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quarta-feira, 25 de novembro de 2020

Ataques do governo à agricultura familiar colaboram com alta dos alimentos

Caros leitores,

É marcante que, nos últimos tempos, viveu-se um aumento expressivo de alguns dos principais componentes da cesta básica, tendo o preço dos alimentos em um contexto geral subido em meio ao conturbado cenário pandêmico, que por sua vez já afeta diretamente os provimentos de inúmeras famílias.

Nesta matéria, trazemos para análise a forma segundo a qual o Governo Federal incorreu, direta ou indiretamente, nesta inflação no gênero alimentício através de medidas normativas no decurso do tempo. Traz-se, ainda, atos que podem agravar ou perdurar essa realidade em um futuro próximo.

Esperamos que gostem e compartilhem!

Lucas Pessoa e Ygor Alonso são membros do Grupo de Pesquisa em Estado, Instituições e Análise Econômica do Direito (GPEIA/UFF).

O aumento atípico dos preços dos alimentos nas últimas semanas resulta da pandemia e de fatores econômicos conjunturais, mas não deixa de retratar os ataques do governo à agricultura familiar e à pequena propriedade, responsáveis por 70% da produção alimentar no País.

O aumento atípico dos preços dos alimentos nas últimas semanas resulta da pandemia e de fatores econômicos conjunturais, mas não deixa de retratar os ataques do governo à agricultura familiar e à pequena propriedade, responsáveis por 70% da produção alimentar no País.

Um exemplo é o desmanche, por Bolsonaro, do sistema de preços mínimos e de estoques reguladores centralizados na Companhia Nacional de Abastecimento, recurso dos governantes anteriores para achatar picos de preços. A escalada inclui várias medidas provisórias que incentivam a grilagem das áreas de agricultura familiar pelos grandes fazendeiros do agronegócio voltado para a exportação.

O conjunto da obra põe em risco a segurança alimentar, que requer, segundo a FAO, que “todos, em todos os momentos, tenham acesso físico e econômico a alimentos suficientes, seguros e nutritivos que atendam às suas necessidades dietéticas e preferências alimentares para uma vida ativa e saudável”.

As altas dos preços dos alimentos pesaram no avanço de 0,24% do IPCA de agosto, sob influência da ampliação da demanda externa, do dólar caro, do auxílio emergencial e da inexistência de estoques estratégicos do governo. O preço do arroz acumula uma elevação de 20% e o do feijão, de até 30% neste ano.

As variações foram seguidas de temores quanto ao aumento da inflação, mas repasses de choques de preços de alimentos no atacado para o consumidor, sublinha José Francisco de Lima Gonçalves, economista-chefe do Banco Fator, não são automáticos, muito menos proporcionais e não contaminam os preços em geral.

“A taxa Selic e os juros de mercado caem sistematicamente desde meados de 2016, graças à queda da inflação, mesmo com choques de preços de alimentos”, destaca Gonçalves em relatório da instituição.

“Fica difícil afirmar que a alta dos preços no atacado vai perdurar e que será repassada para o IPCA. Dado o peso de tais itens, sua contribuição é grande, mas, se as famílias compram por preço maior, sua renda real cai e não compram outros itens, exercendo pressão baixista sobre seus preços.”

O pico de preços evidenciou a fragilização da capacidade de atuação do Estado. Entre as medidas consta a demolição da Conab com base apenas no fervor pró-mercado. Fundada em 1990, a empresa pública unificou a Companhia de Financiamento da Produção (CFP), criada em 1943, no governo Getúlio Vargas, a Companhia Brasileira de Alimentos (Cobal) e a Empresa Brasileira de Armazenamento (Cibrazem), instituídas em 1962 e 1963, no governo Jango Goulart.

A missão da Conab é gerenciar as políticas agrícolas e de abastecimento alimentar, para atender às necessidades básicas da sociedade, de modo a preservar e estimular os mecanismos de mercado, por meio de garantias de preços para os agricultores e programas limitados de compras. Em 2000, no governo Lula, a estatal começou a trabalhar com foco na agricultura familiar e em programas sociais.

“A crise alimentar de 2008 sinalizou um papel cada vez maior para a Conab de garantir estoques alimentares suficientes para mitigar os aumentos de preços globais e manter a demanda suficiente para a produção da agricultura familiar e o consumo das famílias”, chama atenção Fábio Veras Soares, do Ipea, coordenador de estudo sobre o assunto publicado pelo Centro Internacional de Políticas para o Crescimento Inclusivo da ONU. Esta estrutura, diz, “é crucial para implementar e estender a cobertura de políticas de demanda estruturadas para muitas populações vulneráveis e marginalizadas em todo o País”.

No ano passado, o governo anunciou, entretanto, a venda de 27 das 92 unidades armazenadoras da Conab. No auge das compras públicas para formação de estoques reguladores, em 2012, a aquisição de alimentos beneficiou 128,8 mil agricultores. No ano passado, foram apenas 9,7 mil. O pior momento ocorreu no governo FHC, que reduziu de modo drástico a capacidade de armazenagem da Conab, destaca a newsletter especializada O Joio e O Trigo.

O ataque à agricultura familiar incluiu a Medida Provisória 910, da regularização fundiária ou da grilagem, assinada em dezembro por Bolsonaro. A MP flexibiliza a regularização fundiária e concretiza duas demandas estratégicas dos ruralistas, facilitar a transferência para o mercado do estoque de 88 milhões de hectares das terras públicas da reforma agrária e ampliar de quatro para 15 módulos fiscais o tamanho dos imóveis passíveis de legalização por simples autodeclaração dos requerentes, que são grandes proprietários e grileiros. Em julho, o presidente decidiu acelerar a titulação com vistoria indireta das propriedades.

“Para regularizar 95% das 97 mil propriedades há legislação, o que falta é estrutura para fazer a titulação para os pequenos proprietários. O que o governo quer legalizar são as grandes áreas públicas que foram griladas e invadidas por fazendeiros e grileiros. Boa parte dessas áreas é habitada por indígenas, quilombolas, trabalhadores sem-terra, posseiros, ou seja, se ele pretende fazer a titulação só com base em imagens aéreas sem verificar no local o povoamento e eventuais disputas, aumentará ainda mais o conflito no campo e ampliará o problema ambiental”, dispara o deputado Nilto Tatto, da Frente Ambientalista do Congresso.

