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quarta-feira, 27 de janeiro de 2021

Quem controlará as tecnologias da internet: A batalha geopolítica do 5G


Caros leitores,

A disputa pela tecnologia 5G tem assumido posição central nas relações EUA X China nos últimos anos, reverberando através do globo inclusive em âmbito da política nacional, como um reflexo do alinhamento automático promovido pelo Governo Federal.

Nesta tocada, trazemos na notícia de hoje uma discussão acerca de como essa questão, especialmente envolvendo a gigante tecnológica Huawei, traz consigo uma análise acerca da independência tecnológica como propulsor de uma independência nacional, bem como os efeitos geopolíticos que insurgem nesse contexto.

Esperamos que gostem e compartilhem!

Ygor Alonso é membro do Grupo de Pesquisa em Estado, Instituições e Análise Econômica do Direito (GPEIA/UFF).

Em 1994, quando a Huawei não passava de uma pequena vendedora de comutadores telefônicos, seu fundador, Ren Zhengfei, foi conversar com o então presidente chinês, Jiang Zemin. O ex-engenheiro do Exército convertido para o setor dos produtos eletrônicos de massa lançou então a carta patriótica: “As telecomunicações são uma questão de segurança nacional. Para uma nação, não ter seus próprios equipamentos nessa área é como não ter Exército”. Esse sábio preceito foi adotado por outros países, principalmente pelos Estados Unidos. Ironicamente, hoje são os Estados Unidos que encaram a Huawei e seu domínio da tecnologia 5G como uma ameaça à segurança nacional.

Propriedade de seus empregados, a empresa é caracterizada pelo atípico sistema de gestão rotativa, pelo desprezo em relação aos contratos públicos – considerados “gananciosos” por Zhengfei –, pelo culto aos valores maoistas e pelo apego à ideia de inovação nacional para romper a dependência da China em relação às empresas estrangeiras “imperialistas”. O grupo gerencia redes em 170 países e emprega mais de 194 mil pessoas. Desde 2009, ele está entre os principais players envolvidos no desenvolvimento da tecnologia 5G, tanto no setor industrial quanto em vários organismos internacionais de padronização. No verão de 2020, a Huawei destronou a Samsung como líder mundial na venda de smartphones. Considerada uma das empresas chinesas mais inovadoras, sua filial HiSilicon projetou o chip Kirin, com alguns dos aplicativos de inteligência artificial mais avançados do mercado.

Parte desse notável sucesso explica-se pelo inabalável compromisso da empresa com a área de pesquisa e desenvolvimento (P&D), à qual dedica mais de 10% de seus lucros anuais, o equivalente a mais de US$ 15 bilhões de dólares em 2019 – para 2020, esperam-se US$ 20 bilhões –, à frente da Apple e da Microsoft. A título de comparação, todo o setor automotivo alemão investiu cerca de US$ 30 bilhões em P&D em 2018. Para além dessas cifras, a Huawei é um ícone para a sociedade chinesa: o raro exemplo de uma empresa que, saindo da base da cadeia com produtos rudimentares e ultrapadronizados, hoje fala de igual para igual com a Apple e a Samsung. Sua trajetória ilustra as elevadas aspirações do governo para o setor de tecnologia. Faz um longo tempo que a China está confinada ao papel de fábrica de montagem de produtos estrangeiros, como relembra a humilhante etiqueta colocada na parte de trás de todos os dispositivos da Apple: “Projetado na Califórnia, montado na China”. O destino da Huawei mostra que uma nova era pode se iniciar, com a frase: “Projetado na China, montado no Vietnã”.

Se outras empresas chinesas seguirem esse exemplo, o domínio dos Estados Unidos na economia mundial poderá ser seriamente atingido. Embora, no passado, países firmemente ancorados na esfera de influência norte-americana já tenham passado por uma fulgurante decolagem econômica – Alemanha, Japão, Tigres Asiáticos –, o processo era mais ou menos dirigido pelos Estados Unidos. No início do século XXI, os Estados Unidos começaram a se incomodar em ver a China alçar-se ao topo por seus próprios meios, com seus próprios objetivos geopolíticos, enquanto eles pareciam cochilar no volante.

