Caros leitores,
É certo que a pandemia da COVID-19 trouxe consigo a necessidade de trazer novo enfoque ao tema da saúde, exigindo-se ainda uma atuação multilateral ativa para fortalecimento dos instrumentos de cada país para combater e evitar a disseminação de novas doenças.
Diante disso e à luz dos movimentos políticos recentes, trazemos hoje um artigo que analisa a questão do multilateralismo em termos de saúde na América Latina, em um momento que se promete um enfoque especial no desenvolvimento e na cooperação regional.
Esperamos que gostem e compartilhem!
Ygor Alonso é membro do Grupo de Pesquisa em Estado, Instituições e Análise Econômica do Direito (GPEIA/UFF).
A eleição de Lula como presidente do Brasil no último domingo consolida a tendência das recentes eleições em diversos países latino-americanos, que apontam para a retomada do que analistas políticos denominam uma nova ‘onda rosa’ nos governos da região. O resultado do pleito, somado às eleições, também em 2022, de Gustavo Boric, no Chile, e de Gustavo Petro, na Colômbia, juntamente com governos de AMLO no México (2018), Fernandez na Argentina (2019), Arce na Bolívia (2020), Santokhi no Suriname (2020), Ali na Guiana (2020), Castillo no Peru (2021), Xiomara em Honduras (2022), Maduro na Venezuela, Ortega na Nicarágua, e o histórico socialismo cubano, configura o que vem sendo chamado de ‘nova onda rosa latino-americana’.
Na primeira manifestação à nação, no mesmo dia da eleição, recordando fatos referindo-se à política externa de seus dois mandatos (2003-2010), Lula foi categórico:
(…) Brasil soberano, que falava de igual para igual com os países mais ricos e poderosos. E que ao mesmo tempo contribuía para o desenvolvimento dos países mais pobres. O Brasil que apoiou o desenvolvimento dos países africanos, por meio de cooperação, investimento e transferência de tecnologia. Que trabalhou pela integração da América do Sul, da América Latina e do Caribe, que fortaleceu o Mercosul, e ajudou a criar o G-20, a UnaSul, a Celac e os BRICS. Hoje nós estamos dizendo ao mundo que o Brasil está de volta. Que o Brasil é grande demais para ser relegado a esse triste papel de pária do mundo.
Neste contexto político novo, a partir de 2020, a saúde volta a ter importância crescente e ascendente, infelizmente devido a um dos maiores flagelos sanitários dos últimos 100 anos, a pandemia de Covid-19 que, ademais, afetou de forma particularmente desproporcional a América Latina, expondo e amplificando as já tremendamente iníquas condições sociais, econômicas, ambientais e sanitárias vigentes desde sempre.
Diversas organizações multilaterais regionais, organizações da sociedade civil, grupos de profissionais e muitos outros atores relevantes chamam a atenção para a necessidade urgente de transformações econômicas, sociais e ambientais – além da revisão profunda de políticas e práticas sanitárias – para fazer frente a ainda inacabada pandemia de Covid-19 e outras que se encontram, potencialmente, no horizonte global e regional. A cooperação internacional em saúde, dimensão essencial da diplomacia da saúde, têm papel fundamental, dada a importância que exige o enfrentamento compartilhado de uma enfermidade que, por suas características, não respeita fronteiras.
Para aproveitar e consolidar a ‘janela de oportunidades’ que se abre para uma ‘diplomacia da saúde progressista’ na região, os governos nacionais e as institucionalidades multilaterais regionais e sub-regionais precisam buscar, de imediato, por meio da diplomacia, uma agenda convergente de cooperação em saúde, capaz de colaborar na formulação e implementação de políticas sociais e abrangentes, resolutivas e respaldadas pela população.
Neste artigo, apontamos a potencial contribuição de um multilateralismo regional vigoroso no campo da saúde para fazer frente à crise sanitária vigente e às potenciais ameaças futuras, com base em experiências anteriores de um multilateralismo razoavelmente bem sucedido e no quadro explicativo do processo saúde-doença-cuidados vigente na região.
