Olá alunos,
A postagem de hoje debate alguns dos reflexos
do advento dos meios de comunicação de massa e da industrialização da cultura
no século XX, relacionando esses acontecimentos com o Direito, vez que este não
deve dispensar o jornalismo, instituição importante para tornar mais
transparente o exercício do poder.
Esperamos que gostem e
participem.
Palloma Borges, monitora da disciplina “Economia Política e
Direito” da Universidade Federal Fluminense.
O
filósofo alemão Jürgen Habermas é sempre lembrado nos cursos e estudos sobre
jornalismo e comunicação, especialmente por suas obras-primas Mudança
estrutural da Esfera Pública e Teoria da Ação Comunicativa. Em resumo, a
primeira é um estudo sociológico e filosófico sobre o surgimento de espaços de
comunicação e expressão entre cidadãos privados reunidos em públicos desde o
século 17, no início da fase concorrencial do capitalismo na Europa. Os
suportes principais desses públicos eram os recém-criados jornais, a imprensa,
sua instituição por excelência, e seu produto, a opinião pública, tornar-se-iam
o fundamento último da lei no Estado democrático. Isso significa que a imprensa
incorpora para Habermas o princípio da esfera pública, que deveria garantir a
proteção da esfera privada e a publicização do poder, ou seja, a separação
entre sociedade civil e Estado por meio dos direitos humanos e da soberania
popular. Porém, com o advento dos meios de comunicação de massa e a
industrialização da cultura no século 20, ocorre a decadência da esfera
pública. A notícia teria se tornado mercadoria e a opinião pública
transfigurada em opinião publicada e aclamação. Depois dessa desilusão com o
princípio da esfera pública, de um lado tornada propaganda, de outro, medição
estatística de pesquisas de opinião, Habermas se distanciou do jornalismo e dos
meios de comunicação como espaços em que poderia identificar uma comunicação
voltada para o exercício das liberdades de comunicação e do respeito às
competências comunicativas de cada indivíduo. Por isso, Teoria da Ação
Comunicativa é um estudo sobre a constituição linguística do mesmo tipo de
comunicação que pode ser identificado em Mudança Estrutural da Esfera Pública,
mas que Habermas então atribui a toda relação humana que se utiliza das trocas
discursivas voltadas à comunicação orientada pelo melhor argumento, e não pelo
auto interesse, a reputação ou o lugar social do discurso. Mais ainda, estaria
presente em toda comunicação em que indivíduos e grupos se reúnem para discutir
e decidir sobre a verdade dos fatos, a validade das normas e a sinceridade e a
autenticidade das expressões individuais e culturais. Com essa guinada para a
filosofia e mais em seguida para a teoria da moral e do direito, Habermas só
retomaria mais sistematicamente o jornalismo e os meios de comunicação como
objetos de análise, quarenta anos depois da primeira publicação de Mudança
Estrutural. Ao que parece, preocupado com as condições de uma esfera pública
transnacional a partir da formação da União Europeia e o papel dos meios de
comunicação nessa questão. Mas, apesar dessa mudança de objeto de pesquisa, do
debate público democrático para a qualidade do procedimento jurídico
deliberativo como espaço de legitimação do direito, como veremos, o jornalismo
e os meios de comunicação continuaram a aparecer nos diagnósticos e nas
propostas teóricas da trajetória intelectual de Habermas. “Desavenças de juventude”
É possível comparar a relação de Habermas e o jornalismo com a de velhos amigos
de infância que perderam contato depois de algumas desavenças de juventude, mas
que décadas depois se reencontram mais maduros, já que nunca deixaram de
compartilhar os mesmos valores e interesses. Ainda que tenha deixado de tratar
mais detidamente de temas do jornalismo e da imprensa desde a publicação de