O que está em jogo no atual debate sobre o 5G vai muito além da questão do domínio chinês sobre esse padrão de telefonia. O 5G é a tecnologia que deverá permitir uma conexão mais rápida a um maior número de dispositivos, conectados e interconectados, aproximando as operações de processamento de dados de sua origem, ou seja, o usuário final. Mas a publicidade em torno do assunto obscurece os muitos obstáculos que existem para sua aplicação industrial. Para a maioria dos usuários, o impacto do 5G estará restrito ao aumento da velocidade de download e, talvez, ao advento da internet das coisas, há muito anunciado.

O Exército das torradeiras conectadas

Claro que o avanço tecnológico das redes e dos dispositivos exige investimentos colossais, e a batalha para conquistar o mercado é feroz. Mas a Huawei e o 5G são apenas a ponta do iceberg. Por trás deles desenvolve-se um confronto econômico e geopolítico muito maior, no qual a China tenta ganhar vantagem sobre os Estados Unidos. Se o 5G está irritando tanto o Tio Sam, é porque ele não tem um peso-pesado para colocar no ringue. A Europa está mais tranquila porque é a casa de duas companhias bem estabelecidas, a Nokia e a Ericsson.

A ofensiva dos Estados Unidos contra a alta tecnologia chinesa atinge um amplo leque de empresas, da ZTE (estatal muito ativa no terreno do 5G) à WeChat, passando pelo TikTok e muitas outras menos conhecidas. A Huawei, porém, é indiscutivelmente o alvo principal, pois aos olhos da Casa Branca ela representa a quintessência de uma China sem escrúpulos, cujos crimes os Estados Unidos não se cansam de condenar e punir, em Hong Kong, em Xinjiang, no Mar da China Meridional etc., a tal ponto que Donald Trump se refere à empresa por meio de um daqueles apelidos de que ele tanto gosta: “A espiã”.

Para o Salão Oval, a Huawei simboliza o golpe baixo que o mundo vê erroneamente como sucessos comerciais merecidos. Ela viola direitos de propriedade intelectual, tiraniza parceiros, aproveita a generosa ajuda estatal para derrubar preços e arrasar a concorrência. Construindo redes de telecomunicações nos países do Sul, a companhia os prende em uma relação de profunda dependência, participando assim da “diplomacia do endividamento” exercida pela China, que se difunde por meio do programa “Novas Rotas da Seda”. Mais grave, a Huawei estaria equipando seus produtos com backdoors, que ajudariam o regime chinês a expandir suas atividades de vigilância. Segundo os detratores mais criativos, a empresa logo poderá virar contra nós as geladeiras e torradeiras conectadas à rede 5G.

Essas críticas vêm muitas vezes apoiadas pela menção à Lei Nacional de Inteligência promulgada pela China em 2017, a qual exige que empresas (e cidadãos) cooperem com as autoridades, fornecendo informações sempre que solicitado. Outro motivo de preocupação: a aceleração da “fusão civil-militar”, um esforço para tornar mais fluidas as relações entre o setor de tecnologia e o Exército – inspirado no exemplo dos Estados Unidos. A Huawei, por sua vez, nega categoricamente as acusações de espionagem, destacando que o governo chinês não correria o risco de arruinar sua reputação e confiança internacional.