Saúde no marco das estruturas centrais das Nações Unidas
Identificar a presença da saúde no marco maior do multilateralismo global – as Nações Unidas e suas estruturas centrais de governança – serve como referência e moldura para posições e orientações de estruturas regionais e mesmo sub-regionais.
Desde a emergência da pandemia no início de 2020, a Assembleia Geral, o Conselho de Segurança, o Conselho Econômico Social (ECOSOC), o Conselho de Direitos Humanos, a Secretaria Geral e toda a gama de agências, programas e fundos das Nações Unidas ocuparam-se da saúde com maior intensidade que nunca, tendo como tema central (mas não exclusivo) a pandemia e suas consequências sobre todas as dimensões da vida social. Evidentemente, o eixo OMS e suas estruturas regionais, como a OPAS nas Américas, tiveram o maior protagonismo.
De 2003 a 2005, a AGNU adotou resoluções intituladas Fortalecendo a capacidade institucional global em saúde pública, deixando claro a crescente importância política do tema da saúde. A partir de 2008, a AGNU reconheceu a contribuição da Iniciativa sobre Política Exterior e Saúde Global e passou a adotar, todos os anos, resolução intitulada Saúde Global e Política Exterior. A ideia da resolução é simples: conferir ao tema da saúde importância política global, transcendendo assim os aspectos técnicos favorecidos pela OMS. A pandemia da Covid-19 demonstrou de maneira cabal que o tratamento da questão envolve todo o espectro político, econômico e social, ademais daqueles da competência da OMS.
Em 2021 e 2022, a pandemia da Covid-19 foi o principal assunto do Foro Político de Alto Nível (HLPF, nas siglas em inglês), instância encarregada de implementar a Agenda 2030 e seus ODS no plano global. O desafio é imenso, já se disse. Faltam muitas coisas para alcançar as metas até 2030, entre as quais a mais gritante é a absoluta falta de solidariedade. Na sessão de abertura do HLPF de 2022, Kailash Styarthi, Prêmio Nobel da Paz de 2014, disse: dos US$ 12 trilhões anunciados pelo G-7 para a Agenda Global de Ação[6], somente 0,13% foram alocados para os países de baixa renda (US$ 15,6 bilhões). Nem sequer meio por cento. Dos US$ 650 bilhões facilitados pelo FMI por meio de Direitos Especiais de Saque, foram destinados US$ 2.000 por criança europeias contra US$ 60 por criança africana. É apenas um exemplo das consideráveis dificuldades em levar adiante o projeto O mundo que queremos, da Rio+20, em 2012, ou o Transformando o nosso mundo, que deu origem à Agenda 2030 e os ODS, em 2015.
Na OMC, continua o impasse relativo à flexibilização dos direitos de propriedade intelectual com respeito a vacinas contra a Covid-19, bem como o de produtos de diagnóstico e terapêuticos, sobre o que divergem países em desenvolvimento e países industrializados. Para os primeiros, o que importa é assegurar acesso equitativo a todos os produtos necessários para combater a pandemia Covid-19, que ainda não acabou. Para os segundos, é necessário apresentar evidências de que o regime de propriedade intelectual em vigência (TRIPS), com as flexibilidades nele inseridas, dificultaria o acesso àqueles produtos.
Diplomacia da saúde e cooperação regional em saúde nas instituições multilaterais da América Latina
Para entender o bosque é preciso conhecer as árvores que o compõem. Por isso, analisamos a presença da cooperação internacional regional em saúde em diversos organismos e arranjos políticos vigentes na América Latina.
Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS)
A Agenda de Desenvolvimento Sustentável para as Américas 2018-2030 e o Plano Estratégico da OPAS 2020-2025 (Equidade: o Coração da Saúde), são os principais compromissos regionais acordados pelos Ministros da Saúde da região, no âmbito da OPAS. O recém eleito novo diretor da OPAS, o médico sanitarista brasileiro Jarbas Barbosa comprometeu-se com a implementação das propostas contidas em ambos documentos.
