Olá alunos,
A notícia de hoje mostra que com o afastamento definitivo de Dilma Rousseff e após ter se livrado do termo "interino", o presidente Michel Temer pretende tirar do papel os planos de fazer várias viagens internacionais até o fim de seu mandato.
Esperamos que gostem e participem.
Palloma Borges, monitora da disciplina "Economia Política e Direito" da Universidade Federal Fluminense.
Ele partiu já nesta quarta-feira rumo à China e deve ir a Nova York e Buenos Aires até o início de outubro. Segundo o Palácio do Planalto, também há visitas previstas à Índia, ao Japão, ao Paraguai e à Colômbia nos próximos meses.
Em seu primeiro discurso após ser empossado como presidente, Temer afirmou que as viagens têm o objetivo de "trazer recursos" para o Brasil e "revelar ao mundo que nós temos estabilidade política e segurança jurídica".
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"Quero que divulguem isso para que não digam 'foi à China passear'. Faremos quatro discursos em quatro reuniões do G20", afirmou.
Em entrevista ao jornal ValorEconômico em agosto, Temer disse também que buscaria atrair investimentos para o Brasil e acelerar a recuperação econômica do país. O governo se prepara para privatizar uma série de estradas, portos e aeroportos nos próximos meses e quer contar com investidores estrangeiros nos leilões.
"Eu fiz viagens quando era vice-presidente e via que todo mundo queria aplicar no Brasil", ele disse na entrevista. "Eu vou voltar a esses lugares e incentivar."
MELHORAR IMAGEM
Analistas ouvidos pela BBC Brasil afirmam que a estratégia de Temer não tem apenas fins econômicos.
Professora de Relações Internacionais da Universidade de Brasília, Norma Breda dos Santos diz que, com as visitas, ele adotará uma postura comum entre líderes recém-eleitos - muitos dos quais fazem várias viagens antes mesmo de tomar posse - e tentará melhorar sua imagem em círculos internacionais.
Ela lembra que vários jornais estrangeiros - entre os quais o americano The New York Timese o britânico The Guardian - publicaram editoriais ou artigos questionando a legalidade do impeachment de Dilma Rousseff.
"É compreensível que Temer tenha a preocupação de ganhar alguma simpatia e reconhecimento como presidente definitivo", afirma a professora.
O processo que destituiu Dilma vem provocando reações variadas mundo afora. Grande parte dos países - entre os quais nações europeias, os EUA e vizinhos como Colômbia e Peru - adotaram um tom neutro e evitaram comentar o tema.
Entre os críticos do processo, estão líderes de esquerda - como o venezuelano Nicolás Maduro e o equatoriano Rafael Correa -, os secretários-gerais da Organização dos Estados Americanos (OEA) e da Unasul, sindicatos e grupos de parlamentares de alguns países.
Já o governo da Argentina, investidores e empresários estrangeiros com negócios no Brasil têm se mostrado favoráveis à mudança no governo.
Por enquanto, a maioria das viagens planejadas pela equipe de Temer nos próximos meses será para cúpulas internacionais, eventos em que líderes dos países-membros são convidados automaticamente.
Na China, ele participará de um encontro do G20, grupo formado pelas 20 maiores economias globais.
Em Nova York, em 20 de setembro, falará na abertura da reunião de chefes de Estado da Assembleia Geral da ONU (desde 1947, cabe ao Brasil o discurso inaugural do evento) e se encontrará com investidores.
Em 15 e 16 de outubro, comparecerá a uma reunião dos Brics (bloco formado por Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul) na Índia e, no fim do mês, participará da Cúpula Ibero-Americana, na Colômbia. Este deverá ser o primeiro teste regional de Temer, quando poderá ser confrontado por líderes vizinhos críticos ao impeachment.
Filho de libaneses, Temer também disse querer visitar países árabes em seu giro internacional.
FORTALECER POSIÇÃO INTERNA
Para Marcos Guedes, professor de relações internacionais e ciência política da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Temer também buscará reforçar sua posição interna por meio das viagens.
"Ele tentará usar a presença dele junto a líderes internacionais para ganhar crédito junto à população brasileira", diz.
