Caros Seguidores,
Pode
parecer repetitivo dizer que a crise agravou as desigualdades. O que
pode é inédito é a certeza de que essa crise agravará a desigualdade
após a pandemia. Publicaremos uma notícia em duas partes a respeito
disso. Segue a parte 2.
Agradecemos à indicação do membro do GPEIA, Thiago Palassi Quintela.
Esperamos que gostem e participem!
Esperamos que gostem e participem!
Lucas Pessôa é membro do Grupo de Pesquisas Estados Instituições e Análise Econômica do Direito.
O luxo de ficar em casa e a desigualdade de gênero
Ficar em casa é mais do que nunca um luxo. Esse clichê não acabará com a crise. “Podemos ver isso nos EUA, sim, mas também em um Estado de bem-estar como a Noruega: os com menos educação e recursos são os mais duramente atingidos tanto em termos de desemprego como em rendimento. E a história da crise nos diz que são, da mesma forma, os que mais problemas têm para retornar ao mercado de trabalho após um período de desemprego”, ressalta Mamelund. “Ao afetar mais as pessoas mais pobres, que não têm economias e estão mais desprotegidas: provocará uma mobilidade social às camadas mais baixas”, completa Lustig, que pede sem rodeios um imposto específico à riqueza “dos bilionários” ligado à prevenção da onda de desigualdade que está por vir. “A recessão está tão vinculada ao aumento do desemprego e à queda de pequenos negócios, como cafés e restaurantes, que é difícil imaginar um horizonte em que os pobres saiam beneficiados em relação aos ricos”, diz Peter Lanjouw, da Universidade Livre de Amsterdã. Falando claramente: a crise empobrecerá a todos (ou quase todos: alguns, como sempre, passarão em brancas nuvens), mas não igualmente.
As dinâmicas financeiras tampouco ajudarão a acabar com a brecha. O impacto inicial nas Bolsas de Valores foi muito duro, arranhando o patrimônio dos donos de grandes fortunas − o quarto homem mais rico do mundo, Warren Buffett, já perdeu 50 bilhões de dólares (267 bilhões de reais) desde o início desta crise −, mas os mercados financeiros já começaram a recuperar (muito lentamente) parte das perdas. “Se a Grande Recessão de 2008 serve como guia, os investimentos dos ricos se recuperarão antes dos mercados de trabalho”, prevê Scheidel. No outro destino predileto dos investimentos dos mais ricos, o mercado imobiliário, parece que a mordida será grande. Mas aí a classe média que se endividou para ser proprietária também assimilará o golpe, e o efeito igualador será − se houver − discreto.
“A capacidade das pessoas de proteger sua família e de resistir à tempestade varia muito”, apontam Sabina Alkire e Ricardo Nogales, da Universidade de Oxford. “Enquanto algumas pessoas têm trabalhos formais e estáveis, relações saudáveis, casas confortáveis e uma saúde mental forte, outras só obtêm renda de fontes informais e enfrentam uma situação de vulnerabilidade e pobreza, com condições comprometidas em casa. São, particularmente, idosos e mulheres”. O gênero é, de fato, uma variável-chave na análise: a Unesco calcula que 1,5 bilhão de crianças em todo o mundo não estão indo atualmente à escola, com o consequente efeito sobre as famílias, que precisam cuidar delas no período em que deveriam estar na sala de aula. “E, dadas as normas de gênero existentes e levando em conta a distribuição histórica de tarefas domésticas, podemos dizer, sem risco de erro, que essa carga adicional está recaindo desproporcionalmente mais sobre as mulheres”, afirma Olga Shurchkov, do Wellesley College.
Essa assimetria entre mulheres e homens está sendo observada praticamente todos os âmbitos: desde o primeiro ataque do vírus, a produtividade despencou entre as mulheres pesquisadoras, enquanto crescia entre seus colegas homens. Também em termos de emprego: se na crise de 2008 as perdas de postos de trabalho ocorreram em setores muito masculinizados (construção, fábricas), desta vez a pior parte recai sobre os serviços, onde as mulheres têm um peso maior. “A conclusão é clara: a desigualdade de gênero aumentou e continuará aumentando enquanto durar esta recessão”, assinala Shurchkov.
