Caros Leitores,
O campo da economia criativa ou economia da cultura possui inúmeras dimensões e abrange diversos aspectos que perpassam desde a circulação comercial de bens imateriais na esfera da cultura quanto processos envolvendo relações trabalhistas e econômicas que permeiam o cotidiano da sociedade brasileira.
Ao adotar uma visão não apenas economicista para abordar os bens culturais, os países vêm desenvolvendo estratégias relacionadas à economia da cultura por meio da adoção de
diferentes caminhos e percursos.
Com a finalidade de aprofundar o debate acerca dessa questão, trazemos nesta semana uma notícia que aborda os efeitos suscitados pelo direcionamento promovido por movimentos culturais e as modalidades de sua interação com a esfera de mercado.
Esperamos que gostem e compartilhem!
Fernanda Lima é membro do Grupo de Pesquisa em Estado, Instituições e Análise.
O conceito de economia da cultura, ao mesmo tempo que engloba o conjunto mais restrito de atividades das chamadas indústrias criativas e a economia que lhe é associada, incorpora, também, estas muitas outras “áreas” da dimensão simbólica deixadas de lado ou ignoradas na formulação conceitual da indústria e economia criativas.
Boa parte da economia da cultura, como se apresenta hoje no Brasil e em muitos dos países latino-americanos, não pode ser considerada atividade industrial e não estão submetidas ao regramento da propriedade intelectual ou autoral; algumas porque ainda não assumiram as características de indústria e outras porque nunca assumirão, apesar de gerarem ocupação, emprego e renda. São fatos econômicos relevantes de outra natureza.
Vejamos alguns dados empíricos. Em 1996, os produtos culturais (filmes, música, programas de televisão, livros, revistas e softwares para computadores etc.) tornaram-se, pela primeira vez, o maior produto de exportação dos Estados Unidos, ultrapassando todas as demais indústrias “tradicionais” (incluindo automóveis, agricultura, indústria aeroespacial e de defesa).
De acordo com um relatório publicado, em 1998, pela International Intellectual Property Alliance, entre os anos de 1977 e 1996, as indústrias criativas cresceram três vezes mais rapidamente do que a média da economia. Mais recentemente, em 2016 e 2017, o setor continuava crescendo acima da média geral: 5,3% em 2016 e 3,6% em 2017, enquanto a economia americana cresceu 2,9% a 1,6% nestes mesmos anos. No Reino Unido o setor cultural e as indústrias criativas representam 14,1% do total de bens e serviços exportados (DCMS, 2018). Numa perspectiva global, o setor cultural representa aproximadamente 3% do PIB mundial (UNCTAD, 2019). Os países desenvolvidos têm sido os principais beneficiários, com percentuais superiores à média mundial enquanto os países do Mercosul, por exemplo, tiveram um percentual inferior à média de 3% (VAN DER POL, 2017)
No Brasil, conforme estudo recente produzido pelo Instituto Itaú Cultural, a economia da cultura e indústrias criativas contribuem com 3,11% do PIB brasileiro, ficando à frente da indústria automotiva (2,50%) e um pouco atrás da indústria de construção (4,06%). As atividades culturais e criativas empregam cerca de 7.5 milhões de pessoas (7% do total da economia brasileira) e possuem 130 mil empresas no país (3,25% do total). Vale destacar que a economia da cultura e indústrias criativas sustentaram crescimento entre 2012 e 2020, enquanto o setor automotivo e da construção, tiveram diminuição da sua participação no total da economia brasileira no período.
Outro dado importante é o salário médio dos trabalhadores no setor cultural de 3,8 salários-mínimos contra 3,0 s.m. do restante da economia (IBGE, 2019), isto é, um valor 23,9% superior à média geral da economia. Predomina, nas atividades culturais, a participação de trabalhadores com 11 anos ou mais de estudo – 32,8% do setor em 2017 -, enquanto nos demais setores há maior prevalência de trabalhadores sem nível superior – cerca de 77,4% em 2017 (IBGE, 2017). Chamo a atenção para o fato de que a economia da cultura crescia e passava a ocupar mais trabalhadores e a remunerá-los melhor, exatamente nas duas chamadas “décadas perdidas”.