Mas o professor afirma ter dúvidas sobre a efetividade da estratégia, argumentando que muitos brasileiros ficaram "traumatizados com o processo de impeachment e que, historicamente, Temer sempre teve baixa aceitação popular".
Blog associado ao Grupo de Pesquisa "Estado, Instituições e Análise Econômica do Direito" - GPEIA - cadastrado junto ao Diretório Grupos de Pesquisa do CNPq desde 2012.
quarta-feira, 28 de setembro de 2016
segunda-feira, 26 de setembro de 2016
Crônica em meio à grande crise global
Olá
alunos,
A postagem
de hoje mostra que as saídas para que se evite um colapso civilizatório são
evidentes, entretanto nunca estiveram tão bloqueadas. Com isso, a questão
crucial é: será que teremos tempo para chegar a um plano B?
Esperamos que
gostem e participem.
Palloma
Borges, monitora da disciplina “Economia Política e Direito” da Universidade Federal
Fluminense.
Difícil deixar de pensar que estamos vivendo num
circo gigante. Quando sentamos no sofá depois de um dia bizarro de trabalho e
horas de transporte, as novelas surreais na TV nos dão uma visão geral do jogo global:
tantas bombas sobre a Síria, mais refugiados nas fronteiras, os problemas das
grandes finanças, os últimos gols de Neymar. Ah sim, e quem, depois de Hungria,
Grécia, Polônia e Reino Unido, está ameaçando deixar a União Europeia em nome
de ideais nacionais superiores.
É um jogo e tanto. Relatórios do Crédit Suisse e
da Oxfam mostram a grande divisão entre os donos do jogo e os espectadores: 62
bilionários têm mais riqueza do que os 50% mais pobres da população mundial.
Eles produziram tudo isso?
Evidentemente, tudo depende de que papel você
desempenha no jogo. Em São Paulo, os muito ricos que habitam o condomínio de
Alphaville estão murados em segurança, enquanto os pobres que vivem na
vizinhança se autodenominam Alphavella. Alguém precisa cortar a grama e
entregar as compras.
De acordo com o relatório global da WWF sobre a
destruição da vida selvagem, 52% das populações de animais não-domesticados
desapareceram, durante os 40 anos que vão de 1970 a 2010. Muitas fontes de água
estão contaminadas ou secando. Os oceanos estão gritando por socorro, o ar
condicionado prospera. As florestas estão sendo derrubadas na Indonésia, que
substituiu a Amazônia como a região número um do mundo em desmatamento. A
Europa precisa ter energia renovável, de carne barata e da beleza do mogno.
A Rede de Justiça Fiscal revelou que cerca de 30 trilhões de dólares –
comparados a um PIB mundial de US$ 73 trilhões – eram mantidos em paraísos
fiscais em 2012. O Banco de Compensações Internacionais da Basileia mostra que
o mercado de derivativos, o sistema especulativo das principais commodities,
alcançou 630 trilhões de dólares, gerando o efeito iôiô nos preços das
matérias-primas econômicas básicas.
O maior jogo do planeta envolve grãos, minerais
ferrosos e não ferrosos, energia. Essas commodities estão nas mãos de 16
corporações basicamente, a maior parte delas sediadas em Genebra, como revelou
Jean Ziegler no livro A Suíça lava mais branco. Não há árbitro neste
jogo, estamos num ambiente vigiado. Os franceses têm uma excelente descrição
para os nossos tempos: vivemos une époque formidable!
Fizemos um trabalho perfeito em 2015: a avaliação
global sobre como financiar o desenvolvimento em Adis Abeba, as metas do
desenvolvimento sustentável para 2030 em Nova York e a cúpula sobre mudanças
climáticas em Paris. Os desafios, soluções e custos foram claramente expostos.
Nossa equação global é suficientemente simples para ser executada: os trilhões
em especulação financeira precisam ser redirecionados para financiar inclusão
social e para promover a mudança de paradigma tecnológico que nos permitirá
salvar o planeta. E a nós mesmos, claro.
Mas são os lobos de Wall Street que traçaram o
código moral para este esporte: Ganância é ótima!