A Agenda de Saúde Sustentável para as Américas 2018-2030 (ASSA2030) é uma moldura que reflete o planejamento estratégico e político de mais alto nível nas Américas, definindo 11 objetivos.
Embora existam algumas áreas em que a Região estava fazendo bons progressos antes da pandemia (por exemplo, saúde neonatal e infantil e eliminação de doenças transmissíveis), outras exigirão esforços sustentados e acelerados para alcançar as metas estabelecidas para a região estipuladas no atual Plano Estratégico, a exemplo de AIDS, tuberculose, malária, suicídios, mortalidade materna e mortalidade por doenças não transmissíveis. A recuperação dos atrasos nos esquemas de vacinas para crianças e dos serviços de atenção à mulher, crianças e adolescentes ocupam o centro das prioridades continentais pós-pandemia.
Comissão Económica para América Latina e o Caribe (CEPAL)
A Cepal tem tido importante atuação durante a pandemia, apontando seu impacto multidimensional: sanitário, econômico e social. De outro lado, carrega a responsabilidade de monitorar e contribuir para a implementação da Agenda 2030 e seus ODS na região, o que trará impactos decisivos sobre a saúde coletiva e individual.
Neste sentido, é imprescindível referir as decisões e recomendações emanadas dos cinco Fóruns dos Países da América Latina e do Caribe sobre o Desenvolvimento Sustentável já realizados sob a coordenação da CEPAL.
A Comissão alerta para a necessidade da proteção social em saúde, sinalizando para a necessidade de novos modelos de financiamento de sistemas de saúde universais, abrangentes, sustentáveis e resilientes, embasados na estratégia da Atenção Primaria em Saúde. Ademais, a Cepal tem defendido uma saúde de qualidade como condição necessária para o crescimento com alta produtividade, competitividade global e inclusão social na região, que também carece de um novo enfoque em matéria de investimentos, inovação, e estratégia industrial.
Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos (CELAC)
O Plano de Autossuficiência em Saúde para América Latina e Caribe, desenvolvido pela Cepal, a pedido da Celac, é uma proposta concreta que prioriza sete linhas de ação: fortalecer os mecanismos de compra internacional conjunta de vacinas e medicamentos essenciais; utilizar os mecanismos de compras públicas de medicamentos para o desenvolvimento de mercados regionais; criar consórcios para o desenvolvimento e produção de vacinas; implementar plataforma regional para ensaios clínicos; aproveitar as flexibilidades regulatórias para acessar a propriedade intelectual; fortalecer os mecanismos de convergência e reconhecimento regulatório; e fortalecer os sistemas primários de saúde para o acesso universal às vacinas e sua distribuição equitativa.
Como se observa, muitas das linhas do Plano proposto pela Cepal à Celac são convergentes com propostas que circulam em outros organismos multilaterais regionais, cobrando maior coordenação entre tais organizações.
Conselho de Ministros da América Central e da República Dominicana (COMISCA)
Das iniciativas de integração sub-regional, talvez a América Central seja aquela que possui um marco institucional multilateral que aborda aspectos econômicos, sociais, ambientais, culturais e sanitários de forma mais integrada. Nesse sentido, o Comisca desenvolveu um esquema de governança com importantes planos e atividades de cooperação, superando as diferenças ideológicas e colocando a saúde como um aspecto fundamental para a cooperação e mobilização de fundos. Talvez o fato de serem países pequenos e simétricos em termos de desenvolvimento os oriente de forma mais assertiva à ações comuns e de cooperação. Da mesma forma, o fato de ter uma Secretaria Executiva permanente permite aproveitar oportunidades de mobilização de recursos, muitas vezes não utilizados em iniciativas de integração em saúde com secretarias rotativas entre seus Estados membros.
