Caros leitores,
Com a proximidade da posse do novo governo em 2023, é possível vislumbrar com cada vez maior ênfase a discussão acerca da necessidade de manutenção da responsabilidade fiscal - representada pelos defensores do capital como sendo o teto de gastos - e um possível contraste entre o balanceamento das contas públicas e a adoção de políticas mitigadoras da desigualdade social.
Diante disso, trazemos hoje uma análise que busca traçar um histórico essencial de modificações normativas nos últimos anos que foram adotadas sob a justificativa da promoção de empregos e responsabilidade fiscal, que não necessariamente se deram conforme previsto, em uma situação que causa ainda maior pressão ao novo governo.
Esperamos que gostem e compartilhem!
Desde a vitória eleitoral do presidente Luiz Inácio Lula da Silva – uma vitória do Estado de Direito e da Constituição Cidadã de 1988 sobre os porões da ditadura – em 30 de outubro de 2022, os desafios fiscais e orçamentários do governo eleito ganharam grande destaque no debate público.
Como se sabe, até o final do ano, a equipe de transição de governo precisa viabilizar política e juridicamente o atendimento de diversas demandas sociais legítimas e urgentes no Orçamento Federal de 2023. Trata-se da inclusão de despesas prioritárias que tiveram destinação de recursos claramente insuficiente no Projeto de Lei Orçamentária Anual (PLOA) de 2023 enviado ao Congresso Nacional pelo governo Bolsonaro.
Muitas dessas demandas não atendidas foram pauta dos debates da campanha eleitoral. Destaque-se a manutenção do valor de R$ 600 para o Auxílio Brasil (que seria reduzido para R$ 400 segundo o PLOA de Bolsonaro) e o acréscimo de R$ 150 por criança (promessa de campanha de Lula), a valorização real do salário mínimo, e a recomposição das verbas dos programas Farmácia Popular e Merenda Escolar, praticamente inviabilizados por Bolsonaro. Além dessas, há muitas outras demandas legítimas e urgentes da sociedade que não podem mais – como tem sido a regra nos últimos anos – continuar sendo ignoradas pelo poder público.
É preciso reconhecer que os eleitores brasileiros expressaram a sua vontade soberana nas urnas, e que eles não decidiram por restrições fiscais ao atendimento, pelo Estado, de suas necessidades. Ao contrário, o presidente eleito Lula – e, mesmo Bolsonaro – prometeu, em campanha, uma maior atuação do Estado!
O entrave legal para a inclusão orçamentária imediata desses gastos urgentes encontra-se na Emenda Constitucional 95 (EC 95). Essa alteração na Constituição Federal congela por duas décadas os gastos primários do governo federal (aqueles que excluem o pagamento de juros da dívida pública), mantendo-os no mesmo nível que tinham em 2016, ano em que a EC 95 foi promulgada por Michel Temer. Conhecida como Teto de Gastos, essa regra fiscal limita a ampliação das despesas primárias federais ao IPCA do ano anterior. Não importa se a arrecadação tributária, o PIB ou a população brasileira e suas demandas legítimas crescem ou não, o nível de gastos públicos deverá permanecer sempre abaixo do teto.
Há diversas alternativas em discussão para permitir a necessária ampliação de gastos no Orçamento Federal de 2023. Uma dessas alternativas, a mais segura em termos jurídicos e políticos, exige a tramitação de um Projeto de Emenda Constitucional (PEC) alterando a EC 95. O conteúdo dessa PEC, chamada de “PEC da transição” está, atualmente, em discussão. Alguns defendem uma “licença temporária” para ampliação de gastos, cuja magnitude também está em discussão; outros falam na exclusão de determinadas rubricas do teto, por exemplo, dos gastos com o Auxílio Brasil; outros ainda apontam a necessidade de revogação imediata da EC 95; por fim, há quem argumente em favor de uma reforma mais ampla das leis fiscais e orçamentárias, substituindo a EC 95 e outras regras fiscais por um arcabouço melhor desenhado.