Afogando em números
Estamos nos afogando em estatísticas. O Banco
Mundial sugere que deveríamos fazer algo a respeito dos news four
biliion – referindo-se aos quatro bilhões de seres humanos “que não
têm acesso aos benefícios da globalização” – uma hábil referência aos pobres.
Temos também os bilhões que vivem com menos de 1,25 dólar por dia.
A FAO nos mostra em detalhes onde estão
localizadas as 800 milhões de pessoas famintas do mundo. A Unicef conta
aproximadamente 5 milhões de crianças que morrem anualmente em razão do acesso
insuficiente a comida e água limpa. Isso significa quatro World Trade Centers
por dia, mas elas morrem silenciosamente em lugares pobres, e seus pais são
desvalidos.
As coisas estão melhorando, com certeza, mas o
problema é que temos 80 milhões de pessoas a mais todo ano – a população do
Egito, aproximadamente – e este número está crescendo. Um lembrete ajuda, pois
ninguém entende de fato o que significa um bilhão: quando meu pai nasceu, em
1900, éramos 1,5 bilhão; agora somos 7,2 bilhões. Não falo da história antiga,
falo do meu pai.
E já que não é da nossa experiência diária
entender o que é um bilionário, vai aqui uma nova imagem: se você investe um
bilhão de dólares em algum fundo que paga miseráveis 5% de juros ao ano, ganha
137.000 dólares por dia. Não há como gastar isso, então você alimenta mais
circuitos financeiros, tornando-se ainda mais fabulosamente rico e alimentando
mais operadores financeiros.
Investir em produtos financeiros paga mais do que
investir na produção de bens e serviços – como fizeram os bons, velhos e úteis
capitalistas – de modo que não tem como o acesso ao dinheiro ficar estável,
muito menos gotejar para baixo. O dinheiro é naturalmente atraído para onde ele
mais se multiplica, é parte da sua natureza, e da natureza dos bancos.
Dinheiro nas mãos da base da pirâmide gera
consumo, investimento produtivo, produtos e empregos. Dinheiro no topo gera
fabulosos ricos degenerados que comprarão clubes de futebol, antes de
finalmente pensar na velhice e fundar uma ONG – por via das dúvidas.
Um suborno global
Muita gente percebe que as regras do jogo são
manipuladas. Os tempos são de fraude global, quando pessoas fabulosamente ricas
doam a políticos e promovem a aprovação de leis para acomodar suas crescentes
necessidades, fazendo da especulação, da evasão fiscal e da instabilidade geral
um processo estrutural e legal.
Lester Brown fez suas somatórias ambientais e
escreveu Plano B [“Plan B”], mostrando claramente que o atual
Plano A está morto. Gus Speth, Gar Alperovitz, Jeffrey Sachs e muitos outros
estão trabalhando no Próximo Sistema [“Next System”],
mostrando, implicitamente, que nosso sistema foi além de seus próprios limites.
Joseph Stiglitz e um punhado de economistas
lançaram Uma Agenda para a Prosperidade Compartilhada, rejeitando
“os velhos modelos econômicos”. De acordo com sua visão, “igualdade e
desempenho econômico constituem na realidade forças complementares, e não
opostas”.
A França criou seu movimento de Alternativas
Econômicas; temos a Fundação da Nova Economia no Reino Unido; e estudantes da
economia tradicional estão boicotando seus estudos em Harvard e outras
universidades de elite. Mehr licht! [Mais luz!]
E os pobres estão claramente fartos desse jogo.
Sobram muito poucos camponeses isolados e ignorantes prontos a se satisfazer
com sua parte, seja ela qual for. As pessoas pobres de todo o mundo estão
crescentemente conscientes de que poderiam ter uma boa escola para seus filhos
e um hospital decente onde pudessem nascer. E além disso veem na TV como tudo
pode funcionar: 97% das donas de casa brasileiras têm aparelho de TV, mesmo
quando não têm saneamento básico decente.
Como podemos esperar ter paz em torno do lago que
alguns chamam de Mediterrâneo, se 70% dos empregos são informais e o desemprego
da juventude está acima de 40%? E eles estão assistindo na TV o lazer e a
prosperidade existentes logo ali, cruzando o mar, em Nice?