Mudança Estrutural da Esfera Pública em 1962, a teoria social e da razão e
também do direito de Habermas continuaram a depender de uma imprensa livre,
isto é, mobilizada internamente pelas regras do jornalismo, e os direitos de
comunicação e participação garantidos constitucionalmente. As razões por trás
dessas “desavenças de juventude” entre o pensamento de Habermas e o jornalismo
e a imprensa são mais de ordem sociológica do que filosófica. Habermas
reconhece no prefácio da edição em inglês de Mudança Estrutural de 1992 que seu
diagnóstico da esfera pública, ora romanticamente otimista em termos da origem
e fundamentos nos séculos 18 e 19, ora excessivamente pessimista quanto à sua
subversão no século 20, havia sido influenciado pelo estudo Student und
Politik, realizado no Instituto de Pesquisa Social de Frankfurt e publicado em
1961 (Student und Politik. Eine soziologische Untersuchung zum politischen
Bewusstsein Frankfurter Studenten. Institut für Sozialforschung, Frankfurt am
Main, 1961), no qual identificara uma apatia e uma baixa consciência política
nos estudantes de Frankfurt no início dos anos 60. Outra abordagem que teria
orientado sua visão foi aquela da crítica da indústria cultural ecialmente por
suas obras-primas Mudança Estrutural da Esfera Pública, de 1962 da
“mistificação das massas”, derivada da totalização do princípio da razão
instrumental, ou da autopreservação individual sobre a “sociedade administrada”
do capitalismo tardio, feita por Adorno e Horkheimer em Dialética do
Esclarecimento. Fragmentos Filosóficos, de 1944 (Rio de Janeiro, Jorge Zahar,
1985). Ao mesmo tempo que denunciara o descolamento dos ideais da esfera
pública diante da produção industrializada da opinião pública, tornada
estatística e espetáculo e gerando identificação psicológica nas audiências,
Habermas deixou de trabalhar esse campo para nos anos 1970 se dedicar ao
empreendimento filosófico e sociológico que resultaria nos dois volumes da
Teoria da Ação Comunicativa, em 1982.
Para onde foi o jornalismo?
Ao
aprofundar as questões teóricas e normativas que teria encontrado na origem e
fundamentos da esfera pública, Habermas substitui em Teoria da Ação
Comunicativa os objetos empíricos da imprensa, do jornalismo e das demais
instituições que atuam na esfera pública para encontrar nas características
pragmáticas da linguagem e da comunicação cotidiana e especializada aquele tipo
de racionalidade identificado na origem da esfera pública burguesa: ao lado da,
e mais abrangente que, a razão e a ação instrumentais denunciadas por Adorno e
Horkheimer e outras críticas clássicas da modernidade, como as de Marx e Weber,
haveria uma razão comunicativa que resiste, ainda que soterrada pela
industrialização da cultura e a instrumentalização das relações sociais. A
razão comunicativa é aquela que motiva a ação orientada pelo entendimento entre
sujeitos que se reconhecem como falantes competentes em diversas esferas da
vida. Ou seja, das conversações mais rudimentares às comunicações mais
especializadas da política, da moral, e mesmo da crítica de arte, da ciência e
da economia, as pessoas assumem constantes de “compromissos discursivos de ação
social” determinados por regras culturalmente construídas. Estaria então na
linguagem humana, e não mais nos espaços de comunicação promovidos pela
imprensa, o lugar de identificação da razão comunicativa, capaz de dar ignição
à ação comunicativa. Somente ela produziria a solidariedade social capaz de
garantir a formação de personalidades, da cultura e da própria sociedade na era
contemporânea. É assim que a imprensa, o jornalismo e os meios de comunicação
tomariam posição periférica nos estudos de Habermas a partir dos anos 1980, e a
esfera pública dá lugar à teoria da ação comunicativa como ao mesmo tempo uma
teoria da razão e do discurso, uma teoria social, uma teoria da modernidade.