É provável que essa reforma mais profunda não ocorra ainda durante a transição; no entanto, ela não pode ser contornada, sob pena de frustrar as justas expectativas depositadas pela maioria dos eleitores brasileiros no recém-eleito governo de Lula. Além de uma segunda morte política de Luiz Inácio Lula da Silva, o fracasso de seu governo seria a certeza da volta ao poder das forças de tendência fascista, as quais milagrosamente foram derrotadas em sua tentativa de permanência no poder executivo federal. A sobrevida da democracia brasileira somente foi possível graças à memória popular dos “bons tempos de Lula”. Por essas razões, é importante que as forças que apoiam Lula compreendam o que está em jogo, abrindo mão de discursos fiscalistas maliciosos que tem sido divulgados, nesse contexto pós-eleitoral, nas redes sociais e nos órgãos de imprensa a fim de minar o sucesso do novo governo.
O alarmismo fiscal
Concomitantemente ao debate técnico e político das possibilidades legais de ampliação de gastos públicos federais em 2023, muitos formadores de opinião e veículos de mídia – tanto veículos corporativos1 quanto canais independentes ligados ao campo da esquerda – procuraram expor críticas à “herança maldita” deixada por Jair Bolsonaro, em particular no que diz respeito ao seu aspecto fiscal. O teor de muitas dessas críticas, porém, prejudica muito mais Lula do que Bolsonaro.
É o caso de muitas das palavras de ordem disseminadas nos últimos dias pelas redes sociais. Vejamos dois exemplos desse alarmismo fiscal: “Jair quebrou o Brasil” e “rombo de R$400 bilhões nos cofres públicos”. A divulgação desse discurso de fácil apropriação se espalhou como um rastilho de pólvora pela militância que há poucos dias fazia campanha para eleger Lula. Com a mesma intensidade com a qual denunciamos os crimes, o golpismo, a perversidade e a inaptidão de Bolsonaro busca-se, agora, formar no debate público a ideia de que o Governo Federal do Brasil que Lula receberá de Bolsonaro não dispõe de condição financeira para o cumprimento das promessas de campanha. Foi soado o alarme!
Sobre lobos e cordeiros: de volta a 2014
Qual é a origem desse discurso? No contexto atual, a quem interessa o alarmismo fiscal? Há algumas semanas, mesmo antes do segundo turno das eleições, o ex-presidente do Banco Central Henrique Meirelles tem dado declarações à imprensa denunciando que “o buraco fiscal” deixado por Bolsonaro estaria “próximo de R$ 400 bilhões”, muito além do “prejuízo de R$150 bilhões” estimado por outros especialistas talvez menos realistas e, certamente, menos preparados que ele – como Meirelles, buscando interlocutores incautos, deixa a entender. Quem acompanha a cena política brasileira sabe que Meirelles, nomeado e mantido por Lula no comando do BC entre 2003 e 2010, está em sua própria campanha para que Lula o eleja novamente, agora para comandar a economia do novo governo.
A reprodução do alarmismo fiscal claramente favorece o pleito de Meirelles. Contudo, é preciso compreender que na disputa pelo comando da área econômica do governo não se trata da mera satisfação de uma ambição pessoal. A orientação da política econômica e da agenda do governo implicam a definição de certa hierarquia de interesses materiais conflitantes de diferentes classes e frações da classe burguesa.4 A política de congelamento real do salário mínimo levada adiante por Bolsonaro durante todo o seu mandato favoreceu claramente o capital em detrimento do trabalho. O conflito entre capital e trabalho pela apropriação da renda nacional não é, contudo, o único confronto de interesses que deve ser arbitrado pelo Estado. Em geral, são os múltiplos conflitos entre as próprias frações burguesas que têm preponderância na organização da cena política. No entanto, é preciso observar que há interesses de classe em torno dos quais as diferentes frações burguesas encontram unidade, em especial, a preservação da propriedade privada e o aprofundamento da exploração do trabalho.
