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domingo, 18 de setembro de 2016

O impeachment da presidenta Dilma Rousseff configura golpe de Estado?



Olá alunos, 

A postagem de hoje busca responder à questão tão pertinente à atual conjuntura política do nosso país: Afinal, o impeachment de Dilma Rousseff configura golpe de Estado? Para isso, o texto busca resgatar o pensamento de alguns autores como Gabriel Garcia Marques, o qual sintetizou com duas expressões a histórica legitimação da violação dos direitos das classes subalternas por parte dos grupos dominantes da América Latina: delírio hermenêutico e ilusionistas do direito.

Esperamos que gostem e participem.
Palloma Borges, monitora da disciplina “Economia Política e Direito” da Universidade Federal Fluminense. 

A crise política pela qual o país atravessa traz a necessidade de se procurar responder à seguinte questão: o impeachment da presidenta Dilma Rousseff configura golpe de Estado?
A busca pela resposta jurídica a tal questionamento é iniciada, no presente texto, não com citações doutrinárias ou precedentes jurisprudenciais. Inicia-se com o realismo fantástico de Gabriel Garcia Marques, no seguinte trecho de Cem anos de solidão:
“Cansados daquele delírio hermenêutico, os trabalhadores repudiaram as autoridades de Macondo e subiram com suas queixas aos tribunais supremos. Foi ali onde os ilusionistas do direito demostraram que as reclamações careciam de toda validade [...]”.
Como se vê, ao narrar a forma pela qual advogados de multinacional na imaginária Macondo livram a empresa da acusação de uso de trabalho escravo, Gabo sintetizou com duas expressões a histórica legitimação da violação dos direitos das classes subalternas por parte dos grupos dominantes da América Latina: delírio hermenêutico e ilusionistas do direito.
O que se quer lembrar, com essa citação, é que as demandas sociais reconhecidas pelo Estado sob a forma de direitos são, historicamente, objetos de uma leitura cínica, por parte das elites latino-americanas. Em sendo assim, logra-se inverter as finalidades dos aludidos direitos em favor de projetos políticos ou econômicos dominantes.
Eis uma lembrança imprescindível em um país, como o Brasil, que sofreu uma ditadura civil-militar por mais de vinte anos a partir de um golpe de Estado caracterizado por um verniz jurídico: foi assim que, para legitimar a derrubada de João Goulart, o senador Auro de Moura Andrade declarou vaga a presidência da república no dia 2 de abril de 1964, embora Jango ainda estivesse em território nacional. No mesmo sentido, dias depois, quando o Marechal Castello Branco já ocupava a presidência da República, o então presidente do STF Alvaro Moutinho Ribeiro da Costa declarou que as Forças Armadas haviam restabelecido a democracia.
Tais observações, por si sós, derrubam a tese corrente no sentido de que o processo de impeachment contra a presidenta Dilma Rousseff, ao tramitar em uma casa legislativa (Senado Federal) após autorização de outra casa legislativa (Câmara dos Deputados), estando sob a presidência de membro do Judiciário (o presidente do STF), marcaria a legalidade de todos os atos praticados, pelo Legislativo, contra o voto popular. A História mostra que tais circunstâncias são insuficientes para caracterizar a legitimidade democrática de tudo que se tem passado.
Uma leitura cínica dos direitos

Dizia Tom Jobim que o Brasil não é para principiantes. Há que se complementar: o Brasil não é para ingênuos ou para inocentes, porque a ingenuidade e a inocência, que caracterizam o principiante, ao final, permitem a leitura cínica dos direitos.
Por isso, algumas observações a mais devem ser realizadas.
Necessário, então, prosseguir, citando, de pronto, a mais cínica tese “jurídica” que defende a legalidade do impeachment: “a medida está na Constituição”, afirmam seus defensores. De fato, está na Constituição, assim como estava o decreto de vacância da presidência da República realizado pelo senador Auro de Moura Andrade em 1964.
Somente o principiante não sabe distinguir o que está previsto em tese, como medida excepcional, do que deve ser aplicado no caso concreto como produto da leitura do texto normativo.
Essa argumentação poderia até deixar de ser inocente, caso o impeachment fosse um instituto meramente político. Mas não é. E no direito brasileiro, nunca foi assim considerado. Pedro Lessa, jurista do início do século passado e ministro do Supremo Tribunal Federal, já defendia, em seus votos, o caráter misto do instituto (jurídico e político), a exigir, portanto, a observância de regras previstas do direito em vigor.
No âmbito dessas regras, está a exigência do crime de responsabilidade. Exige-se a prática de um crime – isto é, fato definido pelo direito como crime –, o que, desde o Iluminismo, impõe que o Estado deixe claro à toda sociedade que uma determinada conduta será tratada como uma conduta criminosa.
Ora, desde quando se sabe que manobra orçamentária praticada por chefe de Executivo configura crime? Não se sabe, até porque se trata de prática corriqueira entre chefes de Executivo. Nunca foi crime. Passou a ser crime para uma única pessoa, valendo unicamente para ela. Tal como ocorria na inquisição pré-iluminista.
Com essas observações, não se está a esquecer a expressão “responsabilidade” que qualifica o crime apto ao impeachment. Responsabilidade está a indicar que o julgamento será por senadores e não por juízes, que, portanto, não estão adstritos às mesmas regras de julgamento que um membro do Judiciário. Isso explica porque o presidente Collor foi condenado no Senado por práticas bem conhecidas como criminosas, mas absolvido pelo Judiciário.
Desvio de finalidade