Como de costume, as alegações do governo Trump baseiam-se em evidências muito frágeis, ou até inexistentes, o que não o impediu de tentar juntar à sua cruzada vários países amigos, com destaque para o Reino Unido, a França, a Itália e muitas nações do Leste Europeu, “encorajando-os” a banir a Huawei de suas redes 5G – o que é um eufemismo, dada a intensidade das pressões econômicas e diplomáticas exercidas pelo Departamento de Estado por meio de suas embaixadas. A mesma coisa se passa em todos os continentes. Após um intenso lobby do secretário de Estado norte-americano, Mike Pompeo, o governo chileno decidiu excluir a Huawei de seu projeto de cabo submarino transpacífico. Na Índia, onde a Huawei está muito presente, o primeiro-ministro Narendra Modi joga com a escolha ou não da companhia chinesa como instrumento de represália contra a China, após violentos confrontos de fronteira. Embora nenhuma proibição oficial tenha sido anunciada, Nova Délhi estaria considerando recorrer a uma empresa nacional, a Reliance Industries.

O Reino Unido, embora um tanto entorpecido nestes tempos de Brexit, desferiu em julho um golpe contra a companhia chinesa, exigindo que as operadoras de telefonia móvel do país removessem todos os equipamentos Huawei de sua rede até 2027. A decisão causou surpresa, pois o país é um ponto central na estratégia europeia do grupo chinês, cuja sede regional está instalada em Londres. Também foi no Reino Unido que a Huawei inaugurou, em 2010, em parceria com os serviços de inteligência britânicos, o Centro de Avaliação de Segurança Cibernética Huawei (Huawei Cyber Security Evaluation Centre, HCSEC), responsável por analisar e corrigir falhas de segurança identificadas em suas redes. Mas essas boas relações não pesaram muito diante das intimidações dos Estados Unidos e das críticas do Partido Conservador, em cujas fileiras se formou um grupo parlamentar hostil à China – a grande moda do momento.

A União Europeia não conseguiu definir uma política comum a respeito do 5G, principalmente porque a questão foi tratada em termos de segurança nacional, área na qual os Estados membros são soberanos. Teria sido mais judicioso abordá-la pelo ângulo da política industrial e das relações internacionais. Assim, poderia nascer um gigante europeu único de 5G, filho da Nokia e da Ericsson, generosamente subsidiado para assumir a missão de igualar os esforços da Huawei em termos de P&D. Parece improvável que as coisas caminhem nessa direção, embora a Comissão Europeia, sob pressão da França e da Alemanha, tenha mostrado recentemente alguma inclinação para abandonar sua obsessão – a competitividade – e levar em consideração o contexto geoeconômico.

A Alemanha, o único grande país europeu que ainda não revelou seu plano para o 5G, prometeu chegar a uma decisão no outono de 2020. A classe política está dividida sobre a questão, e até o partido de Angela Merkel está rachado. Os diplomatas norte-americanos lotados em Berlim não perdem nenhuma oportunidade de lembrar a seus interlocutores quanto poderia lhes custar sua indulgência para com a Huawei.

A diplomacia do endividamento

Na lenda criada por Trump, a empresa de Shenzhen é a própria encarnação do “comunismo de conivência” chinês, mas o fenômeno Huawei pede outras leituras. Uma das mais convincentes é aquela proposta pelo economista Yun Wen. O atual presidente da companhia, Ren Zhengfei, parece ser, por trás da fanfarronice, do gosto por aforismos maoistas e dos pendores nacionalistas, um fino conhecedor das sutilezas da geopolítica. Sob sua liderança, a Huawei se estabeleceu em regiões difíceis – o interior da China, na década de 1990, e depois alguns países do Sul onde as perspectivas de lucro eram pequenas – e os transformou em frentes para atacar mercados mais promissores. À medida que a China estendia seus tentáculos na África e na América Latina, a Huawei e sua compatriota ZTE agarravam-se a esse movimento para construir suas redes, obras indiretamente beneficiadas pelos empréstimos concedidos pela China aos governos locais para ajudá-los a financiar grandes projetos de infraestrutura. Segundo Yun Wen, no caso da Huawei, essa diplomacia do endividamento não teria tido apenas efeitos negativos. Não apenas as receitas geradas pela empresa nos países do Sul são relativamente modestas em comparação com outros mercados, mas sua instalação nessas regiões, em parte impulsionada pelo espírito de “internacionalismo terceiro-mundista” caro a Mao, fez que ela precisasse treinar no local muitos engenheiros e técnicos qualificados.