Mesmo antes de Bolsonaro, a implementação das políticas de austeridade fiscal por Joaquim Levy a partir da vitória eleitoral de Dilma em 2014 já havia operado uma forte mudança na correlação de forças entre capitalistas e trabalhadores em desfavor desses últimos, os quais, após anos de aumentos reais no salário mínimo, passaram a ser disciplinados pelo aumento abrupto das taxas de desemprego e pelos cortes nas verbas públicas destinadas a políticas sociais, serviços públicos e seguridade social. Embora muitos pequenos e médios capitalistas tenham quebrado com a crise econômica provocada pelo plano de austeridade – e pela liberação abrupta dos preços administrados – nos anos que se seguiram ao auge da crise, a burguesia enquanto classe passou a deter uma fatia maior da distribuição social da renda, podendo ampliar pelo aumento da mais-valia as suas margens de lucro.
Tal conflito fundamental entre capital e trabalho não foi explicitamente apresentado como motivados dos cortes de gastos. A justificativa política da austeridade levada adiante no segundo governo de Dilma Rousseff foi construída sobre o reconhecimento, pela então governante recém-reeleita em 2014, de um diagnóstico equivocado de “crise fiscal”. O mesmo discurso alarmista repetido exaustivamente por muito anos nos grandes veículos de comunicação a fim de desqualificar as políticas econômicas dos governos do PT – um alarmismo fiscal em clara oposição ao discurso da campanha petista de 2014. É para este ponto que eu gostaria de chamar a atenção do leitor!
Lembro também que o golpe parlamentar contra Dilma Rousseff em 2016 – ao qual importantes frações burguesas aderiram apenas após o lançamento do documento Uma Ponte para o futuro, que anunciava a austeridade como pilar central de um programa reformista neoliberal – teve como pretexto um suposto crime de responsabilidade ou, como alguns dos adversários da democracia brasileira gostavam de dizer, um “crime de responsabilidade fiscal”. Os veículos hegemônicos de comunicação se esforçavam em formar no debate público a impressão que as “pedaladas fiscais” (atrasos nos repasses entre bancos públicos e Tesouro Nacional falsamente caracterizados como crimes de responsabilidade) – realizadas por Dilma a fim de manter operantes as políticas sociais prioritárias de um governo sufocado pela própria austeridade – seriam sintomas de uma mesma má gestão fiscal típica dos governos petistas. Uma (sic) condução irresponsável da política fiscal que, arrastada artificialmente por anos, finalmente teria explodido como uma inevitável crise econômica – agravada pelos escândalos de corrupção atribuídos exclusivamente ao PT pelo lawfare da Operação Lava Jato.
Foi neste contexto de múltiplas crises que as diversas frações burguesas em conflito entre si no processo do golpe e, posteriormente, sob o novo governo de Michel Temer puderam reencontrar uma unidade em torno do apoio a um forte programa de reformas neoliberais – mantido e aprofundado pelo governo Bolsonaro – que tem o seu eixo central na Emenda Constitucional 95. Como observado acima, a EC 95 obrigaria os governos à manutenção de uma política de austeridade fiscal inflexível por duas décadas. É preciso salientar que tal experimento fiscal – empreendido já há seis anos ao custo das vidas e do bem-estar das brasileiras e brasileiros – é inédito em todo mundo.
O discurso de “crise fiscal”, alarmismo permanente que legitima e justifica a existência da regra do Teto de Gastos, é uma estratégia de dissimulação de interesses materiais que não devem jamais ser confundidos com a busca do “bem-estar coletivo”. Os reais objetivos dessa regra fiscal draconiana não são a “sustentabilidade das contas públicas” ou a “saúde fiscal” do Estado, como muitas vezes os seus defensores fazem parecer. A EC 95 existe para viabilizar uma agenda neoliberal em torno da qual a burguesia pôde encontrar – contra os trabalhadores e as camadas populares – uma unidade. Isso não significa que nenhuma fração burguesa estaria disposta a abrir mão do programa reformista neoliberal, apenas que o abandono dessa agenda significa um reequilíbrio de forças.
Além de ex-presidente do Banco Central do governo Lula, Henrique Meirelles também foi ministro da Fazenda do governo Michel Temer. Meirelles foi o grande patrocinador político da EC 95. Recentemente, ele respondeu às críticas dirigidas por Paulo Guedes ao Teto de Gastos, deixando clara qual é a verdadeira intenção por trás dessa regra fiscal: “Ele (Guedes) não entendeu que a finalidade mais importante do teto é forçar a definição de prioridades e a aprovação de reformas. A primeira foi a da Previdência e, agora, a Administrativa. Sem o teto, nada disso ocorreria.” Ou seja, a EC 95 não visa a mera “responsabilidade fiscal” (princípio de gestão da política fiscal pela busca do equilíbrio fiscal anual e a busca permanente da redução da dívida pública) que seria (sic) necessária ao atendimento das “responsabilidades sociais” do Estado brasileiro.
