Caros leitores,
Muito se lê hoje acerca da necessidade do Estado brasileiro adotar uma posição de "equilíbrio fiscal", sob o prisma de contenção das contas públicas para a garantia da credibilidade. Para muito além da antiguidade do debate, que é variável de acordo com a corrente ideológica e a própria percepção do indivíduo sobre a vida em sociedade, essa cobrança nem sempre acaba sendo a saída mais adequada ao caso concreto.
Diante disso, trazemos hoje um texto do professor emérito de economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) José Luis Fiori, em que traça uma profunda contextualização histórica do que seria equilíbrio fiscal e as diferentes nuances que o conceito recebe ao passar dos séculos, demonstra ainda casos práticos em que a pretensa adoção desse acabou sendo motivo de derrocada de nações, destacando a necessidade de observação do todo em face de pequenos fatores.
Esperamos que gostem e compartilhem!
Ygor Alonso é membro do Grupo de Pesquisa em Estado, Instituições e Análise Econômica do Direito (GPEIA/UFF).
O debate econômico sobre a questão do “equilíbrio fiscal” é tão antigo e tão repetitivo que às vezes lembra uma polifonia medieval, em que as vozes se alternam repetindo as mesmas frases e os mesmos acordes infinitas vezes, como se fosse um mantra, ou uma “ladainha sem fim”. O fraseado pode mudar através do tempo, mas a essência dos argumentos é sempre a mesma, há mais de 200 anos. Seja pelo lado dos liberais ou monetaristas, que defendem o imperativo absoluto do “equilíbrio fiscal”, seja pelo lado dos desenvolvimentistas ou keynesianos, que consideram que o crescimento econômico exige políticas fiscais menos rígidas e mais expansionistas.
Apesar de longevo, este debate nunca teve nem terá uma conclusão clara e definitiva, simplesmente porque não se trata de uma divergência acadêmica, ou puramente científica, e envolve sempre os interesses de “agentes econômicos” e classes sociais que são muitas vezes antagônicos e excludentes. Além disso, para confundir ainda mais a discussão, constata-se através da história que, em distintas circunstâncias, as mesmas políticas econômicas podem ter resultados completamente diferentes, dependendo do poder e do grau de soberania de cada governo.
Poucos são os economistas que conseguem reconhecer e aceitar que este nunca foi um debate teórico, e que no campo da política econômica não existem verdades absolutas. Pelo contrário, qualquer decisão que seja tomada envolverá sempre uma arbitragem política, que deverá ser feita em função dos objetivos estratégicos e dos interesses particulares que cada governo se proponha defender ou priorizar. Basta olhar para o caso do governo brasileiro atual, paramilitar e ultraliberal, que foi apoiado incondicionalmente pelo mercado financeiro e por seus economistas “ortodoxos” que nunca se alarmaram ou protestaram quando o governo ultrapassou seu próprio “teto fiscal” em mais de 700 bilhões de reais. Bem diferente do comportamento alarmista que adotaram recentemente frente às primeiras medidas sociais anunciadas pelo governo progressista que acabou de ser eleito, e cujo custo não chega aos pés da “gastança eleitoral” apoiada pelos militares, pelos seus economistas e por todo o mercado financeiro.
No Brasil, essa “polifonia inconclusa” começou já na segunda metade do século XIX, com a oposição entre os “metalistas” e os “papelistas”, e suas diferentes visões a respeito do gasto público e da “neutralidade da moeda”. Uma divergência que se prolongou durante todo o século XX, colocando de um lado os monetaristas, ortodoxos, ou liberais, como Eugenio Gudin, Roberto Campos e seus discípulos; e do outro, os estruturalistas, keynesianos, ou desenvolvimentistas, como Roberto Simonsen, Celso Furtado e todos os seus discípulos, até nossos dias. Foi na vã tentativa de incorporar e conciliar os dois lados que Getúlio Vargas inaugurou uma solução prática que depois se tornou quase uma norma dos “governos desenvolvimentistas”, mesmo conservadores, colocando um “monetarista” ou “fiscalista ortodoxo” no Ministério da Fazenda, e um “desenvolvimentista” ou “gastador”, na presidência do BB, e depois de sua criação, no Ministério de Planejamento.
Essa disputa, entretanto, começou muito antes das agruras brasileiras. Não por acaso, a obra fundacional da Economia Política publicada por William Petty chamou-se “Tratado sobre impostos e contribuições”, e foi publicada em 1662 para dar conta dos desequilíbrios entre as “receitas” e as “responsabilidades fiscais” da Coroa Inglesa, envolvida naquele momento em várias guerras sucessivas com a Holanda, e logo em seguida, numa prolongada disputa militar com a França. E o mesmo se pode dizer a respeito da obra mais famosa de Adam Smith, “A riqueza das nações”, publicada em 1776, no momento exato em que a Grã-Bretanha enfrentava o problema da grande “perda fiscal” de sua principal colônia norte-americana.