A desnacionalização do petróleo e o desmanche da Petrobras, que, após privatizar gasodutos e a distribuidora BR, quer vender também as suas refinarias sem aprovação do Congresso, ameaçam a autossuficiência em derivados de petróleo e gás, uma preocupação crescente diante da perspectiva de risco energético em 2025 com a possível insuficiência da oferta de petróleo para atender à demanda mundial, prevê a geóloga Patrícia Laier, diretora do Sindipetro do Rio de Janeiro. Os motivos incluem o declínio de descobertas e da produção dos campos convencionais. Os preços dos derivados de petróleo, vale lembrar, têm grande peso na cotação dos produtos alimentícios.

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segunda-feira, 23 de novembro de 2020

Convite

Caros leitores,

Viemos convidá-los ao Webinar "O ambientalismo após a eleição de Joe Biden", promovido pelo Centro Brasileiro de Relações Internacionais (CEBRI). O Evento ocorrerá no dia 25 de novembro, a partir das 18:00 e contará com a participação de:

Thomas Lovejoy, Fundador e Presidente do Amazon Biodiversity Center e do Biological Dynamics of Forest Fragments Project e Senior Fellow da United Nations Foundation;

Sergio Amaral, Conselheiro do CEBRI e ex-Embaixador do Brasil em Washington D.C.;

Izabella Teixeira, Senior Felow do CEBRI, ex-Ministra do Meio Ambiente e Co-Chair do Painel Internacional de Recursos Naturais da ONU Meio Ambiente (IRP/UNEP);

Julia Dias Leite, Diretora-Presidente do CEBRI.

Diante dos resultados das eleições presidenciais dos Estados Unidos, vislumbra-se um cenário de novo tratamento dado pelo país em matéria de meio ambiente, o que por sua vez traz possíveis consequências na forma de lidar com a questão internamente, especialmente no que tange à Amazônia. 

Para debater tais questões, o Webinar propõe jogar luz a esse debate, trazendo consigo nomes de grande relevância na matéria.

Esperamos que gostem e participem!

Lucas Pessoa e Ygor Alonso são membros do Grupo de Pesquisa em Estado, Instituições e Análise Econômica do Direito (GPEIA/UFF).

Inscreva-se no Webinar aqui

sexta-feira, 20 de novembro de 2020

A covid-19 pode ajudar a acelerar a inclusão no transporte da América Latina


Caros leitores,

A pandemia do novo coronavírus impôs um marcante impacto a diferente setores, no entanto é indubitável que um dos mais afetados frente à contenção da circulação urbana foi o dos transportes públicos. Essa realidade permite analisar e discutir caminhos e possibilidades, inclusive de melhoria no serviço a ser oferecido.

Nesta matéria, trazemos uma entrevista com o Vice-Presidente de infraestrutura do Banco Mundial, em que este debate a realidade da América Latina e como a situação excepcional vivenciada pode trazer uma nova forma de pensar acerca do fornecimento deste serviço, especialmente em termos de democratização e maior segurança às mulheres.

Esperamos que gostem e compartilhem!

Lucas Pessoa e Ygor Alonso são membros do Grupo de Pesquisa em Estado, Instituições e Análise Econômica do Direito (GPEIA/UFF).

Quando a covid-19 passar e olharmos para trás, o transporte público se destacará como um dos setores mais afetados. Desde o início, em fevereiro, entre 60% e 90% dos latino-americanos deixaram de usar ônibus, metrô ou trem por causa das medidas de confinamento e distanciamento social.

Contudo, na realidade pós-pandemia, o transporte pode ampliar seu papel de inclusão social e econômica ―inclusive contribuindo com o empoderamento das mulheres―, tornando-o mais sustentável, seguro e acessível, segundo Makhtar Diop, vice-presidente de Infraestrutura do Banco Mundial.

Diop, um senegalês que morou durante quatro anos no Brasil, fala nesta entrevista sobre as oportunidades e desafios que a região enfrentará em seus sistemas de transporte público pós-pandemia; e especialmente como as mudanças trazidas pela covid-19 podem ser uma oportunidade de tornar o setor mais inclusivo para as mulheres.

P. Sabemos que a covid-19 vem tendo graves impactos negativos na saúde e na economia da América Latina e do Caribe. Qual é a importância da infraestrutura na resposta à crise?

R. Ela tem um papel muito importante. A pandemia teve fortes efeitos negativos nos serviços de infraestrutura, exacerbando ainda mais seus impactos sociais e econômicos. Os pobres não conseguem ir trabalhar, frequentar a escola e chegar até as unidades de saúde quando mais precisam. O setor de energia sofreu impactos consideráveis: o consumo per capita despencou abaixo da média global de 2017 e as pessoas e empresas estão tendo dificuldades em pagar suas contas. Repensar os serviços de infraestrutura é fundamental para nos recuperarmos da covid-19, principalmente na América Latina, região que ainda investe relativamente pouco em infraestrutura em comparação ao resto do mundo. Sob as condições certas, os investimentos privados podem ajudar, e há muito o que a região pode fazer nesse sentido. Também precisamos reconhecer que a resposta à pandemia esbarra em limitações fiscais. Por isso, os pacotes de recuperação da covid-19 precisam conter investimentos de alta qualidade em setores como o transporte.

P. Um dos efeitos mais visíveis da covid-19 são as ruas vazias em nossas cidades. Os sistemas de transporte público da América Latina estão prontos para enfrentar os problemas que já existiam e também os novos desafios impostos pela pandemia?

R. Desde fevereiro, o número de usuários do transporte público na região caiu entre 60% e 90%, principalmente pelo medo de os passageiros contraírem o vírus em ônibus, trens ou aviões. Ao todo, isso vem custando às operadoras de transporte público cerca de 380 a 400 milhões de dólares por mês e algumas já faliram.