A Emenda dirigente e o programa reformista neoliberal implícito
A principal razão para a existência do chamado “novo regime fiscal” é obrigar os diferentes governos ao acatamento de um programa radical de reformas neoliberais. Tal programa esteve no centro da vida política brasileira desde 2016, em detrimento do cumprimento das obrigações e finalidades constitucionais do Estado brasileiro. À pretexto de controlar a dívida pública e de racionalizar as decisões orçamentárias, a EC 95 mantém a economia brasileira num estado de latência e amplia sistemática e intencionalmente os conflitos orçamentários a fim de obrigar o governo à realização de reformas profundas que operem os ajustes fiscais necessários à acomodação de gastos. A frustração social com as taxas de desemprego e de crescimento da economia serve como elemento retórico em favor da aprovação das reformas incluídas no programa neoliberal, afinal, seria preciso “retomar a confiança dos investidores”, o que (sic) certamente “acontecerá com a aprovação da próxima reforma”. A mesma argumentação sobre uma pretensa “modernização” e a “retomada do estado de confiança” que seriam necessárias para a retomada econômica foi repetidamente utilizada, como na promoção da Reforma Trabalhista (Lei 13.467/17); da Lei da Terceirização (Lei 13.429/17); da Reforma da Previdência (EC 103/19), entre muitos outros exemplos.
Além das profundas mudanças na gestão das empresas estatais e do BNDES, um extenso processo de privatizações também encontrou terreno profícuo no cenário de desolação social criado pelo Teto de Gastos, afinal, como justificar a manutenção de “empresas ineficientes” pelo Estado quando tantos brasileiros passam fome e não têm os seus direitos constitucionais minimamente atendidos?
Pretensamente, nos delírios da má consciência de seus idealizadores, a restrição fiscal rígida e esmagadora imposta pela EC 95 levaria os parlamentares a decidirem por uma alocação mais racional de recursos escassos, elegendo prioridades legítimas em lugar dos gastos ineficientes e das desonerações fiscais socialmente injustas. O Teto de Gastos nunca esteve próximo de entregar essa ou qualquer outra de suas promessas! O que vimos nos seis últimos anos foi o acúmulo de conflitos orçamentários em detrimento dos cidadãos mais vulneráveis e a necessidade da aprovação emergencial de uma série de Projetos Emenda Constitucional (PEC) – motivados por variadas razões, legítimas e ilegítimas, desde a emergência da pandemia até a demagogia eleitoreira de Jair Bolsonaro – imposta pelo Teto de Gastos.
A aprovação dessas PECs foi possível graças ao chamado “orçamento secreto”, instrumento de barganha política nada republicano operado pelas mesas diretoras do Congresso Nacional, o qual oferece garantia segura da captura direta de parte significativa dos recursos discricionários do orçamento aos parlamentares aliados do governo.
Nas semanas que antecederam o segundo turno, o projeto em estudo do governo Bolsonaro para a desvinculação do salário mínimo das taxas de inflação foi bastante explorado no debate eleitoral.11 Tal projeto é um claro exemplo do tipo de reforma neoliberal necessária à promoção dos ajustes fiscais permanentemente impostos pela EC 95. Contudo, após anos de frustração social com os resultados do programa neoliberal, projetos como a redução real de salários e aposentadorias jamais seriam aprovados por maioria absoluta no Congresso Nacional sem um instrumento de barganha política tão poderoso como o “orçamento secreto”. Não me parece coincidência, portanto, que esta prática tenha sido “institucionalizada” logo após a difícil aprovação da Reforma da Previdência ao final de 2019.