Ficar em casa é mais do que nunca um luxo. Esse clichê não acabará com a crise. “Podemos ver isso nos EUA, sim, mas também em um Estado de bem-estar como a Noruega: os com menos educação e recursos são os mais duramente atingidos tanto em termos de desemprego como em rendimento. E a história da crise nos diz que são, da mesma forma, os que mais problemas têm para retornar ao mercado de trabalho após um período de desemprego”, ressalta Mamelund. “Ao afetar mais as pessoas mais pobres, que não têm economias e estão mais desprotegidas: provocará uma mobilidade social às camadas mais baixas”, completa Lustig, que pede sem rodeios um imposto específico à riqueza “dos bilionários” ligado à prevenção da onda de desigualdade que está por vir. “A recessão está tão vinculada ao aumento do desemprego e à queda de pequenos negócios, como cafés e restaurantes, que é difícil imaginar um horizonte em que os pobres saiam beneficiados em relação aos ricos”, diz Peter Lanjouw, da Universidade Livre de Amsterdã. Falando claramente: a crise empobrecerá a todos (ou quase todos: alguns, como sempre, passarão em brancas nuvens), mas não igualmente.
As dinâmicas financeiras tampouco ajudarão a acabar com a brecha. O impacto inicial nas Bolsas de Valores foi muito duro, arranhando o patrimônio dos donos de grandes fortunas − o quarto homem mais rico do mundo, Warren Buffett, já perdeu 50 bilhões de dólares (267 bilhões de reais) desde o início desta crise −, mas os mercados financeiros já começaram a recuperar (muito lentamente) parte das perdas. “Se a Grande Recessão de 2008 serve como guia, os investimentos dos ricos se recuperarão antes dos mercados de trabalho”, prevê Scheidel. No outro destino predileto dos investimentos dos mais ricos, o mercado imobiliário, parece que a mordida será grande. Mas aí a classe média que se endividou para ser proprietária também assimilará o golpe, e o efeito igualador será − se houver − discreto.
“A capacidade das pessoas de proteger sua família e de resistir à tempestade varia muito”, apontam Sabina Alkire e Ricardo Nogales, da Universidade de Oxford. “Enquanto algumas pessoas têm trabalhos formais e estáveis, relações saudáveis, casas confortáveis e uma saúde mental forte, outras só obtêm renda de fontes informais e enfrentam uma situação de vulnerabilidade e pobreza, com condições comprometidas em casa. São, particularmente, idosos e mulheres”. O gênero é, de fato, uma variável-chave na análise: a Unesco calcula que 1,5 bilhão de crianças em todo o mundo não estão indo atualmente à escola, com o consequente efeito sobre as famílias, que precisam cuidar delas no período em que deveriam estar na sala de aula. “E, dadas as normas de gênero existentes e levando em conta a distribuição histórica de tarefas domésticas, podemos dizer, sem risco de erro, que essa carga adicional está recaindo desproporcionalmente mais sobre as mulheres”, afirma Olga Shurchkov, do Wellesley College.
Essa assimetria entre mulheres e homens está sendo observada praticamente todos os âmbitos: desde o primeiro ataque do vírus, a produtividade despencou entre as mulheres pesquisadoras, enquanto crescia entre seus colegas homens. Também em termos de emprego: se na crise de 2008 as perdas de postos de trabalho ocorreram em setores muito masculinizados (construção, fábricas), desta vez a pior parte recai sobre os serviços, onde as mulheres têm um peso maior. “A conclusão é clara: a desigualdade de gênero aumentou e continuará aumentando enquanto durar esta recessão”, assinala Shurchkov.