A covid-19 expôs muitas das vulnerabilidades do setor de transportes, mas também representa uma oportunidade para resolver os problemas e tornar os sistemas mais resistentes. Portanto, o transporte deve ser parte importante dos pacotes de estímulo fiscal relacionados à covid-19 na América Latina e no Caribe. Projetos bem planejados podem resolver antigas limitações e contribuir para o aumento do PIB, ao mesmo tempo mantendo o endividamento sob controle e promovendo uma recuperação verde e inclusiva. Os projetos regionais de manutenção de estradas rurais, por exemplo, têm o potencial de gerar entre 200.000 e 500.000 empregos anualizados diretos para cada 1 bilhão de dólares gasto.

Hoje, os sistemas de transporte de diversos países latino-americanos padecem de acesso precário, serviços de baixa qualidade, custos altos e falta de segurança, principalmente para mulheres e meninas.

P. A mobilidade inclusiva é um dos principais desafios da América Latina e do Caribe. Qual é o panorama real do acesso das mulheres ao transporte na região?

R. Já houve grandes avanços, mas o transporte público na região, em sua maioria, ainda trata mulheres e homens da mesma forma, apesar de suas necessidades diferentes. Se essa questão não for levada em consideração, os sistemas de transporte podem se tornar ambientes hostis para as mulheres. Seis em cada dez mulheres nas principais cidades latino-americanas dizem já ter sofrido assédio físico no transporte público. Um estudo recente do Banco Mundial sobre o sistema de trens suburbanos do Rio de Janeiro indicou que as mulheres estariam dispostas a pagar mais para usar vagões de uso exclusivo. Perversamente, no entanto, a segregação de vagões por gênero também pode aumentar o estigma e o risco de assédio: quase um quarto dos passageiros homens acreditam que as mulheres que não usam os vagões exclusivos são parcialmente responsáveis pelo assédio. O fardo do assédio que recai sobre as mulheres é um fenômeno global: em Nova Déli, na Índia, alunas aceitas nas melhores faculdades preferem frequentar instituições de qualidade inferior só para ter um deslocamento mais seguro.

Também temos de lembrar que não se trata apenas de assédio. As mulheres tradicionalmente precisam usar o transporte durante a gravidez, acompanhadas de crianças pequenas ou carregando compras pesadas. Geralmente, elas precisam caminhar mais ou usar meios de transporte informais por falta de alternativas. Essa situação é ainda mais difícil para as mulheres de baixa renda e sujeitas a diversas vulnerabilidades, como as que moram em áreas remotas, com serviços não confiáveis e ruas desertas e mal iluminadas. Infelizmente, tudo isso contribui para um círculo vicioso de desvantagens que as obriga a trabalhar apenas meio período, com baixos salários ou só perto de casa, ou mesmo a evitar qualquer deslocamento, prejudicando suas chances de conseguir emprego remunerado.

P. O que podemos fazer para oferecer uma maneira mais segura para as mulheres usarem o transporte público na América Latina?

R. O mais importante é incluir as mulheres desde o início na concepção e implementação dos sistemas de transporte. Afinal, ouvir as necessidades de 50% da população é essencial para termos sistemas inclusivos e seguros para todos. Estamos lançando um curso online junto com a ONU Mulheres para capacitar os funcionários do setor de transportes, com o intuito de internalizar as questões de gênero na concepção e gestão dos projetos de transporte.

Outro fator importante é o uso da tecnologia. A América Latina foi pioneira no uso da tecnologia para dar mais segurança às mulheres. Na Cidade do México, por exemplo, um projeto do Banco Mundial introduziu um aplicativo que conecta imediatamente as mulheres à polícia e a serviços oferecidos às vítimas. O projeto inclui treinamento para os usuários sobre como intervir. Em Quito, a iniciativa “Bajale al Acoso” (“Abaixo ao assédio”) inclui um sistema semelhante de mensagens de texto para respostas rápidas. Muitas cidades ―como Bogotá, Buenos Aires, Rio e São Paulo― também fazem campanhas de conscientização e ações de capacitação para envolver a comunidade.

P. O que precisa mudar para que as mulheres tenham acesso a mais oportunidades por meio de sistemas de transporte mais seguros e acessíveis na região?

R. A solução exige que as mulheres tenham um papel central na concepção dos sistemas de transporte e que sejam uma parte representativa dos trabalhadores e dos tomadores de decisão no setor. Também precisamos de dados de qualidade e de uma boa compreensão do problema.

Do ponto de vista econômico, o empoderamento das mulheres faz todo o sentido. De acordo com estimativas, se as mulheres tivessem a mesma participação que os homens nos mercados de trabalho, a economia mundial receberia um influxo de 28 trilhões de dólares até 2025. Nos países em desenvolvimento, o maior obstáculo para que as mulheres trabalhem é a falta de transporte adequado, de acordo com a Organização Internacional do Trabalho. Por esse motivo, a probabilidade de trabalhar fora de casa é quase 17% menor para as mulheres. Uma combinação de fatores estruturais ―incluindo o assédio, mas também a participação desproporcional das mulheres nas responsabilidades domésticas― acabam por restringir as mulheres a empregos mais próximos de casa. Vimos isso em estudos em Buenos Aires e na Cidade do México, por exemplo; embora o tempo de deslocamento das mulheres seja igual ao dos homens, sua esfera de deslocamento é muito mais limitada, reduzindo seu acesso às oportunidades.

Com a crise da covid-19, muitos países e cidades latino-americanas estão repensando seus sistemas de transporte para torná-los mais inclusivos para todos, inclusive as mulheres. O Banco publicou recentemente um importante relatório (“Por que ela se move? - Um estudo da mobilidade das mulheres em cidades latino-americanas”) apresentando as complexidades que as mulheres de baixa renda na América Latina e no Caribe enfrentam diariamente ao se deslocar. O objetivo é ajudar as cidades a “reconstruir melhor”. A recuperação pós-covid-19 precisa trazer o gênero para o primeiro plano e sanar os diversos desafios que as mulheres enfrentam no transporte público. Investimentos de qualidade e que promovam a inclusão aumentarão as oportunidades de emprego para mulheres e homens, e estimularão o crescimento verde. Tenho certeza de que a América Latina continuará liderando esse esforço.