Embora o programa neoliberal não esteja explícito no texto da Emenda Constitucional 95, fica claro que é a expectativa da sua continuidade que mobiliza uma legião de intelectuais orgânicos da burguesia na defesa enfática do Teto de Gastos. As ameaças de fuga de capitais e de perda de confiança do mercado não são, portanto, motivadas pelo falso risco de insolvência do Estado brasileiro diante do qual o gestor público deve manter a mais rigorosa austeridade fiscal. A verve em defesa do Teto de Gastos é alimentada pela tentativa de imposição de um programa neoliberal explicitamente rejeitado, em campanha, pelo candidato vitorioso no pleito de 2022!
O alarmismo fiscal e a campanha pelo estelionato eleitoral
O primeiro passo para que um governante possa viabilizar politicamente o descumprimento das promessas de campanha é pôr a culpa no antecessor. A frustração das expectativas dos eleitores, afinal, não seria responsabilidade do governante eleito, mas de quem deixou como legado um “governo quebrado”. Os anseios legítimos dos trabalhadores e das camadas populares poderiam assim ser ignorados, afinal, antes de atendê-los seria imperativo solucionar o “rombo nas contas públicas” deixado pelo antecessor fiscalmente irresponsável.
No momento em que escrevo, essa não me parece ser a intenção de Lula. No entanto, é preciso reconhecer que há uma campanha aberta para a adoção do programa neoliberal implícito na manutenção da EC 95. Não chega a ser surpreendente que economistas liberais, intelectuais orgânicos das classes dominantes, disseminem o alarmismo de uma crise fiscal incontornável e distorçam a história econômica das gestões petistas como estratégia de dissimulação de interesses.
Não chega a ser surpreendente a atuação desses intelectuais burgueses para forçar Lula ao estelionato eleitoral. Exigências nesse sentido são levadas cotidianamente à imprensa, por exemplo, no mencionado pleito de Henrique Meirelles ao cargo de Ministro da Fazenda. Espantosa é a atitude acrítica de muitos representantes eleitos das camadas populares e dos veículos de mídia independente ligados ao campo da esquerda, os quais reproduzem irrefletidamente um discurso dissimulador de interesses burgueses e legitimador de uma regra fiscal que impede o cumprimento das obrigações constitucionais do Contrato de 1988 para viabilizar um programa neoliberal recém-rejeitado pelas urnas!
Possivelmente, a “PEC da Transição” não revogará imediatamente a EC 95. Talvez o governo eleito avalie ser mais prudente tomar posse antes de reformar as regras fiscais em vigor no Brasil. Mesmo após a escolha do ministro da Fazenda, o que sinalizará a orientação econômica do governo, haverá grande resistência de frações burguesas à alteração do regime fiscal disfuncional que favorece seus interesses. A disputa ideológica é imprescindível nesse contexto. O apoio ao governo Lula requer das forças de esquerda o abandono completo do fraudulento alarmismo fiscal! Em lugar da reprodução acrítica dessa ideologia dissimuladora de interesses burgueses, é preciso fazer a crítica da austeridade fiscal, de seus pressupostos teóricos e dos artifícios retóricos pelos quais essa política deletéria ganha legitimidade no debate público.
Desdizer o mau dito
A imagem de um “rombo nas contas públicas” remete à experiência financeira de um cidadão privado. Ter um “rombo” no orçamento familiar significa ter despesas que superam significativamente as próprias receitas. Tal circunstância pode levar à incapacidade de realização de pagamentos, isto é, à insolvência financeira. Tal circunstância ocorre quando não se dispõe de moeda (seja como receita, poupança ou crédito) para a realização do pagamento de dívidas e obrigações financeiras. Diz-se de pessoa física ou jurídica nessa situação que está “quebrada” – insolvente, sem disponibilidade da moeda necessária para o pagamento de dívidas e obrigações.
É falso dizer que “o Brasil está quebrado”! Tal mentira é reforçada por eventos recentes, como o fato de Bolsonaro ter realizado muitos gastos eleitoreiros a partir do segundo semestre de 2022, em sua criminosa tentativa de permanecer no poder. A mentira ganha ainda mais força quando se observa o terrível quadro de estagnação econômica, desemprego e disseminação da fome e da miséria deixados pelo governo Bolsonaro. Um governo que além de inapto permaneceu – ao contrário do que dizem os intelectuais burgueses na grande imprensa – fiel ao programa neoliberal do Teto de Gastos. É preciso observar, contudo, que nenhum desses elementos reduz minimamente a capacidade do governo brasileiro de realizar pagamentos em reais.
