Muitas mudanças tem ocorrido nas relações de trabalho atualmente. A chamada pejotização é um reflexo desse novo cenário gerando diversas consequências negativas (algumas delas ilegais) para quem precisa se submeter a essa condição. Sobre isso tratará a notícia de hoje.
Esperamos que gostem e participem!
Lucas Pessôa é membro do Grupo de Pesquisa "Estado, Instituições e Análise Econômica do Direito" - GPEIA
A pejotização “inova” nas relações laborais, ao estabelecer uma via contratual híbrida, dotada de aspectos jurídicos relativos a empregados, terceirizados, autônomos e empreendedores em um único sujeito: o trabalhador-empresa. Assim, a terceirização, que seria de processos, encontra uma controversa brecha que permite sua operacionalização direta sobre o trabalhador, estabelecendo a “terceirização individual”, elemento até então estranho às relações trabalhistas.
Como se não bastasse o avanço da terceirização, avolumam-se casos de pejotização, uma forma controversa de “terceirização individual” como mecanismo de composição da força de trabalho.
A terceirização é uma política organizacional convencionalmente utilizada nas relações de trabalho há muito tempo. Ferramenta estratégica da gestão empresarial ou mais uma articulação de precarização do trabalho social são alguns possíveis caminhos que permitem eixos analíticos sobre o tema, embora não sejam, necessariamente, abordagens e perspectivas mutuamente excludentes entre si.
Do ponto de vista jurídico, o referido formato triangulador das relações contratuais estabelecido entre tomadora de serviços, prestadora e trabalhador manteve-se por longo tempo alheio a enquadramentos precisos a respeito de diversos aspectos, permitindo interpretações legais distintas sobre a sua razoabilidade e operacionalização. Sua prática vinha sendo arbitrada exclusivamente a partir de entendimentos difusos que emanavam da breve redação do Enunciado 331 do Tribunal Superior do Trabalho, uma das polêmicas manifestações de judicialização na esfera do Trabalho. Com o desmonte (também tratado como reforma) trabalhista vigente desde novembro de 2017, a terceirização passou a ser melhor tipificada, favorecendo seu esclarecimento, embora ainda constituída de remanescentes ambiguidades no bojo de sua instrumentalização.
Um ponto nodal nas questões sanadas refere-se à sua culpabilidade em casos de litígios trabalhistas. A responsabilização que antes vinha sendo entendida como solidária (quando contratada e contratante respondem concomitantemente às demandas judiciais do trabalhador) foi sacramentada como subsidiária, passando a ter seu atendimento a priori exclusivamente pela contratada (prestadora de serviços). Assim, a empresa terceirizada passa a ser, de fato e de direito, a responsável direta pelo atendimento às garantias do trabalhador. Somente em casos de impossibilidade de atuação dessa (como em casos de falência, por exemplo) é que a real utilizadora da força de trabalho (contratante da terceirização) é acionada. Essa alteração visivelmente interessante ao grande capital rentista, utilitário de grande volume de força de trabalho subcontratado, na prática, distanciou a responsabilidade da tomadora de serviços (geralmente as maiores corporações), deixando o trabalhador ainda mais desprotegido em casos de reclamações trabalhistas por conta do descumprimento por parte de sua firma diretamente contratante (muitas vezes uma empresa de menor porte).
Precarização
Ademais, a tal reforma, dentre outras medidas precarizantes, universalizou o campo de abrangência das atividades terceirizáveis pelas empresas, o que vinha sendo permitido somente nas chamadas atividades meio, tomou amplitude para todos os setores e processos operacionais de qualquer empresa, inclusive nas suas atividades-fim.
Sob a perspectiva gerencial, a terceirização serve, convenientemente, aos interesses das empresas. Sob o pretexto de concentração do foco no seu core business, por exemplo, as firmas há muito tempo lançam mão desse tipo de relação de trabalho e repassam partes significativas de seus processos a terceiros, tais como serviços de entregas, segurança, limpeza entre tantos outros tipicamente terceirizáveis. Essa lista de ganhos organizacionais se estende a redução dos níveis hierárquicos, possibilidade de ganhos de flexibilidade produtiva e gerencial e aumento da especialização do serviço prestado, entre tantos outros.
No entanto, há de se ressaltar que, a despeito do que se reproduz no senso comum através da chamada “terceirização de pessoal”, a princípio, juridicamente não se terceirizam pessoas, mas processos. De modo que a terceirização sempre foi, e ainda se preserva, mesmo após diversas transformações sociais (sobretudo trabalhistas e previdenciárias), como um mecanismo de atendimento a determinadas necessidades produtivas de uma empresa contratante, restrita a processos de trabalho. Assim, pode parecer estranho se observado pelo que é propagado através do uso recorrente, não cabe a “terceirização de pessoas”, de forma direta e pessoal, mas a “terceirização de processos”, embora, efetivamente, pessoas estarão alocadas na execução desses processos produtivos.