A Europa bombardeia-os com estilos de vida que
estão fora do seu alcance econômico. Nada disso faz sentido e, num planeta que
encolhe, é explosivo. Estamos condenados a viver juntos, o mundo é plano, os
desafios estão colocados para todos nós, e a iniciativa deve vir dos mais
prósperos. E, felizmente, os pobres não são mais quem eram.
Cultura e convivialidade
Sempre tive uma visão muito mais ampla de cultura
do que o tradicional “Ach! disse Bach”. Penso que ela inclui desfrutar de
alegria com os outros, enquanto se constrói ou se escreve alguma coisa, ou
simplesmente se brinca por aí. Convivialidade. Recentemente passei algum tempo
em Varsóvia. Nos fins de semana de verão, os parques e praças ficavam cheios de
gente e havia atividades culturais para todo lado.
Ao ar livre, com um monte de gente sentada no
chão ou em simples cadeiras de plástico, uma trupe de teatro fazia uma paródia
do modo como tratamos os idosos. Pouco dinheiro, muita diversão. Logo adiante,
em outras partes do parque Lazienki, vários grupos tocavam jazz ou música
clássica, e as pessoas estavam sentadas na grama ou assentos improvisados, as
crianças brincando por perto.
No Brasil, com Gilberto Gil no Ministério da
Cultura, foi criada uma nova política, os Pontos de Cultura. Isso significou
que qualquer grupo de jovens que desejasse formar uma banda poderia solicitar
apoio, receber instrumentos musicais ou o que fosse necessário, e organizar
shows ou produzir online. Milhares de grupos surgiram – estimular a
criatividade requer não mais que um pequeno empurrão, parece que os jovens
trazem isso na própria pele.
A política foi fortemente atacada pela indústria
da música, sob o argumento de que estávamos tirando o pão da boca de artistas
profissionais. Eles não querem cultura, querem indústria de entretenimento, e
negócios. Por sorte, isso está vindo abaixo. Ou pelo menos a vida cultural está
florescendo novamente. Os negócios têm uma capacidade impressionante para ser
estraga-prazeres.
O carnaval de 2016 em São Paulo foi incrível.
Fechando o círculo, o carnaval de rua e a criatividade improvisada estão de
volta às ruas, depois de ter sido domados e disciplinados, encarecidos pela
comunicação magnata da Rede Globo.
As pessoas saíram improvisando centenas de
eventos pela cidade, era de novo um caos popular, como nunca deixou de ser em
Salvador, Recife e outras regiões mais pobres do País. O entretenimento do
carnaval está lá, é claro, e os turistas pagam para sentar e assistir ao show
rico e deslumbrante, mas a verdadeira brincadeira está em outro lugar, onde o
direito de todo mundo dançar e cantar foi novamente conquistado.
Um caso de consumo
Eu costumava jogar futebol bastante bem, e ia com
meu pai ver o Corinthians jogar no tradicional estádio do Pacaembu, em São
Paulo. Momentos mágicos, memórias para a vida inteira. Mas principalmente
brincávamos entre nós, onde e quando podíamos, com bolas improvisadas ou reais.
Isso não é nostalgia dos velhos e bons tempos,
mas um sentimento confuso de que quando o esporte foi reduzido a ver grandes
caras fazendo grandes coisas na TV, enquanto a gente mastiga alguma coisa e
bebe uma cerveja, não é o esporte – mas a cultura no seu sentido mais amplo –
que se transformou numa questão de produção e consumo, não em alguma coisa que
nós próprios criamos.
Em Toronto, fiquei pasmo ao ver tanta gente
brincando em tantos lugares, crianças e gente idosa, porque espaços públicos ao
ar livre podem ser encontrados em todo canto. Aparentemente, por certo nos
esportes, eles sobrevivem divertindo-se juntos. Mas isso não é o mainstream,
obviamente.
A indústria de entretenimento penetrou em cada
moradia do mundo, em todo computador, todo telefone celular, sala de espera,
ônibus. Somos um terminal, um nó na extensão de uma espécie de estranho e
gigante bate-papo global.