Os Estados Unidos sempre foram uma área de alto risco para a Huawei, muito antes da presidência de Trump e mesmo da administração de Barack Obama. Em 2003, a companhia chinesa foi atacada por sua principal concorrente nos Estados Unidos, a Cisco, por violação de patente. Essa foi a primeira de muitas derrotas. Após ser proibida de assumir qualquer participação ou controle em empresas norte-americanas, a Huawei poderia ser impedida de atender seus próprios clientes e lançar novos produtos nos Estados Unidos. Desde o início, uma acusação martelou como um refrão: a de que a Huawei trabalha de mãos dadas com o Exército chinês. Em 2011, uma revelação feita pelo jornal The Wall Street Journal (27 out.) de que a empresa teria negociado com o Irã, ignorando as sanções dos Estados Unidos vigentes contra esse país, veio somar-se ao dossiê contra a companhia. Em 2013, a Huawei anunciou sua retirada dos Estados Unidos, e hoje sua presença em Washington resume-se a um exército de lobistas.

É razoável perguntar por que a campanha dos Estados Unidos contra a Huawei só se intensificou recentemente, uma vez que os primeiros tiros foram disparados há dezessete anos. No final de 2018, o governo dos Estados Unidos ordenou a prisão da filha de Zhengfei, Meng Wanzhou, diretora financeira da Huawei, durante uma escala no Canadá. Desde então, o país vem se dedicando a demolir o grupo, com sanções cada vez mais severas. Trump pediu ao fundo de pensão oficial do governo que não investisse em empresas chinesas. Os contratados do governo federal precisam provar que não têm nenhuma conexão comercial com a Huawei, e as empresas chinesas listadas em Bolsa nos Estados Unidos são obrigadas a publicar suas contas e a declarar qualquer contato com o governo da China. Diversos fatores econômicos e geopolíticos se combinam para explicar a ofensiva dos Estados Unidos.

No plano geopolítico, as revelações de Edward Snowden em 2013 sobre as atividades da Agência de Segurança Nacional dos Estados Unidos (NSA) dão uma pista interessante, como lembra Yun Wen. Em 2010, com o codinome Operação Shotgiant, a NSA invadiu os servidores da Huawei com dois objetivos: encontrar vestígios das possíveis ligações da empresa com o Exército chinês – a busca não deve ter dado em nada, pois nenhum documento vazou para a mídia – e identificar falhas de segurança em seus equipamentos, o que permitiria aos serviços de inteligência dos Estados Unidos espionar alguns de seus Estados clientes, como Irã e Paquistão. Nos documentos vazados por Snowden, a NSA não escondia suas intenções: “A maioria de nossos alvos se comunica por meio de dispositivos fabricados pela Huawei. Queremos ter certeza de que conhecemos bem esses produtos, para poder operá-los e ter acesso a essas linhas”. Guo Ping, presidente da Huawei por rotação, fez um comentário bastante lógico: “[A Huawei] é um espinho no pé do governo norte-americano, pois o impede de espionar quem ele quiser”.

Na verdade, se a Huawei vencesse a corrida 5G, a supremacia norte-americana no campo da inteligência estaria seriamente comprometida, no mínimo pelo fato de que a companhia chinesa provavelmente estaria menos disposta a cooperar de maneira informal com as agências dos Estados Unidos do que, por exemplo, suas concorrentes europeias.