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quarta-feira, 18 de novembro de 2020

China e outros 14 países da Ásia e Oceania assinam o maior acordo comercial do mundo

Caros leitores,

Em meio a um momento de acirramento do embate existente entre as duas principais potências econômicas do globo - EUA e China - e diante de um momento político de questionamentos por parte do primeiro ao que consiste na ordem multilateral, novas possibilidades fizeram-se possíveis.

Nesta matéria, trazemos a assinatura daquele que consiste no maior acordo comercial do mundo, que abdica da participação dos norte-americanos e traz consigo a busca pela China de firmar-se na ordem multilateral, encabeçando planos audaciosos de integração que envolvem principalmente o oriente.

Esperamos que gostem e compartilhem!

Lucas Pessoa e Ygor Alonso são membros do Grupo de Pesquisa em Estado, Instituições e Análise Econômica do Direito (GPEIA/UFF).

Quinze países da Ásia e da Oceania assinaram no domingo (15) um acordo para formar a maior associação comercial do mundo, em uma grande vitória para a China, principal promotora do projeto desde que ele começou a ser negociado, em 2012. A Parceria Econômica Regional Abrangente (RCEP, na sigla em inglês) exclui os Estados Unidos, mas reunirá 2,1 bilhões de consumidores e 30% do PIB mundial.

China, Japão, Coreia do Sul, Austrália e Nova Zelândia assinaram o pacto, juntamente com os dez países que compõem a Associação de Nações do Sudeste Asiático (Asean) ―Indonésia, Tailândia, Singapura, Malásia, Filipinas, Vietnã, Myanmar, Camboja, Laos e Brunei― ao fim da reunião de cúpula desta organização, realizada neste ano por videoconferência devido à pandemia. A Índia, que decidiu abandonar as negociações no ano passado devido ao temor de que produtos chineses baratos inundem seu mercado, terá a possibilidade de se incorporar à RCEP no futuro, se quiser.

Como a reunião foi por videoconferência, a assinatura do acordo seguiu um protocolo próprio, adaptado às circunstâncias da pandemia. Cada país realizou sua própria cerimônia, na qual o respectivo ministro do Comércio firmou o documento sob o olhar de seu chefe de Governo ou de Estado.

“Estou muito satisfeito porque, depois de oito anos de negociações complexas, finalmente concluímos hoje de forma oficial as negociações da RCEP”, afirmou o primeiro-ministro vietnamita, Nguyen Xuan Phuc, cujo país preside atualmente a Asean.

Impulso

O sucesso das negociações e a assinatura do acordo representam um impulso econômico e político para Pequim. Como principal propositor dessa iniciativa, a China consolida sua influência na Ásia, em detrimento dos Estados Unidos. Envia a mensagem de que é Pequim, e não Washington, o Governo que está realmente interessado na região. Ela poderá desempenhar um papel-chave no desenvolvimento das regras comerciais do continente. O pacto abre ainda novos mercados para suas exportações, em um momento de incerteza sobre a evolução da economia global. E reforça as credenciais que o país busca como defensor global do multilateralismo, em meio a uma tendência à desglobalização que foi acelerada pela pandemia de covid-19.

O pacto é uma alternativa ao TPP, o Acordo Transpacífico de Cooperação Econômica. A administração do ex-presidente americano Barack Obama via o ambicioso acordo entre países dois lados do Pacífico, do qual a China estava ausente, como um pilar econômico para sustentar a influência dos Estados Unidos na Ásia. Quando chegou à Casa Branca, o presidente Donald Trump ordenou a retirada americana do pacto, que outros 11 países ratificaram.

A saída americana foi um golpe quase fatal para o TPP e reforçou os argumentos de quem afirmava que a maior potência mundial não tem interesse em se envolver realmente na região. A decisão de Trump reavivou as negociações para a RCEP, que se arrastavam havia anos. O interesse dos Governos regionais de encontrar formas de estimular suas economias, afetadas primeiro pela guerra comercial e tecnológica entre EUA e China e depois pela pandemia, fez o resto.

Para o primeiro-ministro chinês, Li Keqiang, “nas atuais circunstâncias mundiais, [o acordo] traz um raio de luz e de esperança em meio às nuvens escuras” deixadas neste ano pela pandemia e pelas tendências desglobalizantes. A RCEP, acrescentou, “mostra claramente que o multilateralismo é o caminho correto e representa a direção adequada para a economia mundial e o progresso da humanidade”.

“Acreditamos que a RCEP, como o maior acordo de livre comércio do mundo, é um importante passo rumo a um marco ideal de comércio global e regras para o investimento”, assinalaram os países signatários em um comunicado. É um grupo muito diverso, que inclui algumas das economias mais avançadas do mundo, como o Japão; a “socialista com características chinesas” em Pequim; e algumas das mais pobres do planeta, como Laos e Camboja.

Diferenças

A RCEP e o TPP são muito diferentes. Enquanto o TPP se concentrava na redução de barreiras não tarifárias (proteção do meio ambiente, padrões para investimento estrangeiro), a RCEP dá ênfase principalmente às tarifas, sem a preocupação com proteções dos direitos trabalhistas, oferecidas pela tratado promovido originalmente pelos EUA.

A aliança elimina tarifas sobre mais de 90% dos bens trocados entre os membros. O acordo também inclui proteções sobre propriedade intelectual e capítulos sobre investimentos e comércio de bens e serviços. Além disso, estipula mecanismos para a resolução de disputas entre os países.

No total, a RCEP reduz tarifas e estabelece regras em cerca de 20 áreas. Entre outros, elimina impostos sobre 61% das importações de produtos agrícolas e pesqueiros da Asean, Austrália e Nova Zelândia, juntamente com 56% da China e 49% da Coreia do Sul.

Com a assinatura do acordo, aumenta a pressão sobre o presidente eleito dos EUA. Joe Biden, para demonstrar o compromisso de seu futuro Governo com a região que acumula o maior potencial de crescimento nos próximos anos. Biden afirmou no ano passado que tentará renegociar o TPP para que os Estados Unidos se reincorporem ao pacto, o que não parece ser uma tarefa fácil.