Ainda assim, a partilha dos valores e interesses de Habermas com os ideais da
imprensa livre não a faz desaparecer por completo em Teoria da Ação
Comunicativa. Com a substituição dos conceitos de esfera pública econômica,
literária e política, e de públicos formais e informais por um modelo binário
de análise da sociedade em que o “mundo da vida” (reino das ações comunicativas
e tradicionais) é colonizado pelo “sistema” (reino das ações instrumentais e
estratégicas), os meios de comunicação não assumem totalmente o lado do
sistema, mas sim uma posição ambivalente: são “formas generalizadas de comunicação”,
suscetíveis à lógica instrumental, embora sempre constituídas a partir das
interações linguísticas das audiências e seus panos de fundo culturais. Ou
seja, Habermas confere um status menos instrumentalizado para os meios de
comunicação de massa e a imprensa do que no processo de mudança estrutural da
esfera pública, e comprova isso ao buscar estudos empíricos sobre televisão de
autores como Kellner e Singlewood para destacar ambivalências da tese do
unilateralismo midiático. Resumi essas ambivalências, que ainda continuam
válidas, em um estudo publicado em 2008 (“Mídia e Cidadania: Contribuições de
Leituras Habermasianas da Comunicação de Massa para a Retomada da Esfera
Pública em Sociedades Complexas”. Revista de Economía Política de las Tecnologías
de la Información y Comunicación www.eptic.com.br, vol. X, n. 2, May-Ago.,
2008): A variabilidade de fatores e consequências da produção de informação e a
evolução técnica dos meios de comunicação; A existência de produções que não
somente reafirmam os conteúdos pasteurizados e repetitivos da indústria
cultural; A capacidade de crítica e requalificação das informações pelos
contextos culturais de recepção; O poder da comunicação oral e cotidiana em se
contrapor à influência político-ideológica dos meios de massa. Esfera pública
na teoria do direito Apesar de não ter sido notada por teóricos da comunicação
política, essa abordagem da comunicação de massa em Teoria da Ação Comunicativa
dá início a um retorno de Habermas ao tema da esfera pública, especialmente com
sua teoria do direito, publicada em 1992 na Alemanha e em 1997 no Brasil com o
título Direito e Democracia: Entre Facticidade e Validade (em 2 vols. Trad.
Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro). Seu diagnóstico,
contudo, não parece ir além do que ele mesmo teria feito caso reescrevesse
Mudança Estrutural nos anos 1990: oferecer uma abordagem menos pessimista da
capacidade dos meios de comunicação de massa em contribuir para uma publicidade
crítica e uma abordagem teórica que saísse de arranjos de princípios
contrastantes. Por isso que podemos falar num retorno incompleto da esfera
pública, e, portanto, da influência dos meios de massa na teoria do direito.
Apesar de reconhecer as plataformas de comunicação eletrônica como as únicas
capazes de fazer circular as informações e argumentos entre fóruns
especializados e espaços informais de formação da vontade política, seu
diagnóstico de um atravessamento por interesses econômicos e políticos e grupos
de pressão ainda é muito generalista e impreciso. Em vez de reconstruir os
princípios específicos da esfera pública em casos concretos, como as liberdades
de informação, comunicação e imprensa, além da transparência do poder público,
Habermas mantém os ideais de uma esfera pública, agora mais “assujeitada” em
fluxos de informações e argumentos, como “ficções metodológicas” a serem
contrastadas com seus desvios e vícios em casos concretos. Ele próprio viria a
considerar essa necessidade de reconstrução dos princípios da esfera pública internamente
ao direito, em debate em curso sobre direito internacional em Heidelberg, no
início de 2013. Embora infiltrados por esses imperativos, os meios de
comunicação de massa e a imprensa são tomados, ao lado do direito, como “formas
generalizadas de comunicação” que guardam ligação tanto com o sistema quanto
com o mundo da vida, ocupando esse lugar de “ponte” entre os interesses
individuais e a formação coletiva da opinião e da vontade políticas. Apesar do
diagnóstico ainda negativo e impreciso da esfera pública, Habermas destaca
alguns papéis a serem desempenhados pela imprensa na democracia: monitoramento,
agenda-setting “significativo”, e espaço para opiniões diversificadas
mecanismos sociais e institucionais de responsabilização de autoridades independência
de pressões econômica, política, moral e cultural promoção de educação,
participação e respeito às audiências como membros conscientes e capazes de
fazer sentido de seu ambiente político e participar de espaços midiáticos de
discussão pública.
