Caros leitores,
É notório que o conflito entre Ucrânia e Rússia trouxe diferentes efeitos em diferentes escalas, inclusive na geopolítica global. Nesse sentido, a divergência entre as nações ocidentais, basicamente unânimes em condenar a atitude russa, e aquelas que permaneciam neutras ou aliadas aos últimos traziam consequências, inclusive diplomáticas, marcantes. A posição chinesa, aqui, atingiu ponto fundamental.
Nesse sentido, trazemos hoje uma análise que traça justamente a relação atual entre União Europeia e China, diante da guerra e da posição adotada por cada uma. Os efeitos, inclusive econômicos, dessa divergência ainda estão em cheque e passíveis de uma análise mais profunda.
Esperamos que gostem e compartilhem!
Ygor Alonso é membro do Grupo de Pesquisa em Estado, Instituições e Análise Econômica do Direito (GPEIA/UFF).
Quando o líder chinês Xi Jinping fez sua primeira visita de Estado à Europa em 2014, ele anunciou uma nova era de cooperação em uma turnê por vários países, que o presidente do Parlamento Europeu à época chamou de “um sinal de boas-vindas da importância que o novo líder chinês atribui a uma parceria reforçada entre China e União Europeia.”
Oito anos depois, o otimismo daquele período desabou, com a relação entre a China e a União Europeia atingindo o que os analistas chamam de um claro ponto baixo das últimas décadas.
A preocupação europeia com as ambições globais chinesas e seu histórico de direitos humanos, as tensões com os Estados Unidos, sanções e, agora, a invasão da Ucrânia pela Rússia – cujo impacto Pequim parece ter subestimado ou descartado — todos esses fatores pioraram as relações.
Isso foi demonstrado no mês passado durante dois encontros entre líderes europeus. Tanto o G7 quanto a Otan endureceram significativamente suas posições sobre a China, em um sinal de que as opiniões na Europa estão mais alinhadas com as de Washington.
A mudança é o culminar de uma série de passos em que Pequim pode ter subestimado a extensão em que estava afastando a Europa, mas também parecia disposto a pagar esse preço.
Mas é um golpe significativo para a visão ideal de Pequim: uma Europa com fortes laços com a China que contrabalançam o poder e a postura dos EUA.
“A China e a UE devem agir como duas grandes forças que defendem a paz mundial e compensar as incertezas no cenário internacional”, disse Xi aos líderes europeus em uma cúpula em abril, instando-os a rejeitar a “mentalidade de bloco rival”.
Mas essas palavras pareceram não agradar o lado europeu, que se concentrou em pressionar a China para ajudar a mediar a paz na Ucrânia. “Foi tudo menos um diálogo. De qualquer forma, foi um diálogo de surdos”, disse depois o chefe de relações exteriores da UE, Josep Borrell.
Espiral descendente
Pequim elaborou cuidadosamente seus relacionamentos na Europa nas últimas décadas – criando uma cúpula anual com países da Europa Central e Oriental e buscando incursões para sua iniciativa de infraestrutura, que ganhou o apoio da Itália em 2019.
As preocupações dos EUA sobre os riscos da colaboração com a China repercutiram na Europa. As próprias nações europeias estavam vendo o regime de Xi se tornar cada vez mais assertivo em sua política externa, desde o tom combativo de seus diplomatas até o estabelecimento de uma base naval na África, a crescente agressividade no Mar da China Meridional e em relação a Taiwan, e a hostilidade a empresas ou países que entraram em conflito com a posição chinesa em questões polêmicas.
Alegações de violações de direitos humanos na região de Xinjiang, noroeste da China, e o desmantelamento da sociedade civil em Hong Kong também desempenharam um papel na mudança das percepções europeias, dizem analistas.
Autoridades chinesas chamaram as alegações de que mantinha mais de um milhão de uigures e outras minorias muçulmanas em campos de internação em Xinjiang de “fabricações” e criticaram a discussão dessas questões como “interferência” em seus assuntos internos.
A UE declarou a China um “rival sistêmico” em 2019 e os laços continuaram a se desgastar desde então. “A China agora exige que o resto do mundo lhe respeite e reconheça as posições que assume, sem prestar muita atenção ao que os outros possam pensar”, disse Steve Tsang, especialista internacional da Universidade de Londres.