As próprias negociações iniciais para levar adiante o pacto promovido pelos EUA já se mostraram muito espinhosas, e é possível que economias como a japonesa exijam condições mais rígidas. O próximo inquilino da Casa Branca também terá de lidar com um Congresso muito mais reticente em relação a grandes acordos comerciais. À medida que a campanha eleitoral foi avançando, Biden foi se mostrando menos enfático sobre suas aspirações de retomar o TPP, e já declarou que prefere se concentrar primeiro na recuperação econômica e na luta contra a pandemia.

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segunda-feira, 16 de novembro de 2020

Convite!


Caros leitores,

Viemos convidá-los ao Webinar "Uma nova relação com a América do Sul?", promovido pelo Centro Brasileiro de Relações Internacionais (CEBRI). O Evento ocorrerá no dia 18 de novembro a partir as 15:00 e contará com a participação de:

Emma Mejía, Ex-Ministra da Educação e Relações Exteriores da Colômbia;

Tom Shannon, ex-Subsecretário do Departamento de Estado para o Hemisfério Ocidental;

Rubens Ricupero, Conselheiro Emérito do CEBRI;

Hussein Kalout, Senior Fellow do Núcleo América do Sul do CEBRI e Pesquisador da Universidade Harvard;

Feliciano de Sá Guimarães, Professor do Instituto de Relações Internacionais da USP.

Com a eleição de Joe Biden para a presidência dos Estados Unidos, abre-se uma nova discussão acerca de como isso afetará o Brasil, bem como a perspectiva de construção de uma nova relação entre EUA e a América do Sul. 

É perante esse quadro que o Webinar propõe seu debate, trazendo consigo nomes especializados na matéria.

Esperamos que gostem e participem!

Lucas Pessoa e Ygor Alonso são membros do Grupo de Pesquisa em Estado, Instituições e Análise Econômica do Direito (GPEIA/UFF).



quarta-feira, 11 de novembro de 2020

Democracia e degradação institucional


Caros leitores,

Muito se discute acerca do estado do ambiente democrático nos tempos que vivemos. Transcorridos 32 anos de vigência do texto constitucional, é perceptível uma corrosão cada vez maior dos pilares que sustentam aquilo que é conhecido como Estado Democrático de Direito.

Nesse artigo, discute-se diferentes eventos históricos que incorreram nessa degradação e o perigoso caminho pelo qual estamos indo, bem como as perspectivas - positivas ou não - de futuro da própria democracia brasileira.

Esperamos que gostem e compartilhem!

Lucas Pessoa e Ygor Alonso são membros do Grupo de Pesquisa em Estado, Instituições e Análise Econômica do Direito (GPEIA/UFF).

O impeachment de Dilma Rousseff abriu um caminho de degradação institucional muito mais rápido do que seria possível imaginar naquele momento. A partir desse acontecimento e, principalmente, da eleição de Jair Bolsonaro, novos elementos se acrescentam à tendência antidemocrática, tais como o ataque do Poder Judiciário e das instituições de controle do sistema político

Em 2016, alguns meses antes do impeachment da presidenta Dilma Rousseff, abri meu novo livro, intitulado Impasses da democracia no Brasil, com as seguintes palavras: “O Brasil se encontra hoje no rol das nações com democracias fortes e consolidadas. Por qualquer medida significativa proposta por teorias que medem o estado da arte da democracia, o Brasil se encontra em uma posição boa. Se tomarmos uma perspectiva histórica, por exemplo, o Brasil tem uma democracia mais forte hoje do que ele teve no período 1946-1964, já que não houve desde 1985 nenhuma tentativa dos militares de intervir na política, tal como ocorreu em 1954, 1956 e 1961. Ao mesmo tempo, se tomarmos como medida o número de transmissões de poder, o Brasil, com a posse recente da presidenta Dilma para um segundo mandato, já teve mais transmissões democráticas do poder, neste período, 1985-2015, do que em qualquer outro período. Quando adotamos a perspectiva comparada, percebemos que a democracia brasileira passou por menos percalços do que as democracias dos países vizinhos, em especial as democracias argentina e chilena. No caso argentino, diversos presidentes não conseguiram completar o seu mandato, casos de Alfonsín e De la Rua. Assim, nenhum presidente não peronista completou o seu mandato no país vizinho. Já no caso do Chile a constituição pinochetista continua vigorando e impondo um regime eleitoral que impede a sua mudança constitucional. Portanto, seja na perspectiva internista, seja na perspectiva comparada a democracia brasileira fez importantes avanços”.

Evidentemente essa é uma análise ultrapassada da democracia brasileira. O impeachment de Dilma Rousseff abriu um caminho de degradação institucional muito mais rápido do que seria possível imaginar naquele momento. A partir desse acontecimento e, principalmente, da eleição de Jair Bolsonaro, novos elementos se acrescentam à tendência antidemocrática, tais como o ataque do Poder Judiciário e das instituições de controle do sistema político. Esse ataque permitiu o afastamento, pelo STF, do presidente da Câmara dos Deputados e a tentativa de remoção do presidente do Senado, em 2016. Tais fatos organizaram-se em um crescendo a partir da suspensão de nomeações ministeriais, em especial a nomeação do ex-presidente Lula para a Casa Civil, e da suspensão do indulto natalino, ambas prerrogativas exclusivas do presidente da República. A intervenção no Rio de Janeiro e a tentativa de uso das Forças Armadas na greve dos caminhoneiros em maio de 2018 completaram a equação de violação de direitos e de adesão a uma política de segurança pública anticidadã. O auge desse estado de coisas se evidenciaria com a justificação aberta da violência por candidatos que, não por acaso, acabaria se manifestando explicitamente no atentado contra o próprio Bolsonaro e em ações de seus apoiadores quando indivíduos foram agredidos ou até mesmo assassinados, como no caso do capoeirista Moa do Katendê, esfaqueado em Salvador durante a eleição de 2018. Neste artigo tentarei mostrar, em primeiro lugar, a centralidade do impeachment no processo de degradação institucional no Brasil; em seguida demonstrarei como o Judiciário foi politizado e instrumentalizado por Sérgio Moro, para então mostrar como o bolsonarismo aposta no aprofundamento do processo de degradação institucional.