Meios e mercados
No texto
“Meios e Mercados e Consumidores”, publicado no Süddeutsche Zeitung em 2007,
Habermas define a imprensa de qualidade como aquela orientada pelo interesse
público, como condutora da esfera pública. Se quality papers são a “medula
óssea” da esfera pública, deduzimos que os meios eletrônicos são sua espinha
dorsal. Do mesmo modo, no texto Political Communication in Media Society
(Communication Theory 16(4):411-426, outubro de 2006), uma esfera pública
independente é vista como pressuposto do Estado democrático de direito: um dos
fundamentos da democracia e da solidariedade cidadã, ao lado dos direitos
humanos e da soberania popular. Isso implicaria aos jornais contribuir para a
circulação da comunicação entre centro e periferia da esfera pública, numa
função de “lavagem” do “barro” dos conjuntos de opiniões públicas caóticas e
informais, organizando-as de modo a permitir o julgamento informado pelos
espaços mais generalizados e formais, como em votações populares e no
Parlamento. Mas diante da crise econômica da imprensa de qualidade, impactada
especialmente pelos efeitos de fragmentação e personalização dos fluxos de
comunicação na internet, o “caos da esfera pública” estaria instaurado (“O Caos
da Esfera Pública”. Caderno Mais! Folha de S.Paulo, 13/08/2006). Os
intelectuais que antes se moviam como peixes na esfera pública subitamente
seriam afogados com o excesso de possibilidades de informação e comunicação, e
a necessidade de se autorrepresentarem visualmente a fim de obter legitimidade
para seus discursos. Nesse momento Habermas faz uma proposta ousada, e que pode
soar contraintuitiva aos incautos: se o Estado provê energia elétrica, dado que
é uma necessidade básica de sobrevivência na sociedade, por que ele não deveria
garantir também a energia comunicativa que é gerada com um meio ambiente
informacional independente de anunciantes ou flutuações do mercado? Enfim, é
possível ter apoio público e manter a independência? Os modelos de comunicação
pública e de fundos autossuficientes estão aí para provar que sim, como o caso
da BBC e do Scott Trust, do Guardian Group, ainda que sofram pressões com o
avanço tecnológico e a descentralização das fontes de produção e circulação de
informação. No caso, além de discutir a fonte de renda em taxa obrigatória ou
assinatura facultativa como base de recursos, a constituição do corpo dirigente
do meio teria de ser formado por representações equitativas e respeitadas da
área, com proteções contra a ingerência política ou de outra ordem em suas
gestões.
Interdependência com o direito
Além das
dependências estruturais da imprensa, se entendemos que a comunicação política
atual contribui de alguma forma para o cinismo em relação à política e a
desconfiança nas instituições, numa última cartada com desdobramentos
metodológicos, Habermas diz que não devemos procurar no estado passivo da
sociedade as causas para essa alienação política, e sim nos conteúdos de uma
comunicação dominada por imperativos externos, como na colonização da esfera
pública por imperativos do mercado. Nesse momento, a crítica à concentração
econômica e política estrutural dos meios de comunicação passa a ser
acompanhada de uma crítica à redefinição de categorias políticas por categorias
de mercado que se faz visível nos conteúdos dos discursos jornalísticos e
outros, que levam à invasão do discurso político por elementos do entretenimento,
como a personalização, a dramatização e a supersimplificação de questões
complexas. A polarização de conflitos políticos promove o que Habermas chama de
“privatismo cívico” e um ambiente de “antipolítica”. Antes de ver esses
fenômenos como degradações necessárias da esfera pública, Habermas abre uma
porta para análises dos discursos sobre os direitos de comunicação, em grande
parte os direitos e deveres ligados à imprensa, como forma de identificação de
tendências de legitimação da democracia. Ao final, a relação do jornalismo com
o pensamento de Habermas é análoga à relação entre esfera pública e o direito.
Enquanto o jornalismo como instituição social não pode se misturar com o
Estado, e dele precisa de distância e independência para exercer sua crítica, o
direito não pode dispensar o jornalismo como instituição capaz de tornar mais
transparente o exercício do poder. Ao mesmo tempo, o jornalismo independente
depende de garantias constitucionais para existir e se manter. Um não pode
dispensar o outro, sobretudo os direitos e deveres envolvidos nos códigos e
práticas do jornalismo e da imprensa livre. Como é a manutenção daquela amizade
antiga com que, embora distante e às vezes com desavenças, você sabe que sempre
pode contar.
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