Esse bate-papo global, com evidentes exceções, é
financiado pela publicidade. A enorme indústria de publicidade é por sua vez
financiada por uma meia dúzia de corporações gigantes cuja estratégia de
sobrevivência e expansão é baseada na transformação das pessoas em
consumidores.
O sistema funciona porque adotamos, docilmente,
comportamentos consumistas obsessivos, ao invés de fazer música, pintar uma paisagem,
cantar com um grupo de amigos, jogar futebol ou nadar numa piscina com nossas
crianças.
Um punhado de otários consumistas
Que monte de idiotas consumistas nós somos, com
nossos apartamentos de dois ou três quartos, sofá, TV, computador e telefone celular,
assistindo o que outras pessoas fazem.
Quem precisa de uma família? No Brasil o
casamento dura 14 anos e está diminuindo, nossa média é de 3,1 pessoas por
moradia. A Europa está na frente de nós, 2,4 por casa. Nos EUA apenas 25% das
moradias têm um casal com crianças. O mesmo na Suécia. A obesidade está
prosperando, graças ao sofá, à geladeira, ao aparelho de TV e às guloseimas.
Prosperam também as cirurgias infantis de
obesidade, um tributo ao consumismo. E você pode comprar um relógio de pulso que
pode dizer quão rápido seu coração está batendo depois de andar dois
quarteirões. E uma mensagem já foi enviada ao seu médico.
O que tudo isso significa? Entendo cultura como a
maneira pela qual organizamos nossas vidas. Família, trabalho, esportes, música,
dança, tudo o que torna minha vida digna de ser vivida. Leio livros, e tiro um
cochilo depois do almoço, como todo ser humano deveria fazer. Todos os
mamíferos dormem depois de comer, somos os únicos ridículos bípedes que correm
para o trabalho.
Claro, há esse terrível negócio do PIB. Todas as
coisas prazerosas que mencionei não aumentam o PIB – muito menos minha sesta na
rede. Elas apenas melhoram nossa qualidade de vida. E o PIB é tão importante
que o Reino Unido incluiu estimativas sobre prostituição e venda de drogas para
aumentar as taxas de crescimento. Considerando o tipo de vida que estamos
construindo, eles talvez estejam certos.
Necessitamos de um choque de realidade. A
desventura da terra não vai desaparecer, levantar paredes e cercas não vai resolver
nada, o desastre climático não vai ser interrompido (a não ser se alterarmos
nosso mix de tecnologia e energia), o dinheiro não vai fluir aonde deveria (a
não ser que o regulemos), as pessoas não criarão uma força política forte o
suficiente para apoiar as mudanças necessárias (a não ser que estejam
efetivamente informadas sobre nossos desafios estruturais).
Enquanto isso, as Olimpíadas e MSN (Messi,
Suarez, Neymar para os analfabetos) nos mantêm ocupados em nossos sofás. Como
ficará, com toda a franqueza, o autor destas linhas. Sursum corda.
domingo, 18 de setembro de 2016
O impeachment da presidenta Dilma Rousseff configura golpe de Estado?
Olá alunos,
A postagem de hoje
busca responder à questão tão pertinente à atual conjuntura política do nosso país:
Afinal, o impeachment de Dilma Rousseff configura golpe de Estado? Para isso, o
texto busca resgatar o pensamento de alguns autores como Gabriel Garcia Marques,
o qual sintetizou com duas expressões a histórica legitimação da violação dos
direitos das classes subalternas por parte dos grupos dominantes da América
Latina: delírio hermenêutico e ilusionistas do direito.
Esperamos que gostem
e participem.
Palloma Borges,
monitora da disciplina “Economia Política e Direito” da Universidade Federal
Fluminense.
A crise política pela qual o país atravessa traz a necessidade de se
procurar responder à seguinte questão: o impeachment da presidenta Dilma
Rousseff configura golpe de Estado?
A busca pela resposta jurídica a tal questionamento é iniciada, no
presente texto, não com citações doutrinárias ou precedentes
jurisprudenciais. Inicia-se com o realismo fantástico de Gabriel Garcia
Marques, no seguinte trecho de Cem anos de solidão:
“Cansados daquele delírio hermenêutico, os trabalhadores repudiaram as
autoridades de Macondo e subiram com suas queixas aos tribunais
supremos. Foi ali onde os ilusionistas do direito demostraram que as
reclamações careciam de toda validade [...]”.