Impeachment: entendendo o processo

O impeachment da presidenta Dilma representou uma reversão de comportamentos institucionais que tiveram sua origem no início da redemocratização brasileira. A instauração da Nova República, com a retirada dos militares do exercício do poder político e a extinção de seu poder de veto sobre resultados eleitorais, inaugurou uma mudança de perspectiva em relação ao processo sucessório e à democracia no Brasil. As primeiras eleições do período da Nova República foram marcadas por uma mudança de comportamento no que tange ao reconhecimento de resultados eleitorais. Apesar da demora no processo de apuração eleitoral em 1989, todos os atores envolvidos nele esperaram o resultado antes de se posicionar sobre o segundo turno. O mesmo aconteceu nas eleições de 1994, 1998, 2002, 2006 e 2010. Assim, de alguma maneira, é possível argumentar uma mudança no comportamento das elites políticas que sugeria a transformação das eleições democráticas no único jogo na cidade. No entanto, desde o início da Nova República, elementos antidemocráticos estavam presentes em nossa institucionalidade, ainda que atuassem de modo bastante discreto: o impeachment e a possibilidade de intervenção dos militares nas questões de ordem interna.

O impeachment no Brasil não segue o padrão internacional do presidencialismo, de acordo com o qual deve ser um evento muito raro e, para tal, não deve envolver questões administrativas (maladministration) ou de oposição política. Ainda assim, entre os casos de impeachment, o do ex-presidente Collor teve fortes elementos consensuais, envolveu a ideia da remoção de um presidente mal avaliado, mas também incorporou um forte consenso entre as instituições políticas, a ponto de, na votação sobre seu afastamento na comissão especial da Câmara dos Deputados, o presidente ter tido apenas um voto, o do líder do governo. 

O impeachment da presidenta Dilma Rousseff foi baseado em alegações extremamente frágeis, porque a ideia de pedalada fiscal não constituía um diferencial de comportamento em relação a outros presidentes ou governadores.1 Além disso, temos várias evidências posteriores ao impeachment de acordos políticos com o intuito de afastar Dilma. A principal consequência do impeachment recente é um relativismo institucional a partir do qual não existem mais interesses gerais na democracia brasileira e na atuação das instituições. O fato de o processo de impeachment do ex-presidente Michel Temer não ter prosperado, a despeito das evidências de um governo completamente envolvido com a corrupção, acentuou a desconfiança dos brasileiros na democracia. Nas pesquisas que realizamos no Instituto da Democracia da UFMG (www.institutodademocracia.org) foi possível perceber uma intensa degradação  do apoio dos brasileiros à democracia ao longo de 2018, o que abriu espaço para a vitória eleitoral de Jair Bolsonaro. Assim, é possível dizer que o impeachment da presidenta Dilma foi mais do que um impeachment. Ele foi o destampar de uma panela de pressão que permitiu uma volta ao passado no comportamento das elites não democráticas no Brasil.

Condenação do ex-presidente Lula

Tal como no caso da competição política, o Brasil colocou em prática estruturas fortes de autonomia judicial entre 1988 e 2014. O Judiciário assumiu prerrogativas de independência em relação ao Executivo, mas também em relação à ampliação de direitos, com decisões-chave, como Raposa Serra do Sol e implantação de cotas no ensino superior. Ainda assim, vínhamos de um Judiciário oligárquico, tradição que não foi rompida nem mesmo com a instituição do concurso público, uma vez ele não impediu as famílias de operarem ou pela via do quinto da OAB ou pela via de relações espúrias entre juízes e escritórios de advocacia. Ainda assim, é possível apontar um saldo positivo na maneira como o Poder Judiciário foi adquirindo novas prerrogativas nesse período.

A Operação Lava Jato mudou essa equação, relativizando a estrutura de direitos de defesa no combate à corrupção. Porém, ainda mais grave, ela acabou por fornecer prerrogativas absolutas a um juiz de primeira instância que, como ficou comprovado, tinha projetos políticos e estava disposto a perseguir judicialmente um ex-presidente. Sérgio Moro, no caso do ex-presidente Lula, orientou a delação premiada, aceitou a denúncia, legalizou a posse de um apartamento por provas indiretas e alegou ter fórum para todas essas ações, apesar de o STF só ter lhe concedido foro sobre as ações ligadas à Petrobras. Isso depois de ser censurado pelo ex-ministro Teori Zavascki acerca de vazamentos de gravações que contrariam a lei brasileira sobre o assunto, chegando inclusive a gravar a defesa do ex-presidente.

Vale a pena utilizar dados comparados sobre quando um juiz é impedido de continuar presidindo um julgamento nos Estados Unidos. Ali, o fato de o juiz ter conhecimento prévio do caso ou ter atuado de forma ilegal é, em geral, suficiente para ser impedido de atuar. No julgamento do ex-presidente Lula coube ao próprio Sérgio Moro dizer por que ele continuava sendo um juiz neutro. Cito sua sentença do caso: “No entendimento deste julgador, respeitando a parcial censura havida pelo ministro Teori Zavascki, o problema nos diálogos interceptados não foi o levantamento do sigilo, mas sim o seu conteúdo, que revelava tentativas do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva de obstruir investigações e a sua intenção de, quando assumisse o cargo de ministro-chefe da Casa Civil, contra elas atuar com todo o seu poder político”. Analisemos o julgamento proferido pelo então ministro Teori nesse caso para ver se de fato o juiz interpreta a censura que recebeu de forma correta. Afirmou Zavascki no ponto 7 de sua decisão: “Ainda mais grave, procedeu a juízos de valor sobre referências e condutas de ocupantes de cargos previstos nos artigos 102 I, b e c”. Ou seja, estamos diante de um juiz que tergiversou em questões processuais, que contou com o apoio da mídia para fazê-lo e que, assim, degradou a imparcialidade do sistema de justiça no Brasil.