No plano econômico, para além da infraestrutura material exigida pelo 5G, é preciso pensar na malha de direitos de propriedade intelectual que essa tecnologia implica. Antes de mais nada, o 5G é um padrão. Cada rede ou aparelho que pretenda operá-lo precisa respeitar suas especificações técnicas, o que passa necessariamente pela utilização de tecnologias patenteadas. Um smartphone moderno com Wi-Fi, touchscreen, processador etc. está protegido no mínimo por 250 mil patentes (esse número, de 2015, deve ser ainda maior hoje). Segundo uma estimativa de 2013, 130 mil dessas patentes seriam “patentes essenciais” (Standard-Essential Patents, SEP), como são classificadas aquelas que permitem a conformidade com uma norma técnica como o 5G.

No campo das tecnologias móveis, o número e a distribuição geográfica dos titulares de patentes essenciais evoluíram à custa da América e da Europa ocidental e em benefício dos países asiáticos.5 E patentes significam royalties. A norte-americana Qualcomm, grande vencedora do 2G e de vários outros padrões importantes, tira dois terços de seu faturamento da China, principalmente da Huawei. Sozinha, a Huawei gastou desde 2001 mais de US$ 6 bilhões em royalties, 80% dos quais foram para empresas norte-americanas. Esses valores desproporcionais acabaram fazendo o governo chinês reagir. Após multar a Qualcomm em US$ 975 milhões por abuso de posição dominante em 2015, ele conseguiu, três anos depois, bloquear a tentativa da companhia de adquirir a holandesa NXP, argumentando que a operação reduziria ainda mais a margem de manobra de suas empresas.

“Estamos em guerra”

Mas as coisas mudaram. A Huawei está agora entre as maiores detentoras de patentes essenciais relacionadas ao 5G. Isso não a impede de continuar criticando fortemente o sistema mundial de propriedade intelectual – Ping pediu uma revisão das regras desse “clube internacional” em um sentido mais igualitário e benéfico para todos, comparando os royalties a “pedágios impostos por bandidos de estradas”. É verdade que a natureza “essencial” das patentes detidas pela empresa é discutível. Como apontou um analista, se o smartphone fosse um avião, as patentes da Nokia e da Ericsson cobririam o motor e o sistema de navegação, enquanto as da Huawei protegeriam os assentos e os carrinhos de refeição. Porém, seja qual for o poder de suas patentes, a Huawei conseguiu se livrar de sua situação de dependência.

Para a China, tentar tornar-se credora (em vez de tomadora) de patentes faz sentido do ponto de vista econômico. Foi assim que ela conseguiu preencher o fosso que a separava dos Estados Unidos em termos de direitos líquidos arrecadados: enquanto em 1998 as empresas norte-americanas recebiam 26,8 vezes mais royalties do que as chinesas, em 2019 essa proporção era de apenas 1,7.6 Logicamente, a China também começou a pesar mais nos organismos internacionais de órgãos de padronização. A Comissão Eletrotécnica Internacional (International Electrotechnical Commission) e a União Internacional de Telecomunicações (International Telecommunications Union) são dirigidas por chineses, e o mandato de três anos do primeiro presidente chinês da Organização Internacional de Padronização (International Organization for Standardization, ISO) terminou em 2018.

Na ONU, a China tem se mostrado muito ativa no estabelecimento de padrões para tecnologias de reconhecimento facial. Na ISO, esteve particularmente interessada nas cidades conectadas, terreno favorito da Alibaba, o que deixou o Japão preocupado. E, por meio de seu ambicioso programa China Standards 2035, lançado com grande pompa em 2020, o país pretende melhorar a cooperação entre empresas de tecnologia e agências governamentais a fim de estimular o desenvolvimento de padrões internacionais favoráveis aos seus interesses.