Como se vê, ao narrar a forma pela qual advogados de multinacional na
imaginária Macondo livram a empresa da acusação de uso de trabalho
escravo, Gabo sintetizou com duas expressões a histórica legitimação da
violação dos direitos das classes subalternas por parte dos grupos
dominantes da América Latina: delírio hermenêutico e ilusionistas do direito.
O que se quer lembrar, com essa citação, é que as demandas sociais
reconhecidas pelo Estado sob a forma de direitos são, historicamente,
objetos de uma leitura cínica, por parte das elites latino-americanas.
Em sendo assim, logra-se inverter as finalidades dos aludidos direitos
em favor de projetos políticos ou econômicos dominantes.
Eis uma lembrança imprescindível em um país, como o Brasil, que sofreu
uma ditadura civil-militar por mais de vinte anos a partir de um golpe
de Estado caracterizado por um verniz jurídico: foi assim que, para
legitimar a derrubada de João Goulart, o senador Auro de Moura Andrade
declarou vaga a presidência da república no dia 2 de abril de 1964,
embora Jango ainda estivesse em território nacional. No mesmo sentido,
dias depois, quando o Marechal Castello Branco já ocupava a presidência
da República, o então presidente do STF Alvaro Moutinho Ribeiro da Costa
declarou que as Forças Armadas haviam restabelecido a democracia.
Tais observações, por si sós, derrubam a tese corrente no sentido de
que o processo de impeachment contra a presidenta Dilma Rousseff, ao
tramitar em uma casa legislativa (Senado Federal) após autorização de
outra casa legislativa (Câmara dos Deputados), estando sob a presidência
de membro do Judiciário (o presidente do STF), marcaria a legalidade de
todos os atos praticados, pelo Legislativo, contra o voto popular. A
História mostra que tais circunstâncias são insuficientes para
caracterizar a legitimidade democrática de tudo que se tem passado.
Uma leitura cínica dos direitos
Dizia Tom Jobim que o Brasil não é para principiantes. Há que se
complementar: o Brasil não é para ingênuos ou para inocentes, porque a
ingenuidade e a inocência, que caracterizam o principiante, ao final,
permitem a leitura cínica dos direitos.
Por isso, algumas observações a mais devem ser realizadas.
Necessário, então, prosseguir, citando, de pronto, a mais cínica tese
“jurídica” que defende a legalidade do impeachment: “a medida está na
Constituição”, afirmam seus defensores. De fato, está na Constituição,
assim como estava o decreto de vacância da presidência da República
realizado pelo senador Auro de Moura Andrade em 1964.
Somente o principiante não sabe distinguir o que está previsto em tese,
como medida excepcional, do que deve ser aplicado no caso concreto como
produto da leitura do texto normativo.
Essa argumentação poderia até deixar de ser inocente, caso o
impeachment fosse um instituto meramente político. Mas não é. E no
direito brasileiro, nunca foi assim considerado. Pedro Lessa, jurista do
início do século passado e ministro do Supremo Tribunal Federal, já
defendia, em seus votos, o caráter misto do instituto (jurídico e
político), a exigir, portanto, a observância de regras previstas do
direito em vigor.
No âmbito dessas regras, está a exigência do crime de responsabilidade.
Exige-se a prática de um crime – isto é, fato definido pelo direito
como crime –, o que, desde o Iluminismo, impõe que o Estado deixe claro à
toda sociedade que uma determinada conduta será tratada como uma
conduta criminosa.
Ora, desde quando se sabe que manobra orçamentária praticada por chefe
de Executivo configura crime? Não se sabe, até porque se trata de
prática corriqueira entre chefes de Executivo. Nunca foi crime. Passou a
ser crime para uma única pessoa, valendo unicamente para ela. Tal como
ocorria na inquisição pré-iluminista.
Com essas observações, não se está a esquecer a expressão
“responsabilidade” que qualifica o crime apto ao impeachment.