O Plano de Saúde para América Central e República Dominicana 2021-2025 define quatro eixos estratégicos: institucionalidade, governança e gestão dos sistemas de saúde no âmbito regional, com o ciclo de políticas públicas baseado na abordagem da determinação social; iniciativas regionais para uma vida saudável com promoção da saúde, população e meio ambiente, com princípios de equidade para igualdade de gênero no curso da vida e interculturalidade; capacidade dos sistemas de saúde baseados na APS, com abordagem centrada em inovação, equidade, eficiência, qualidade e participação social; capacidade de resposta regional às mudanças climáticas, emergências e desastres e processos migratórios.
A Comisca teve importante desempenho durante a pandemia, implementando atividades de cooperação em saúde, a mais importante delas a negociação de melhores preços de medicamentos e insumos estratégicos de saúde.
MERCOSUL
No Mercosul, maior bloco económico da região, as diferenças políticas e de interesses entre seus Estados-Membro tem se acentuado, pedindo sua modernização e chegando a questionar sua continuidade. Contudo, na XLIX Reunião de Ministros do Mercosul, em novembro de 2021, foi aprovada declaração que aborda a expansão da capacidade produtiva regional de medicamentos, imunizantes e tecnologias de saúde. A declaração dos ministros concordou em criar o Comitê Ad Hoc para promover a expansão da capacidade produtiva regional, analisar e mapear as capacidades produtivas e de pesquisa e desenvolvimento e avaliar iniciativas para melhorar o acesso aos mesmos. Busca possíveis complementaridades entre os membros do Mercosul e possibilidades de cooperação, especialmente dos centros regionais de desenvolvimento e produção de vacinas de mRNA e outras tecnologias.
Organismo Andino de Saúde Convenio Hipólito Unanue – Oras/Conhu
O Oras/Conhu, por meio de uma estratégia de gestão de conhecimento, busca subsidiar a tomada de decisões e políticas com um conjunto importante de webinarios. A estrutura institucional do organismo tem permitido a mobilização de fundos da cooperação em projetos de vigilância genômica, e em temáticas com sinergias com outras iniciativas de integração, como em saúde indígena e saúde nas fronteiras com o Organismo do Tratado Cooperação Amazónica (OTCA) e com o Mercosul, por exemplo.
Em síntese, Tobar (2021), analisando o multilateralismo regional sul-americano em saúde, conclui que: “Mesmo quando têm um caráter que os remete a territórios ou regiões comuns, as medidas promovidas não conversam entre si, duplicam-se (enfraquecem-se) e isso corresponde, em certa medida, às grandes diferenças ideológicas entre os Chefes de Estado e de Governo dos países da região”.
Uma agenda e uma institucionalidade para a diplomacia da saúde na América Latina
A emergência de um elenco de novos governos progressistas na América Latina abre uma janela de oportunidades pelos próximos 2 a 3 anos para a construção de programas de cooperação para o desenvolvimento em torno da Agenda 2030 e da saúde, em particular. As orientações, prioridades e acordos já estabelecidos nas instituições e arranjos políticos regionais e sub-regionais revisados acima indicam diversos pontos de convergência a serem explorados para garantir a maior efetividade possível para todos e cada um.
Institucionalidade da governança
Para alcançar a maior efetividade possível é necessário construir uma institucionalidade que dê conta da envergadura da cooperação pretendida, inclusive em saúde, evidentemente aproveitando as estruturas e arranjos já existentes.
Reconhecendo-se a importância e experiência de organismos regionais do sistema interamericano – a CEPAL na esfera econômico-social e do desenvolvimento, e a OPAS na esfera da saúde – é lógico que elas sejam os locus políticos e técnicos a ancorar os processos de negociação e implementação da cooperação sócio-sanitária.
A harmonização de agendas de cooperação em saúde entre os diversos entes multilaterais subregionais – Celac, Mercosul, ORAS-Cohnu, Comisca, uma Unasul talvez recriada – seria extremamente benéfica para alcançar objetivos relevantes na cooperação para o desenvolvimento e a saúde. A realização de uma ampla reunião de consulta entre estas entidades, governos nacionais e sociedade civil, ancorada pea Cepal e OPAS, poderia ser um começo promissor.