E agora, o que farão os Estados Unidos? Alguns observadores estabelecem um paralelo entre a atual campanha antichinesa e os anos 1980, quando Washington tentava domar os gigantes industriais japoneses. Em 1986, muitos membros do governo Reagan e da indústria pensaram que seriam estrangulados quando a Fujitsu anunciou sua intenção de adquirir a Fairchild Computing, lendária fabricante norte-americana de semicondutores. Um executivo do setor resumiu o sentimento geral: “Estamos em guerra com o Japão – não é uma batalha com armas e balas, mas uma guerra econômica na qual a munição é a tecnologia, a produtividade e a qualidade.” (Los Angeles Times, 30 nov. 1987). Alguns anos antes, as sanções comerciais incentivadas pela Casa Branca conseguiram impedir a Toshiba, outro mastodonte japonês, de vender seus computadores no mercado norte-americano.

“Estamos em guerra”: o lema não mudou. A disputa comercial entre Estados Unidos e Japão teve um desfecho pacífico; muitos na China quiseram acreditar que com eles seria a mesma coisa e que um acordo duradouro acabaria surgindo após algumas concessões. Mas esse resultado parece cada vez mais improvável. A esse respeito, a administração Trump está dividida em três campos. O primeiro é o do próprio presidente. Tudo sugere que seus ataques à Huawei e similares são parte de uma estratégia maior para garantir vantagem comercial sobre a China. Na verdade, se o objetivo fosse realmente impedir a hegemonia da China sobre o 5G, a estatal ZTE seria um saco de pancadas muito melhor do que a Huawei – mas ela não sofreu mais danos do que uma multa de US$ 1 bilhão. Para Trump, a Huawei é uma moeda de troca nas negociações comerciais – e um slogan de campanha.

O segundo campo é o dos falcões, liderado por Peter Navarro, conselheiro do presidente para o Comércio, e Robert Lighthizer, representante do Comércio dos Estados Unidos. A seus olhos, conter a ascensão da China é um imperativo vital, e eles não hesitariam em atacar a Huawei com ainda mais força. Eles estão por trás de todas as propostas que buscam ampliar o leque das empresas chinesas afetadas pelas sanções. Por fim, há o terceiro campo, o do complexo militar-industrial, que prefere fazer o papel de “pombos”. E por um bom motivo: para esse campo, a China representava um mercado lucrativo. Em 2019, a Huawei sozinha comprou US$ 19 bilhões em material eletrônico de fabricantes dos Estados Unidos. Impedir que fabricantes nacionais negociem com a China significa favorecer seus concorrentes estrangeiros.

Enquanto havia esperança de uma efetivação completa do acordo comercial entre a China e os Estados Unidos assinado em janeiro, o campo dos “pombos”, no qual se destaca o secretário do Tesouro, Steven Mnuchin, conseguiu moderar o ardor antichinês de Navarro e Lighthizer. Com a deterioração da situação geopolítica e a crise da Covid-19 – cuja responsabilidade Trump imputa à China –, essa perspectiva está se enfraquecendo. Assim, a Huawei corre o risco de permanecer como uma moeda de troca, para trocas que jamais ocorrerão.

Nesse ínterim, as medidas de retaliação se multiplicam. No início de agosto, Pompeo anunciou o fortalecimento do programa Rede Limpa (Clean Network), cujo objetivo é limpar a internet da “influência nefasta” do Partido Comunista Chinês. Poucos dias depois, a Casa Branca privou a Huawei de qualquer possibilidade de uso de tecnologias que envolvam direta ou indiretamente empresas norte-americanas, o que promete ser um grande quebra-cabeça para continuar fabricando seus produtos. Isso porque, a despeito das somas colossais investidas em pesquisa, dos batalhões de engenheiros e da apologia da inovação “interna”, há componentes que a Huawei não consegue produzir por conta própria nem comprar na China.

