento de Justiça anunciou que não iria mais dividir a empresa. No frigir dos ovos, pouca coisa mudou na Microsoft, mas há quem diga que foi esse processo que consolidou sua característica de “bilionário bonzinho” ou filantropo.
O capítulo três fala da Apple e sua longa jornada até se tornar a empresa com maior valor de mercado nos dias de hoje. A tal “geniosidade” atribuída a Jobs e Wozniack quanto ao casamento perfeito entre o design e a performance se deve, para começo de conversa, ao sucesso da GUI (Graphic User Interface)[6]. Esta, assim como a Internet, foi financiada pela agência militar de pesquisa dos EUA, a DARPA. A propósito, como indicado por Larson, a ideia que Jobs tinha de criar um “segundo padrão industrial” na era dos computadores mostra como o empresário não entendeu devidamente a economia de plataforma. Não à toa, nos idos de 1997, a Apple beirou a falência.
O esboço de “reação” começou na virada do milênio com o iPod, inovação viabilizada pelo poder de armazenamento, que só deslanchou efetivamente com o iTunes. Este que o próprio Steve Jobs chamou de “Microsoft” da transmissão de música. Não obstante, foi apenas em 2007 com o lançamento do iPhone que a Apple bebeu do potencial poder de rede, na emergência dos dispositivos móveis “inteligentes”. Aliás, o jornalista estadunidense Brian Merchan chamou o iPhone de “produto máximo do capitalismo até então”, pela sua taxa de lucro sem precedentes.
Rob Larson também faz referências aos estudos da economista Mariana Mazzucato. No caso do iPhone, destaca que a “touch screen” foi desenvolvida no mesmo local onde foi a Web: no Centro de Pesquisas Nucleares Europeu (CERN), que é financiado pelo dinheiro do contribuinte de 20 países do continente. A finalidade era justamente viabilizar e facilitar a operação do gigante acelerador de partículas situado na fronteira entre França e Suíça. Além da tela, várias outras componentes tiveram origens diversas. A tecnologia WiFi, como exemplo, foi parcialmente financiada pela DARPA e desenvolvida na Universidade do Havaí, que é estatal, para possibilitar a interconexão entre do arquipélago.
O quarto capítulo se refere à Amazon: a empresa que buscou explorar a Internet desde o início, como apontaram os biógrafos de Jeff Bezos. Considerado o CEO de melhor performance pela Harvard Business Review (HBR)[7] entre 2014 e 2018, Bezos decidiu focar a atuação no varejo online por neste setor quase não ter custo de transação (ou de negociação). É basicamente, de fato, intermediar a compra e venda. Entretanto, a Amazon realmente gozou do efeito rede quando se tornou uma plataforma que permitia outros usuários venderem produtos na mesma com o Amazon Marketplace. Como resultado, em 2012 cerca de 40% dos itens despachados pela empresa eram provenientes de terceiros, que totalizavam mais de 2 milhões de varejistas na época. Já em 2019, quase seis em cada dez vendas eram oriundas do portal de comércio eletrônico.
Quando falamos de Amazon, como aponta o autor do livro, temos de mencionar a sua tática para se consolidar enquanto principal prestadora de serviços de computação em nuvem[8], que veio a se tornar a Amazon Web Services (AWS). Bezos e seus executivos identificaram no provimento de “serviços infraestruturais” de armazenamento e processamento de dados a trilha para a Amazon se garantir enquanto duradouro monopólio. APIs foram sendo criadas aos montes, incluindo para: i. bancos de dados gigantes de comportamento do consumidor para fornecer para editoras; ii. acesso a dados de precificação de produtos para desenvolvedores de software; iii. o sistema do “carrinho de compras” para outras empresas; iv. o método de pagamento; etc. Não à toa, a AWS é responsável por cerca de metade do lucro de toda a Amazon. Inclusive, a Amazon tem sido responsável por armazenar dados do Pentágono há quase uma década. Isto ocorreu sem um processo licitatório efetivamente concorrencial e justo, fato que não se mostrou uma preocupação pelo Departamento de Defesa dos Estados Unidos. Aliás, nem uma outra empresa conseguiu o tal “selo de segurança do Estado” para armazenar dados do setor militar, só a Amazon.
A empresa tem sido acusada de diversas práticas anticoncorrenciais nos diversos segmentos em que atua. Entre essas práticas elencadas no livro estão a priorização de anúncios para produtos do seu marketplace ou utilizando dados da sua “caixa de som inteligente”, Amazon Echo, para promover anúncios dos próprios produtos ou a crescente adoção do serviço de streaming Amazon Prime para coleta mensal de taxas de uso em paralelo à coleta de dados comportamentais. A transversalidade e concentração de diferentes mercados pela Amazon é realmente absurda. A título de curiosidade: em 2019 metade dos livros vendidos nos Estados Unidos acontecia via Amazon, enquanto metade dos domicílios assinava o Prime. No entanto, talvez seja na questão trabalhista que mora o lado mais perverso de Bezos e seus executivos.