A importância das políticas públicas e a pressão política
O ponto de partida é, por si só, preocupante. Apesar do declínio das classes médias ocidentais e do fato de que as altas não pararam de aumentar sua fatia do bolo, a melhora de seus pares emergentes equilibrou a foto global da desigualdade. Dentro dos países, o panorama é outro. Desde os anos sessenta, quando Billy Wilder fazia sucesso no cinema, a concentração de renda cresceu muito − principalmente nos EUA, mas também no Reino Unido, na Alemanha, na Itália e na Espanha. Paralelamente, a desigualdade foi ganhando espaço no debate público: a crise financeira, que continuou ampliando a brecha, transformou-a em um tema recorrente de discussão, deixando claro que a preocupação vai muito além da justiça social e que atua, também, como fator inibidor do crescimento. Além da questão ética, ela é, em suma, um entrave na roda da economia.
As políticas públicas, geralmente deslocadas para o fundo de um debate social constantemente marcado pela guerra cultural e pela polarização, emergem como a chave do cofre no edifício social que resulte desta crise. Os bem-vindos mecanismos de proteção adotados até agora − principalmente na Europa, com vários Estados assumindo parte dos salários, esquemas de renda mínima e ajudas específicas para os grupos vulneráveis: uma socialização de perdas no melhor dos sentidos − não parecem ser suficientes. É o que mostram as 100.000 pessoas que solicitaram ajuda para alimentação só em Madri e os temores de Stiglitz do outro lado do Atlântico. “Nos EUA, uma parte desproporcional dos três trilhões de dólares [16 trilhões de reais] injetados na economia foi parar nas mãos dos que mais têm, entre eles grandes empresas. Os custos da crise estão recaindo, principalmente, sobre os pobres, e o dinheiro não os está ajudando, o que amplia as desigualdades”, enfatiza o Nobel.
Nos países emergentes, o abalo da crise econômica será igualmente duro. E isso, segundo Lanjouw, da Universidade Livre de Amsterdã, será sentido na desigualdade global, uma brecha que tinha diminuído com a globalização e agora corre o risco de seguir o caminho contrário. “O processo de convergência entre países pobres e ricos provavelmente ficará mais lento ou, diretamente, será revertido”, observa o acadêmico holandês, que dedicou boa parte de sua vida a questões de economia do desenvolvimento.
Diante os males do hoje − pobreza, desigualdade −, impõe-se a perspectiva e a visão do amanhã. Em um horizonte um pouco mais longo, poucos duvidam que a covid será mais do que um abalo econômico e sanitário: sacudirá também o campo das ideias. O que acontecerá no futuro, escreveu recentemente nestas páginas a filósofa Adela Cortina, “dependerá em grande parte de como vamos exercer nossa liberdade, se faremos isso a partir de um ‘nós’ inclusivo ou de uma fragmentação de indivíduos”. Isso é ainda mais válido para o plano puramente econômico.
O debate público sobre desigualdade, prevê Lanjouw, mudará para melhor: o foco será mais concentrado naqueles que estão pior. “Pode propiciar uma mudança duradoura na orientação ideológica e nas políticas públicas”, opina, na mesma linha, Samuel Bowles, do Santa Fé Institute. “Como na Grande Crise, a pandemia é um golpe para os mercados não regulados e os Estados pequenos [em termos de gastos públicos] sem uma mínima rede de proteção econômica para os trabalhadores. Se a covid-19 é capaz de demonstrar os riscos mortais das políticas econômicas baseadas somente no livre mercado e da ideologia individualista, também pode propiciar um futuro mais igualitário.” A crise do coronavírus, conclui Scheidel, tem o “potencial” de aumentar a pressão política em favor de uma agenda mais progressista. Principalmente se se prolongar no tempo e nos níveis de pobreza e descontentamento, “podendo levar a nacionalizações, a programas de renda básica e a uma progressividade maior na fiscalização da riqueza. Isso, sim, poderia reduzir a atual concentração do ingresso e o patrimônio”. O golpe inicial pode ser revertido a longo prazo. É necessária apenas uma mudança de mentalidade. Profunda.