Há, ainda, outra circunstância a ser esclarecida. A interpretação do direito, para não ser uma interpretação principiante, a permitir delírios hermenêuticos, não pode desconsiderar todos os fatos que antecederam um caso específico inserido à leitura da norma jurídica.
É sob essa circunstância que o instituto do desvio de finalidade tem de ser aplicado. Trata-se do uso de um ato para satisfazer finalidade alheia a este mesmo ato (Celso Antônio Bandeira de Mello).
Ora, recorda-se que a derrubada da presidente já era cogitada antes mesmo das eleições. O senador José Aníbal chegou a citar, em seu twitter, a famosa frase de Carlos Lacerda no sentido de que Getúlio Vargas não governaria caso vencesse as eleições; teve-se, ainda, o pedido de auditoria das urnas eletrônicas; recebimento de denúncia do impeachment como vingança à ausência de apoio do partido da presidenta da República em processo que tramitava no Conselho de Ética contra o então presidente da Câmara dos Deputados; pressão pela renúncia fomentada por divulgação de gravações clandestinas; sucessivas proposituras de ações populares para se impedir a posse de ministros, dentre outras circunstâncias.
Fica claro que a culpada já existia antes mesmo das eleições. O que faltava era o pretexto jurídico.
Golpe de Estado

O direito pouco trabalha com a noção de golpe de Estado. Está na hora de um tratamento sério a ser feito sobre o tema.
Cita-se, nesse sentido, Noberto Bobbio, que trabalha muito bem no diálogo entre a ciência política e o direito. Em seu Dicionário de Política, Bobbio caracteriza o golpe de Estado a partir dos seguintes elementos, não necessariamente cumulativos: 1) ato efetuado por órgãos do Estado (em sua época, na maioria das vezes, pelas forças armadas, mas reconhece que outros componentes do aparelho estatal podem realizar a ruptura); 2) mudança da liderança política; 3) possibilidade de ser acompanhado por mobilização social ou política; 4) reforço da máquina burocrática e policial do Estado; 5) eliminação ou dissolução dos partidos políticos.
Tem-se, no Brasil, uma derrubada de uma presidenta da República eleita, levada a cabo por agentes do próprio Estado, especialmente o Parlamento.
Tal derrubada, por óbvio, objetiva a mudança da principal liderança política do país, que, em um presidencialismo, dá-se na pessoa do presidente da república. Está claro que a mudança de liderança objetiva a aplicação de reformas econômicas que jamais um governo dependente de eleições democráticas teria a coragem de realizar.
A derrubada da presidenta democraticamente eleita foi, ainda, antecedida de intensa mobilização dos setores mais conservadores da sociedade, que, durante os anos de 2015 e 2016, tomaram conta das principais avenidas do país.
Tem-se, ainda, um reforço da máquina burocrática e policial do Estado. Amolda-se aqui o discurso do endurecimento penal, seja por projetos que contam com o apoio dos militantes pró-impeachment (a redução da maioridade penal é um exemplo), seja nos discursos dos agentes governamentais (lembra-se da recente fala do ministro da Justiça de que o Brasil precisa mais de armas do que de pesquisa).
Por fim, não há, é verdade, eliminação ou supressão de partidos políticos, ao menos por ora, o que não elide a tese do golpe, já que, como se viu, os requisitos acima elencados não são cumulativos. De toda forma, já tramita no Tribunal Superior Eleitoral representação contra o partido da presidenta Dilma Rousseff,que pode resultar na cassação do respectivo registro.   
Parece que o delírio hermenêutico foi longe demais, alcançando agora o requisito mínimo de uma democracia representativa, o voto popular. Não há dúvida de que, no futuro, os manuais de direito chamarão toda essa manobra de troca de presidentes da república de golpe de Estado.

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