Ademais, Bit Tyrants reforçou que, em entrevistas de emprego, se o/a candidato/a a vaga ousasse fazer qualquer ponderação entre o trabalho na empresa e o doméstico, o CEO negava a admissão de imediato. No quesito gênero, vale destacar uma referência feita à uma fala de Bezos na qual ele diz a uma funcionária: “estamos aqui… para fazer as coisas, essa é a principal prioridade… Se você não pode se destacar e colocar tudo nisso, talvez este não seja o lugar para você”. Em sua defesa, alega-se que se trata do padrão não só no Vale do Silício, mas em grande parte da economia de mercado. Ainda no âmbito das relações de emprego, o valor médio do salário para os trabalhadores e trabalhadoras da empresa se assemelha ao de trabalhadores do varejo em geral, o que destoa bastante do valor de mercado da Amazon. Este fator tem levando a campanhas como o “Fim da Escravidão na Amazon”. Além disso, apesar dos esforços de executivos da empresa por meio de declarações de zero tolerância a tentativas de associação e organização de seus funcionários, recentemente o sindicato[9] foi criado.
Não obstante, talvez a empresa que detém maior poder sobre a Internet como um todo foi apresentada no capítulo 5: a Google. Com seu mantra “don’t be evil” (“não seja maldoso”), esta tem mostrado que o conceito de malvadeza varia conforme o berço. Aliás, geopoliticamente a Google tem um poder colossal devido a sua infraestrutura de data centers em quase todos os países do mundo[10]. Além disso, a Google fornece o acesso a praticamente todos os serviços online necessários hoje em dia, com algoritmos de última ponta, e também detém a propriedade de cabos de fibra ótica, incluindo cabos submarinos[11]. Essas características contribuem bastante para o sucesso de seu mecanismo de busca: o mais evidente serviço de efeito de rede (quanto mais se busca, melhor a busca), atingindo a marca de estar presente em 95% dos dispositivos móveis[12], por exemplo.
Evidentemente, quem controla a busca online, escolhe o que aparece no resultado. Aliás, se o elemento central das receitas da Google hoje em dia deriva de anúncios publicitários, vale destacar que ali na segunda metade da década de 1990 os seus fundadores Larry Page e Sergei Brin haviam declarado serem contrários ao modus operandi da internet baseada em publicidade. Alegaram que os resultados de busca, por exemplo, seriam intrinsecamente enviesados. Contanto, bastou alguns anos para adquirirem softwares e empresas inovadoras para alocação de anúncios, como AdWords, Blogger, AdMob, DoubleClick, etc. A atuação vertical em todas as camadas da Internet consolida a empresa como sendo, também, uma empresa de telecomunicações atuando em um universo pouco ou quase nada regulado. Isto sem falar no Youtube e a estratégia que violava direitos autorais para a sua massificação no começo.
Pouco se menciona nos foros e instâncias da Governança da Internet, bem como nos ambientes dos registros de nomes de domínio, o fato de o endereço inicial da Google ter sido google.stanford.edu. Sim, o mencionado mecanismo de busca surgiu no ambiente acadêmico – no departamento que fica no edifício que, ironicamente, recebe doação de Bill Gates. Ademais, Page e Brin receberam direta ou indiretamente financiamento da NSF. Tampouco se fala do fato de Vint Cerf, um dos articuladores da padronização do TCP/IP, estar ocupando a posição de evangelista-chefe de Internet da Google.
O sexto capítulo trata da principal rede social em questão: o Facebook (repaginado recentemente como Meta, quando considerado o Instagram e o WhatsApp combinados). Embora Gates tivesse tentado comprar a então embrionária rede social por US$ 24 bilhões, teria Mark Zuckerberg sido visionário de pensar que o Facebook viria a ser considerado a Internet em si em grande parte do dito Sul Global? Ou que cerca de metade dos estadunidenses se informariam dos acontecimentos cotidianos pela plataforma? Provável que não, mas certo é que o sucesso foi movido pelo inapropriado comportamento de Zuck. O livro mostra como o então estudante de Harvard teria inventado o Facemash (protótipo do Facebook) tomando cerveja após ter transado com uma profissional do sexo. De sorte que a tara pelo poder já era previsível, algo que reflete até hoje nos relatórios que empresas de capital aberto baseadas nos Estados Unidos devem preencher para a SEC (Security Exchange Commission), em que se indica a concentração de poder para além do padrão corporativo por parte de Zuckerberg, o CEO.
A estratégia para se consolidar enquanto a Microsoft da Web, no entanto, não veio do natural melhor desempenho, da experiência do serviço ou do controle dos dados pessoais pelo usuário, mas da estratégia em derrotar a corrente na época: Myspace. Vale pontuar também que logo após a criação do “Feed” de notícias em 2006 vieram os filtros-bolhas, mas mesmo com os riscos de desinformação evidentes, cerca de dez anos depois o Facebook ficou sabendo do escândalo do Cambridge Analytica por uma reportagem do London Observer e do New York Times, demonstrando pouco apreço pelo risco infodêmico.
Larson mostra também como usuários trabalham para a rede social e não se dão conta. Por exemplo no âmbito da tradução. O Facebook participa de eventos e matérias alegando ampla preocupação pela diversidade cultural e pelo multilinguismo, mas na prática empurra a tradução da plataforma contra os próprios usuários da rede na maioria dos contextos. Na Espanha esse processo levou um mês, na Alemanha duas semanas, na França dois dias, por exemplo.
Nos últimos três capítulos, Rob Larson coloca questões relevantes em torno da neutralidade da rede e a necessidade de redefinir os rumos da relação tecnologia e política. Nisso não há como discordar: antes de discutirmos se a questão tecnológica deve ser comandada pelas gigantes do Vale do Silício dada sua relevância, não devemos ignorar que em tese as reais inovações sequer vieram dessas empresas. Rob faz o chamado em que o setor público é o lugar natural para pesquisa científica e tecnológica. A dificuldade agora vai ser sensibilizar a grande massa de internautas sobre essa questão para além dos jardins murados[13] da grande Rede.
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