O ponto de partida é, por si só, preocupante. Apesar do declínio das classes médias ocidentais e do fato de que as altas não pararam de aumentar sua fatia do bolo, a melhora de seus pares emergentes equilibrou a foto global da desigualdade. Dentro dos países, o panorama é outro. Desde os anos sessenta, quando Billy Wilder fazia sucesso no cinema, a concentração de renda cresceu muito − principalmente nos EUA, mas também no Reino Unido, na Alemanha, na Itália e na Espanha. Paralelamente, a desigualdade foi ganhando espaço no debate público: a crise financeira, que continuou ampliando a brecha, transformou-a em um tema recorrente de discussão, deixando claro que a preocupação vai muito além da justiça social e que atua, também, como fator inibidor do crescimento. Além da questão ética, ela é, em suma, um entrave na roda da economia.
As políticas públicas, geralmente deslocadas para o fundo de um debate social constantemente marcado pela guerra cultural e pela polarização, emergem como a chave do cofre no edifício social que resulte desta crise. Os bem-vindos mecanismos de proteção adotados até agora − principalmente na Europa, com vários Estados assumindo parte dos salários, esquemas de renda mínima e ajudas específicas para os grupos vulneráveis: uma socialização de perdas no melhor dos sentidos − não parecem ser suficientes. É o que mostram as 100.000 pessoas que solicitaram ajuda para alimentação só em Madri e os temores de Stiglitz do outro lado do Atlântico. “Nos EUA, uma parte desproporcional dos três trilhões de dólares [16 trilhões de reais] injetados na economia foi parar nas mãos dos que mais têm, entre eles grandes empresas. Os custos da crise estão recaindo, principalmente, sobre os pobres, e o dinheiro não os está ajudando, o que amplia as desigualdades”, enfatiza o Nobel.
Nos países emergentes, o abalo da crise econômica será igualmente duro. E isso, segundo Lanjouw, da Universidade Livre de Amsterdã, será sentido na desigualdade global, uma brecha que tinha diminuído com a globalização e agora corre o risco de seguir o caminho contrário. “O processo de convergência entre países pobres e ricos provavelmente ficará mais lento ou, diretamente, será revertido”, observa o acadêmico holandês, que dedicou boa parte de sua vida a questões de economia do desenvolvimento.
Diante os males do hoje − pobreza, desigualdade −, impõe-se a perspectiva e a visão do amanhã. Em um horizonte um pouco mais longo, poucos duvidam que a covid será mais do que um abalo econômico e sanitário: sacudirá também o campo das ideias. O que acontecerá no futuro, escreveu recentemente nestas páginas a filósofa Adela Cortina, “dependerá em grande parte de como vamos exercer nossa liberdade, se faremos isso a partir de um ‘nós’ inclusivo ou de uma fragmentação de indivíduos”. Isso é ainda mais válido para o plano puramente econômico.
O debate público sobre desigualdade, prevê Lanjouw, mudará para melhor: o foco será mais concentrado naqueles que estão pior. “Pode propiciar uma mudança duradoura na orientação ideológica e nas políticas públicas”, opina, na mesma linha, Samuel Bowles, do Santa Fé Institute. “Como na Grande Crise, a pandemia é um golpe para os mercados não regulados e os Estados pequenos [em termos de gastos públicos] sem uma mínima rede de proteção econômica para os trabalhadores. Se a covid-19 é capaz de demonstrar os riscos mortais das políticas econômicas baseadas somente no livre mercado e da ideologia individualista, também pode propiciar um futuro mais igualitário.” A crise do coronavírus, conclui Scheidel, tem o “potencial” de aumentar a pressão política em favor de uma agenda mais progressista. Principalmente se se prolongar no tempo e nos níveis de pobreza e descontentamento, “podendo levar a nacionalizações, a programas de renda básica e a uma progressividade maior na fiscalização da riqueza. Isso, sim, poderia reduzir a atual concentração do ingresso e o patrimônio”. O golpe inicial pode ser revertido a longo prazo. É necessária apenas uma mudança de mentalidade. Profunda.