Responsabilidade está a indicar que o julgamento será por senadores e
não por juízes, que, portanto, não estão adstritos às mesmas regras de
julgamento que um membro do Judiciário. Isso explica porque o presidente
Collor foi condenado no Senado por práticas bem conhecidas como
criminosas, mas absolvido pelo Judiciário.
Desvio de finalidade
Há, ainda, outra circunstância a ser esclarecida. A interpretação do
direito, para não ser uma interpretação principiante, a permitir
delírios hermenêuticos, não pode desconsiderar todos os fatos que
antecederam um caso específico inserido à leitura da norma jurídica.
É sob essa circunstância que o instituto do desvio de finalidade tem de
ser aplicado. Trata-se do uso de um ato para satisfazer finalidade
alheia a este mesmo ato (Celso Antônio Bandeira de Mello).
Ora, recorda-se que a derrubada da presidente já era cogitada antes
mesmo das eleições. O senador José Aníbal chegou a citar, em seu
twitter, a famosa frase de Carlos Lacerda no sentido de que Getúlio
Vargas não governaria caso vencesse as eleições; teve-se, ainda, o
pedido de auditoria das urnas eletrônicas; recebimento de denúncia do
impeachment como vingança à ausência de apoio do partido da presidenta
da República em processo que tramitava no Conselho de Ética contra o
então presidente da Câmara dos Deputados; pressão pela renúncia
fomentada por divulgação de gravações clandestinas; sucessivas
proposituras de ações populares para se impedir a posse de ministros,
dentre outras circunstâncias.
Fica claro que a culpada já existia antes mesmo das eleições. O que faltava era o pretexto jurídico.
Golpe de Estado
O direito pouco trabalha com a noção de golpe de Estado. Está na hora de um tratamento sério a ser feito sobre o tema.
Cita-se, nesse sentido, Noberto Bobbio, que trabalha muito bem no diálogo entre a ciência política e o direito. Em seu Dicionário de Política,
Bobbio caracteriza o golpe de Estado a partir dos seguintes elementos,
não necessariamente cumulativos: 1) ato efetuado por órgãos do Estado
(em sua época, na maioria das vezes, pelas forças armadas, mas reconhece
que outros componentes do aparelho estatal podem realizar a ruptura);
2) mudança da liderança política; 3) possibilidade de ser acompanhado
por mobilização social ou política; 4) reforço da máquina burocrática e
policial do Estado; 5) eliminação ou dissolução dos partidos políticos.
Tem-se, no Brasil, uma derrubada de uma presidenta da República eleita,
levada a cabo por agentes do próprio Estado, especialmente o
Parlamento.
Tal derrubada, por óbvio, objetiva a mudança da principal liderança
política do país, que, em um presidencialismo, dá-se na pessoa do
presidente da república. Está claro que a mudança de liderança objetiva a
aplicação de reformas econômicas que jamais um governo dependente de
eleições democráticas teria a coragem de realizar.
A derrubada da presidenta democraticamente eleita foi, ainda,
antecedida de intensa mobilização dos setores mais conservadores da
sociedade, que, durante os anos de 2015 e 2016, tomaram conta das
principais avenidas do país.
Tem-se, ainda, um reforço da máquina burocrática e policial do Estado.
Amolda-se aqui o discurso do endurecimento penal, seja por projetos que
contam com o apoio dos militantes pró-impeachment (a redução da
maioridade penal é um exemplo), seja nos discursos dos agentes
governamentais (lembra-se da recente fala do ministro da Justiça de que o
Brasil precisa mais de armas do que de pesquisa).
Por fim, não há, é verdade, eliminação ou supressão de partidos
políticos, ao menos por ora, o que não elide a tese do golpe, já que,
como se viu, os requisitos acima elencados não são cumulativos. De toda
forma, já tramita no Tribunal Superior Eleitoral representação contra o
partido da presidenta Dilma Rousseff,que pode resultar na cassação do
respectivo registro.
Parece que o delírio hermenêutico foi longe demais, alcançando agora o
requisito mínimo de uma democracia representativa, o voto popular. Não
há dúvida de que, no futuro, os manuais de direito chamarão toda essa
manobra de troca de presidentes da república de golpe de Estado.
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