Um conjunto de fatores explica este desempenho e os efeitos desses fatores tendem a se projetar ainda por um longo período. De um lado, está a expansão da “onda de democracia” que varreu o mundo ao longo das últimas décadas: maior liberdade, maior procura e maior oferta de conteúdos e serviços culturais são dimensões bastantes articuladas nos ambientes democráticos. Em muitos países da América Latina, não se pode subestimar a emergência de demandas de acesso à cultura como parte do crescimento das suas economias e do processo de inclusão econômica e social de milhões de pessoas que, com altos e baixos e o vai e vem das democracias da região, estes países estão vivendo.
Outro fator está associado ao avanço científico e tecnológico que tem grande incidência sobre o desenvolvimento cultural em geral. A criação e a sofisticação de tecnologias e produtos e a elevação do consumo de bens e serviços associados à cultura (televisão digital, realidade virtual e 3D, reprodutores de música em diversos formatos, computadores, internet, aparelhos de DVD, televisores de alta definição, telefonia móvel, home theatre, smartphones etc.) estimulam positivamente a indústria de conteúdos culturais e são estimuladas por elas.
Um outro aspecto relevante para o fortalecimento das economias culturais, é que, no atual estágio de desenvolvimento do capitalismo, bens, serviços, atividades e equipamentos culturais se encontram no epicentro da chamada “economia das ideias”, ou “economia do conhecimento”.
Algumas abordagens sobre a economia cultural ou criativa não demonstram compreender as suas singularidades e a complexidade, e tratam essa economia como as economias tradicionais são tratadas. Ignoram os possíveis impactos positivos e negativos dessa economia para a própria natureza do fenômeno cultural e artístico. Muitos autores falam de negócios e lucros sem considerar as regulações que se impõem para as atividades econômicas que se propõem a obter lucros com os bens e serviços culturais e artísticos.
Um outro equívoco comum, que talvez tenha origem em uma certa idealização desta economia, é como se ela fosse, em si, algo benigno, sem as imperfeições e problemas típicos da economia capitalista e sem levar em conta questões econômicas inerentes a esta economia, tais como as contradições e desigualdades, as apropriações indevidas, monopólios etc. Fala-se pouco em comércio justo e aceita-se e justifica-se os entraves e gargalos marcantes do estado da arte dessa economia de uma forma conservadora, como se o seu desenvolvimento atrofiado no Brasil fosse uma fatalidade intransponível, algo parecido a um desígnio divino.
Essa economia, segundo nosso ponto de vista, tem que estabelecer, desde o seu planejamento, uma articulação e uma relação equilibrada entre o valor de troca dos bens culturais (e os demais aspectos econômicos), com o valor de uso, ou seja, com a razão de ser, a finalidade da arte e da cultura e suas funções e significados mais profundos na vida dos seres humanos, evitando desnecessários impactos negativos e, até mesmo devastadores, sobre a dimensão simbólica da sociedade.
Essa compreensão não economicista deve ser um paradigma e estar presente desde a formulação das políticas públicas e em todo o sistema cultural até nos mecanismos regulatórios que normatizam essa economia.
A experiência nos mostra que os países que estão desenvolvendo estratégias para as suas economias da cultura adotaram diferentes caminhos. Importante também considerar que a Unesco aprovou a Convenção sobre a Proteção da Diversidade das Expressões Culturais – com uma contundente contribuição do MinC brasileiro e um engajamento pessoal do então ministro Gilberto Gil -. Uma outra experiência internacional que merece destaque é o conceito, com força de lei, adotado pelos franceses e os demais países da francofonia, para garantir que as especificidades da cultura e das artes sejam consideradas através da formulação da excepcionalidade cultural.
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