A mais grave dessas operações foi a que pautou no STF um caso particular de habeas corpus, o de Lula, antes de uma ação genérica sobre o tema e que determinou a prisão do ex-presidente. São igualmente graves as decisões do ministro Edson Fachin de remeter ações ao plenário, a seu bel-prazer, quando ele está em minoria na segunda turma do STF. Como resultado, coloca-se a questão da ascensão do Judiciário ao papel de força política com poder de veto sobre o sistema político e com elementos muito fortes de privilégio interna corporis. A trajetória anterior do STF de dois pesos e duas medidas e de relativização das regras do estado de direito degradou a democracia ainda antes da posse de Bolsonaro, que aprofundou o processo.

Todos esses elementos sugerem que o Judiciário brasileiro é parte de um itinerário de ascensão do poder das instituições contramajoritárias acima do sistema político. Trata-se de um detour jurídico por meio do qual os membros do Poder Judiciário têm a capacidade não apenas de se expressar para além das regras do estado de direito, como também de se associar a outros atores que o fazem abertamente. Essa postura de enfraquecimento do estado de direito foi aproveitada por Jair Bolsonaro, tornando ambos – a democracia e o estado de direito – ainda mais vulneráveis em nosso país.

Governo Bolsonaro, militares e degradação institucional

O período que teve início em 2016 envolve dois momentos diferentes. No primeiro, uma democracia praticamente consolidada abriu mão de ser uma democracia plena para se tornar um arranjo entre elites conservadoras capitaneadas pelo PMDB e pelo PSDB e associadas às forças do mercado. Degradou-se ali a democracia de forma que talvez pudesse ser revertida em 2018, mas, por causa das intervenções judiciais e militares, não houve reversão. Com a eleição de Jair Bolsonaro passamos a um segundo momento, no qual se agregou em torno do presidente um conjunto de atores com baixas convicções democráticas – se é que possuem alguma. Penso aqui no atual ministro da Justiça, ou na ministra dos Direitos Humanos, que viola direitos de uma criança de 10 anos, ou no Procurador-Geral da República, que desmonta toda a estrutura de direitos construída pela instituição. Com o capitão reformado na Presidência, a degradação deixa de ser uma consequência e passa a ser um objetivo. 

O bolsonarismo degrada as instituições de duas maneiras: em primeiro lugar, por meio de uma rede impressionante de geração de fake news. Graças a ela, consegue atacar o sistema político, o STF e até mesmo o Carnaval do Rio de Janeiro. Esses ataques reduzem a legitimidade das instituições políticas – que já era baixa desde 2014 e tornou-se baixíssima em 2018. Apenas 1% dos brasileiros confia muito em partidos políticos e um número um pouco superior no Congresso Nacional. Ao reforçar o ataque a essas instituições, o bolsonarismo cria um caldo de cultura para que seu fechamento seja defendido abertamente nas ruas, tal como vimos nos meses de abril, maio e junho de 2020. Em relação ao STF, a situação é ainda pior, porque o bolsonarismo vende a ideia de que a democracia se fortaleceria se não houvesse a atuação da corte na revisão de atos do governo. Mas o que mais preocupa no bolsonarismo é que ele não opera com um padrão de bom governo. Pelo contrário, defende a ideia anti-iluminista e antirrepublicana de que o papel da política não está na melhora do governo ou no exercício virtuoso do poder, e sim em sua utilização para a manutenção de um status quo conservador.

Ao mesmo tempo, o bolsonarismo não tem nenhum prurido em rebaixar o nível de atuação de instituições que a princípio entendemos como republicanas. Depois de arrasar as políticas de educação superior e de direitos humanos em 2019, a atenção de Bolsonaro voltou-se para o Ministério da Justiça, a Polícia Federal e o STF. Assim, na medida em que a pauta ideológica de desestruturar as políticas públicas na área de educação superior, direitos humanos e meio ambiente foi alcançada no ano passado, vimos uma nova pauta ainda mais problemática neste ano: a adaptação de instituições do sistema de justiça aos objetivos do clã Bolsonaro. Assim, o objetivo do Ministério da Justiça passou a ser vigiar a oposição, defender o presidente no STF ou tentar indicar diretores da Polícia Federal com o intuito de influenciar processos nos quais os filhos do presidente estão envolvidos. Assim, as instituições políticas cumprem dois papéis no bolsonarismo: deixar o presidente aplicar seu programa político a despeito dos pesos e contrapesos do sistema político brasileiro e ser o lugar da distorção dos objetivos do sistema de justiça. 

O bolsonarismo constitui um tipo raro de associação entre governo não virtuoso e conservadorismo. O conservadorismo no Brasil tentou historicamente se constituir em uma forma envergonhada de defesa do status quo. Desde o período abolicionista até o final da ditadura militar, essa foi a postura hegemônica: ser conservador e tentar passar uma imagem de progressista. Assim, o regime militar se importou com as críticas na área dos direitos humanos, assim como Collor demarcou reservas indígenas e dialogou com forças na área do meio ambiente. O bolsonarismo representa uma nova forma de conservadorismo, um conservadorismo ideológico e anti-institucional que rompe com os padrões normais da democracia e despreza as instituições democráticas. Ou estas colocam fim no bolsonarismo, ou ele poderá comprometer decisivamente seu funcionamento.

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quarta-feira, 4 de novembro de 2020

Banco Mundial aponta crescimento da pobreza e desigualdade no Brasil

Caros leitores,

A recessão econômica, iniciada em 2014, certamente provocou inúmeros efeitos em diferentes questões cotidianas. A notícia de hoje, no entanto, revela uma característica mais cruel: um estudo do Banco Mundial que aponta o crescimento da pobreza e da desigualdade de renda, mesmo antes da pandemia.

Nesse contexto, busca-se analisar os possíveis efeitos que o auxílio emergencial pode apresentar na reversão do quadro apresentado, pensando-se em como será a situação no futuro.

Esperamos que gostem e compartilhem!

Lucas Pessoa e Ygor Alonso são membros do Grupo de Pesquisa em Estado, Instituições e Análise Econômica do Direito (GPEIA/UFF).