A questão nesse caso é que a terceirização não pode ensejar na pessoalidade da relação de trabalho, o que permitiria uma interpretação jurídica muito provável de vínculo empregatício entre a empresa contratante da terceirização e daquele trabalhador específico, uma vez que o Art.3º da Consolidação das Leis Trabalhistas regula que a existência de atributos que configurem pessoalidade, habitualidade, subordinação e onerosidade na relação caracterizará a vinculação empregatícia direta entre a tomadora de serviço e o trabalhador. E a “terceirização de pessoas” configura a tal pessoalidade aludida na referida regulamentação trabalhista.
Dessa forma, regra geral e oficialmente, a contratante de serviços terceirizados não pode determinar que a sua força de trabalho seja a dona Maria de Souza ou o seu João dos Santos, que muitas vezes, na prática, vem sendo (re)admitidos a cada sucessão de empresas prestadoras de serviços. Desse modo, espera-se que contrato de terceirização se limite às exigências do serviço, o que e como deve ser feito, sem a determinação de quem será o indivíduo obreiro que o realizará. Seja por (re)admissão a cada sucessão de empresa prestadora de serviços ou mesmo por preferência de determinados profissionais encontrados no mercado de trabalho, por exemplo.
Pejotização
Dito isso, qual é a questão que aqui se propõe?
A terceirização é (ou deveria ser) um acordo estabelecido de “empresa para empresa” e não um contrato direto entre empresa contratante de serviço e o trabalhador (pessoa física).
Nos últimos anos, contudo, e é aí que está o imbróglio contratual, vem-se assistindo um substancial avanço dos contratos regulados entre “pessoas jurídicas”, onde, de um lado a empresa contratante admite os serviços de um único trabalhador, não através da assinatura de sua carteira de trabalho, mas através da formulação de um contrato entre empresas: a grande empresa tomadora de serviços e a prestadora, a micro unidade produtiva, ou melhor, a empresa individual, constituída de um único indivíduo: patrão e empregado de si mesmo, empreendedor sem empreendimento.
Esse instituto da prestação de serviços via empresa individual (geralmente via Microempreendedor Individual – MEI) vem sendo consagrado como pejotização, por propor/impelir a abertura de uma Pessoa Jurídica (PJ), a fim de descaracterizar o vínculo empregatício, a partir dessa contratação de serviços de forma interorganizacional (de empresa para empresa).
A pejotização, nesse sentido, “inova” nas relações laborais, ao estabelecer uma via contratual híbrida, dotada de aspectos jurídicos relativos a empregados, terceirizados, autônomos e empreendedores em um único sujeito: o trabalhador-empresa. Assim, a terceirização, que seria de processos, encontra uma controversa brecha que permite sua operacionalização direta sobre o trabalhador, estabelecendo a “terceirização individual”, elemento até então estranho às relações trabalhistas.
Terceirização e pejotização não são absolutamente as mesmas práticas, embora muito correlatas, e, afim de ressaltar as suas principais distinções do ponto de vista das relações contratuais, o quadro a seguir estabelece uma comparação entre essas formulações contratuais.
Ao cotejar os aspectos pertinentes a cada um dos regimes contratuais é possível inferir que a pejotização, através da empresa individual, acumula elementos inerentes à subcontratação (terceirização) por se constituir como um contrato “de empresa para empresa” (acordo entre empresas), numa suposta situação de paridade das condições negociais. Assim como mantém fortes indícios de um trabalho autônomo, “por conta própria”, uma vez que dispensa agentes intermediários nessa situação que, efetivamente, se dá entre empresa e indivíduo. Enquanto na entidade da terceirização, exige-se a intermediação de uma empresa (o terceiro agente na relação contratual), na pejotização, essa empresa prestadora é o próprio trabalhador.
Como dito, embora juridicamente a terceirização seja um estatuto interorganizacional, sendo vedada a sua prática direta entre a empresa e o trabalhador (pessoa física), a pejotização vai além desse mecanismo de subcontratação, pois sua prática, com efeito, é a terceirização de um agente só, tornando o vínculo exposto a uma negociação direta entre, de um lado, uma empresa com seu aparato institucional-corporativo (poder capital, última palavra na decisão de pejotizar ou não os vínculos, poder de barganha contratual, detenção de forte arcabouço jurídico, ditames do ritmo produtivo e, por consequência, da descartabilidade da vinculação, entre outros) e uma outra parte, o trabalhador, fragmentado de sua representação coletiva e de sua força mobilizadora, suscetível à situação na qual se encontra.
De forma conclusiva, no âmbito deste debate, a pejotização é a revelação sintomática de um novo momento do trabalho social. Ela materializa as transformações das relações contratuais em um estado híbrido das formulações de composição da força de trabalho pelo setor produtivo, evidenciando novos rumos negociais e apontando para uma ética do trabalho emergente, não mais pautada na conquista e manutenção da “carteira assinada”, símbolo das conquistas e garantias individuais e coletivas, mas fundamentada pelas transformações sociais substanciadas pela redução quantitativa e qualitativa dos postos de trabalho assalariados, pelo avanço dos atributos da informalidade sobre os ambientes até então tidos como formais e pelo engajamento da sociedade em um novo ditame de ter que “ser empreendedor”.
Reforme-se e empreenda, sem CTPS, mas com CNPJ. E salve-se quem puder!
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