É o caso dos chips ultramodernos Kirin, projetados na China, porém gravados no exterior, que são cruciais para as funcionalidades baseadas em inteligência artificial. Há quinze anos empenhada em competir com o Vale do Silício, a China fez progressos consideráveis nessa área, a ponto de dominar claramente algumas tecnologias, como o reconhecimento facial. No entanto, seu principal trunfo até hoje era sua capacidade de coletar massas gigantescas de dados para alimentar e treinar seus algoritmos de aprendizagem automática – uma coleta realizada por seus gigantes digitais, mas também possibilitada pela exploração de uma mão de obra estudantil barata. Esse modelo, no entanto, foi criado para o mundo de antes, um mundo no qual a China podia contar com entregas ininterruptas de equipamentos de alto desempenho feitos em Taiwan ou nos Estados Unidos. Hoje, a ruptura dessas cadeias de suprimentos coloca em risco a inteligência artificial chinesa como um todo. Ao declarar guerra à Huawei, os norte-americanos talvez estejam tentando tanto impedir que ela tenha seus próprios semicondutores, por meio da subsidiária HiSilicon, quanto conter seu avanço no 5G.

Também na política industrial chegou a hora da ofensiva norte-americana. Os parlamentares decidiram reservar fundos para a construção de redes em arquitetura aberta que possam vir a substituir as da Huawei e suas concorrentes. Paralelamente, o orçamento alocado aos fabricantes locais de semicondutores, de acordo com a lei “CHIPS for America”, atualmente em discussão no Congresso, foi elevado para US$ 10 bilhões. Os Estados Unidos parecem ter entendido que este período de tensão geopolítica não é o momento ideal para enfraquecer seus arautos digitais. O Vale do Silício aproveita: foi a conselho do dono do Facebook que Trump decidiu atacar o aplicativo TikTok.

De modo geral, a reação chinesa foi menos agressiva. É preciso dizer que a China não esperou o ataque dos Estados Unidos para fortalecer sua soberania tecnológica à base de bilhões de dólares de dinheiro público, ainda que, nesse ínterim, a crise sanitária tenha dominado parte desses fundos (a instalação do 5G, em particular, atrasou). Em maio, logo após o governo Trump anunciar novas restrições à Huawei e seus fornecedores, Xi Jinping anunciou um plano de US$ 1,4 trilhão para garantir a liderança chinesa em várias tecnologias-chave até 2025. As duas expressões mais faladas na China hoje são “desestadunização” – da cadeia de suprimentos e da infraestrutura tecnológica – e “economia de dupla circulação” – uma nova direção política que consiste em articular a reorientação do mercado doméstico e o desenvolvimento de tecnologias de ponta adequadas à exportação.

Enquanto vão de vento em popa as discussões em torno da venda pela TikTok de suas atividades norte-americanas, o governo chinês aumentou a lista de tecnologias cuja exportação pretende controlar, incluindo algoritmos de recomendação de conteúdo, reconhecimento de voz e muitas outras aplicações de inteligência artificial. Em reação ao programa norte-americano Clean Network, a China também acaba de anunciar o lançamento de sua própria rede internacional, a Global Data Security Initiative, que visa combater a vigilância e a espionagem dos Estados Unidos.

Por enquanto, a Huawei vai bem. Desde a prisão de Wanzhou, antecipando sanções mais duras, a empresa começou a acumular estoques, que podem durar de dez meses a dois anos – mas algumas peças estarão obsoletas até lá. Ela também tem na sacola uma pilha de contratos de redes 5G. Por fim, ciente de que seus aparelhos logo não terão mais acesso às atualizações do Android, ela decidiu desenvolver seu próprio sistema operacional: o Harmony OS.

Seja qual for o destino da Huawei no futuro próximo, a mensagem chegou alto e claro à China, à Rússia e a outros países: soberania tecnológica é um imperativo. A China entendeu isso muito antes da declaração de guerra de Trump, o que aumentou ainda mais seu senso de urgência. Paradoxalmente, portanto, foram os Estados Unidos que pressionaram a China a colocar em prática uma das muitas máximas de Zhengfei: “Sem independência [tecnológica], não há independência nacional”. Seria irônico que a batalha dos Estados Unidos contra a Huawei fizesse nascer uma China muito mais avançada e autônoma no plano tecnológico, sem nenhum fornecedor norte-americano em suas cadeias de abastecimento.

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