Os brasileiros na faixa dos 40% mais pobres, população equivalente a 85 milhões de pessoas, começaram este ano de pandemia da covid-19 sem terem recuperado a renda que tinham antes da recessão iniciada em 2014, no final do governo Dilma Rousseff. O mesmo não ocorreu com a outra parcela da população, que no início do ano já recebia uma renda superior à do período pré-crise.

Os cálculos são de estudo do Banco Mundial realizado a partir de dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD). A parte mais pobre da população teve alívio temporário ao longo de 2020 com a renda emergencial, mas muitos voltarão à situação anterior após o fim do benefício, em dezembro.

De 2014 a 2019, a renda dos 40% mais pobres caiu, em média, 1,4% por ano. No mesmo período, a renda média dos brasileiros como um todo cresceu 0,3% ao ano. Se a evolução da renda nesse período tivesse beneficiado igualmente todas as faixas da população, haveria no começo deste ano 13 milhões de brasileiros a menos vivendo em pobreza e 9 milhões a menos na pobreza extrema. O Banco Mundial considera que quem tem uma renda per capita menor que 499 reais por mês vive na pobreza, e a pobreza extrema atinge quem tem menos de 178 reais per capita por mês.

Como consequência da recuperação desigual, houve aumento da desigualdade de renda. Medida pelo índice de Gini, ela estava em 0,525 em 2015 — a menor da história do país — e alcançou 0,550 em 2018. No ano seguinte, houve uma leve queda, para 0,547. Quando mais próximo de 1, mais desigual é a renda.

O principal motivo para a perda de renda dos 40% mais pobres nesse período foi a queda da renda do trabalho dos homens, responsáveis pela maior parte da renda na maioria dos lares brasileiros. Esse fator foi responsável por três quartos da alta da pobreza e da pobreza extrema e por três quartos da alta da desigualdade de 2014 a 2019.

"Os empregos perdidos na crise se recuperaram de forma muita lenta, e a uma velocidade ainda menor para quem está na base da pirâmide. Além disso, a renda de quem conseguiu retomar o trabalho em muitos casos não voltou ao nível anterior da crise", afirma à DW Brasil Gabriel Lara Ibarra, economista sênior do Banco Mundial especialista em pobreza no Brasil.

A distribuição desigual da recuperação, que penaliza duplamente os mais pobres, está relacionada à natureza do trabalho que essa faixa da população desempenha, em geral informal e exposto a vulnerabilidades.

"O tipo de trabalho normalmente disponível para quem está na base da distribuição são os trabalhos informais, com menos proteção, mais voláteis. É diverso dos trabalhos disponíveis para as parcelas mais ricas e mais educadas, que têm acesso a empregos formais e mais conectados à economia, comparado a quando você é um autônomo que trabalha vendendo algo na informalidade", afirma Ibarra.

Pior desempenho na América Latina

O Banco Mundial desenvolveu um quadro comparativo da evolução da pobreza extrema, da pobreza e da desigualdade entre os países da América Latina no período de 2014 a 2018, fazendo ajustes nas pesquisas nacionais de cada um deles.

Apesar de o fim do superciclo de commodities de 2011 ter afetado todos os países da região, o Brasil foi um dos poucos que viu sua pobreza e desigualdade crescerem nesse período. E, entre os que tiveram essa reversão, o Brasil lidera nos três índices.

Além do Brasil, apenas Honduras e Equador também tiveram aumento de desigualdade no período; Argentina e Equador registraram aumento da pobreza; e Argentina, Equador e Honduras tiveram alta da pobreza extrema — todos em menor grau do que o Brasil.

Esse cenário trágico é resultado, segundo Ibarra, de uma conjunção de fatores, como o nível de endividamento das famílias, a mudança excessivamente abrupta de uma política fiscal expansionista para contracionista no segundo governo Dilma, a queda geral do consumo e a fuga de divisas após o país perder o selo de bom pagador, conhecido como grau de investimento, em 2015.

O relatório também aponta outros motivos "que estavam acumulando problemas para o futuro", como baixo ganho de produtividade, custo crescente do trabalho, demanda baseada mais em consumo do que investimento e alta constante dos gastos correntes do governo, em especial na Previdência Social.

Como resultado, a crise fez o Brasil perder parte dos ganhos sociais obtidos de 2001 a 2013, quando 24,6 milhões de seus habitantes deixaram a pobreza — cerca de 50% da redução da pobreza em toda a América Latina e Caribe nesse período.

O Bolsa Família, sistema de proteção social que é, segundo Ibarra, reconhecido internacionalmente pela flexibilidade e capacidade de focalização dos recursos em quem mais precisa, não foi capaz de amortecer a crise para os mais miseráveis. De 2014 a 2017, mais de 4,6 milhões brasileiros caíram para a pobreza extrema.

Algumas pesquisas já apontaram as deficiências do Bolsa Família nessa fase, como represamento de pedidos para receber as transferências, redução das equipes que fazem a busca ativa de possíveis beneficiários e a ausência de reajustes anuais do benefício para repor a inflação.

"Durante e após a crise de 2014, não vimos a resposta [do sistema de proteção social] como houve em outros momentos, o que teve implicações para a pobreza e a desigualdade", diz o economista do Banco Mundial.

O impacto da renda emergencial

Neste ano, o impacto da pandemia na economia foi reduzido para as faixas mais pobres devido ao auxílio emergencial. O benefício de 600 reais, que chega a 1,2 mil reais para mães solteiras, começou a ser pago em abril para um período inicial de três meses. A partir de outubro, será reduzido à metade, e a última parcela será paga em dezembro.

Por ter um valor muito superior ao Bolsa Família, cujo benefício médio é de 190 reais, em alguns casos a renda emergencial superou a perda provocada pela pandemia, retirando famílias da pobreza.

"Esse programa foi tão amplo que há evidências sugerindo que ele reverteu, e não apenas mitigou, alguns dos efeitos monetários da pandemia. E não é uma surpresa que essas transferências possam ter mais que compensado o impacto para alguns grupos", afirma Ibarra.

Questionado sobre qual será o impacto do fim do auxílio emergencial na pobreza a partir do ano que vem, ele afirma que isso dependerá de eventuais reformas dos programas sociais, do desempenho da economia no último trimestre deste ano e do comportamento do mercado de trabalho.

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