As finanças públicas não podem e não devem ser pensadas em analogia com as finanças pessoais! O Estado não corre o risco de insolvência para pagamentos na moeda que ele próprio emite. Por pior que o governo de ocasião seja, o Estado monetariamente soberano jamais “quebra” na própria moeda! Todos nós, usuários comuns da moeda, precisamos obtê-la previamente (na forma de papel-moeda ou crédito em conta bancária) a fim de poder realizar pagamentos. O Estado, ao contrário, cria moeda ao gastar! A moeda utilizada por nós como meio de pagamento é, fundamentalmente, um crédito contra o Estado, um passivo monetário em seu balanço patrimonial.
Essa capacidade financeira ilimitada do Estado pode não ser claramente percebida pelo público não especializado na maior parte do tempo, quando se encontra limitada por restrições administrativas. No entanto, momentos extraordinários como a crise da pandemia de covid permitem vislumbrá-la nitidamente. Em 2020, o Governo Federal do Brasil socorreu simultaneamente as famílias brasileiras com o Auxílio Emergencial, os entes federativos que tiveram perda de receita, bem como o sistema financeiro que enfrentava grave crise de liquidez. O déficit de R$ 743 bilhões (a diferença entre o que o governo arrecadou e o que ele gastou) registrado em 2020, resultante do atendimento dessas demandas urgentes, claramente não poderia ter sido financiado pela arrecadação tributária ou por empréstimos do setor financeiro. Ao contrário, a realização desses gastos emergenciais foi condição necessária para superação das crises decorrentes da pandemia. Graças ao pleno exercício da soberania monetária do Estado brasileiro – provisoriamente liberado pela chamada “PEC do Orçamento de Guerra” das restrições administrativas ao pleno exercício de sua soberania monetária – as crises sanitária, social, econômica e financeira provocadas pela pandemia não foram ainda mais graves.
Conclusão
É urgente que o campo da esquerda, e todos os aliados que desejam o sucesso do novo governo de Lula e o cumprimento de suas promessas eleitorais, abandone de uma vez por todas o alarmismo fiscal. Ao invés da disseminação irrefletida de falsas palavras de ordem, é preciso dedicar-se à crítica das políticas de austeridade que condicionam o programa neoliberal. É preciso compreender que o Estado brasileiro, monetariamente soberano, não está “quebrado” e não corre o risco de quebrar (a despeito da inegável má gestão de recursos do governo Bolsonaro), pois não opera segundo a mesma lógica dos usuários comuns da moeda.
Ao contrário de indivíduos e famílias que devem buscar o equilíbrio entre receitas e despesas em seu orçamento doméstico a fim de não se tornarem insolventes, o governo pode e deve permitir a flutuação do seu resultado fiscal a fim de suavizar as oscilações na atividade econômica e de combater eventuais instabilidades financeiras. O exercício adequado da soberania monetária é a chave para que os recursos à disposição da sociedade, como capacidade produtiva e força de trabalho, não sejam deixados ociosos. Através dos gastos públicos, o Estado pode criar, mobilizar e coordenar planejadamente as capacidades que lhe permitem oferecer bens e serviços à população, superar gargalos inflacionários, assegurar o cumprimento da lei, garantir a soberania das fronteiras e a segurança nacional. O pleno exercício da soberania monetária é a condição para que o Estado brasileiro possa cumprir adequadamente as suas obrigações constitucionais.
Em discurso recente, o Presidente Lula indicou claramente que o maior compromisso do seu futuro governo é com a transformação da realidade dos brasileiros mais pobres, e não com ficções econômicas que servem aos interesses mesquinhos de preservação de um programa neoliberal antidemocrático e antipopular. O discurso do presidente Lula é um convite à reflexão sobre o dogmatismo fiscal dirigido a todos os seus apoiadores – uma tarefa para a qual o Instituto de Finanças Funcionais para o Desenvolvimento (IFFD) e a Rede MMT Brasil estão à disposição.
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