Essa abordagem fez as democracias ocidentais “abandonarem a política de décadas de ajudar a China a se modernizar e crescer com a esperança de que uma maior integração econômica encoraje a China a se tornar uma parte interessada responsável nos assuntos mundiais”, disse Tsang.
Vantagem econômica
A China foi o terceiro maior mercado de exportação de produtos europeus e a maior fonte de produtos que entraram na Europa no ano passado, mas os atritos já começam a afetar a relação econômica entre a UE e Pequim.
No início deste ano, uma disputa entre a China e a Lituânia levou a UE a apresentar um caso na OMC, acusando Pequim de “práticas comerciais discriminatórias contra a Lituânia” em retaliação ao que o governo chinês vê como uma violação pelo Estado báltico de seu princípio “Uma China”, pelo qual reivindica Taiwan como seu território.
A maior perda financeira foi o tão esperado acordo comercial entre a UE e a China, que parou no ano passado depois de ser pego no fogo cruzado de uma troca de sanções. Pequim impôs sanções a legisladores e órgãos da UE depois que a União sancionou quatro autoridades chinesas por supostos abusos em Xinjiang.
Mas o dano foi maior do que apenas o acordo. “Esta reação exagerada (de Pequim) não foi uma jogada sábia”, disse Ingrid d’Hooghe, pesquisadora associada do think tank Clingendael, com sede na Holanda, apontando para o efeito prejudicial na opinião pública.
“A estratégia da China em relação à Europa estava desmoronando e aparentemente não entendia que todas essas ações – as sanções reativas, a diplomacia coercitiva – no fim funcionaram contra os objetivos diplomáticos da China … e também empurraram a Europa para mais perto dos Estados Unidos”, disse Ingrid.
Embora essas ações possam ter impulsionado uma mudança no pensamento europeu com claras consequências econômicas, contribuíram para o Ministério das Relações Exteriores da China, de acordo com Henry Gao, professor da Faculdade de Direito da Singapore Management University.
“Para eles, a relação fria é um preço necessário e é mais importante fazer pontos políticos”, disse Gao.
Ponto cego
São os cálculos mais recentes da China sobre como responder à guerra da Rússia na Ucrânia que podem acabar sendo os mais caros quando se trata de relações europeias.
Enquanto os países europeus e os EUA se uniam em apoio à Ucrânia, a China se recusava a condenar a guerra – em vez disso, reforçando seu relacionamento com a Rússia e se juntando ao Kremlin apontando o dedo para os EUA e a Otan.
Analistas políticos na China que entendiam as consequências negativas que a posição chinesa teria em seus laços europeus, de acordo com Li Mingjiang, professora de Relações Internacionais da Escola de Estudos Internacionais da Universidade Tecnológica de Nanyang, em Cingapura. Mas essa avaliação pode ter sido “subestimada” pelos governantes, disse Li.
Cálculos sobre a importância geopolítica dos laços com a Rússia e o vínculo estreito entre Xi e o presidente russo, Vladimir Putin, provavelmente também atrapalham, acrescentou.
“É um dilema realmente enorme para a China… e eles não podiam arcar com grandes consequências negativas na parceria estratégica China-Rússia. Esse imperativo realmente prevaleceu”, disse Li.
Houve reconhecimento da miopia da China entre os estudiosos do continente,
Chen Dingding, fundador do think tank Intellisia Institute em Guangzhou, escreveu em um artigo que os riscos da guerra na Ucrânia “não são totalmente compreendidos na China”, onde autoridades e acadêmicos falharam em reconhecer o ” choque” que a morte e a destruição na Ucrânia trariam aos europeus.
“A proximidade geográfica e emocional da guerra mudará fundamentalmente os sentimentos europeus em relação à segurança comum, dependências econômicas e soberania nacional nos próximos anos”, escreveram Chen e seu grupo internacional de coautores.
No entanto, vozes fortes em muitos países continuam a defender uma abordagem equilibrada para a China, de acordo com d’Hooghe. O futuro pode trazer não uma dissociação, disse ela, mas sim uma recalibração na Europa de como colaborar com a China, mantendo-se de olho na segurança e no equilíbrio.
“Mas agora – e isso também é verdade com o relacionamento europeu com a Rússia – as considerações normativas parecem pesar mais do que os interesses econômicos”, conclui.
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