Se recuarmos ainda mais no tempo, descobriremos que esta mesma questão ou disjuntiva se colocou para todos os grandes impérios ou poderes territoriais que se propuseram a aumentar sua produção de excedente econômico para poder expandir seus territórios. Senão vejamos, relendo de forma muito rápida um episódio da história chinesa, paradigmático e exemplar, que pode ajudar-nos a clarificar nosso argumento central sobre essa velha polêmica que volta a assombrar o cenário político brasileiro. No século XIV, depois de um longo período de fragmentação territorial e guerras intestinas, a China viveu um grande processo de centralização do poder, sob a Dinastia Ming (1368-1644), que foi responsável pela reorganização do Estado chinês e por um verdadeiro renascimento de sua cultura e civilização milenar. Também foi responsável pelo início de um movimento expansivo da China em várias direções, para dentro e para fora de seu espaço geopolítico imediato, sobretudo durante o reinado do imperador Yung-Lo. Tudo isto até a morte do imperador em 1424, quando a China suspendeu suas expedições marítimas e todas as suas guerras de conquista continental. Uma mudança de rumo que permanece até hoje como uma das grandes incógnitas da história universal. É difícil de acreditar, mas essa mudança de rumo – verdadeiramente histórica – esteve associada, de uma forma ou de outra, a uma “disputa fiscal” parecida com as que se reproduzem até hoje em nosso ambiente econômico.
Para entender o que estamos dizendo, voltemos ao reinado de Yung-lo (1360-1423), que foi um dos imperadores chineses com maior visão estratégica e expansionista da China. Foi ele que concluiu as obras do Grande Canal, comunicando o Mar da China e a antiga capital, Nanquim, com a região mais pobre do norte do império, e decidiu construir uma nova capital, que veio a ser Pequim. Um gigantesco “projeto desenvolvimentista” que mobilizou e empregou, durante muitos anos, milhares de trabalhadores, artesãos, soldados e arquitetos chineses. Além disso, Yung-Lo estendeu a hegemonia chinesa – política, econômica e cultural – em todas as direções, através das fronteiras territoriais da China, e ainda na direção dos Mares do Sul, do Oceano Indico, do Golfo Pérsico e da Costa Africana. Foi durante seu reinado que o Almirante Cheng Ho liderou seis grandes expedições navais que chegaram até a costa da África, quando os portugueses estavam recém-chegando a Ceuta. Mas durante todo seu reinado, as políticas “desenvolvimentistas” do Imperador Yung-Lo enfrentaram a oposição acirrada da elite econômica chinesa liderada por seu próprio ministro da Fazenda, Hsia Yüan-Chi, defensor implacável do “equilíbrio fiscal”. Sem lograr uma conciliação, o imperador Yung-Lo mandou prender o ministro em 1421. Mas logo depois o imperador morreu numa batalha, e seu sucessor, o imperador Chu Kao-Chih, tirou o velho ministro da cadeia e o recolocou no ministério das Finanças, com poder total para suspender todas as obras e expedições de Yung-Lo, tudo em nome da necessidade de cortar os gastos para conter a inflação e manter a credibilidade do império. E foi assim que o Império Ming perdeu seu fôlego expansivo e fechou-se sobre si mesmo, caindo no isolamento quase total durante quase quatro séculos.
Não é possível afirmar que a vitória da posição “fiscalista” do ministro Hsia Yüan-Chi contra a posição “expansionista” do imperador Yung-Lo atrasou em 600 anos a expansão global da economia e da civilização chinesas. Mas pode-se dizer, com toda certeza, que a vitória política e imposição das ideias “contencionistas” do ministro das finanças da China durante o reinado do imperador Chu Kao-Chin mudaram radicalmente o rumo da história chinesa depois de 1424. Naquele momento, como disse um historiador inglês, “para levar à frente a estratégia ‘desenvolvimentista’ de Yung-Lo, teria sido necessária uma sucessão de líderes com sua mesma visão vigorosa e estratégica, a visão de um construtor de impérios que não teve seguidores”.
Há duas principais lições, pelo menos, que podem ser extraídas dessa verdadeira “fábula chinesa”: a primeira é que toda e qualquer “escolha contencionista” de curto prazo envolve opções mais dramáticas e com consequências de longo prazo que podem afetar os caminhos futuros de um povo e até de uma civilização, como no caso chinês; e a segunda é que o sucesso de uma “escolha expansionista” depende quase inteiramente da existência de um governo e de um bloco de poder capazes de sustentar esta opção por um período prolongado de tempo, sempre orientados por uma “visão vigorosa e estratégica”, como diz o historiador inglês. Para avançar numa direção mais expansionista, o Brasil precisa de um governo com a disposição e o poder de transmitir à sociedade e aos seus “agentes econômicos” sua opção definitiva e incontornável pela conquista de uma sociedade mais justa e igualitária, mesmo enfrentando a resistência dos “operadores de mercado” (que, somados todos, não dão mais do que 1% da população brasileira, mesmo incluindo o pessoal do cafezinho e da limpeza de seus escritórios).
De uma vez por todas, há que se entender que essa pequena minoria afortunada da população não sente nenhum tipo de responsabilidade material ou moral pela “qualidade de vida” dos 30 a 40% dos brasileiros que passam fome e vivem na miséria ou na mais completa indigência. Na verdade, a maior parte da burguesia empresarial brasileira não necessita nem nunca necessitou aliar-se a seu próprio povo para obter sucesso com seus negócios e aumentar seus lucros privados, que crescem de forma geométrica mesmo nos períodos de baixo crescimento do PIB nacional. É como se existissem no Brasil dois universos paralelos e absolutamente incomunicáveis: num, vivem os pobres, os desempregados, os indigentes e os “condenados da terra” em geral; e no outro, vive uma burguesia muito satisfeita, sertaneja ou cosmopolita, mas ambas igualmente de costas para seu próprio povo.