Caros leitores,
Diante do grave contexto econômico que vivemos, com a retomada do país ao Mapa da Fome e as consequências da inflação sentidas principalmente pela camada mais pobre da sociedade, uma discussão acerca da realidade macro do Brasil representa elemento essencial para compreender a conjuntura atual da desigualdade e seus efeitos no cotidiano da população.
Diante disso, trazemos hoje os dados do relatório elaborado pelo "World Inequality Lab" que demonstra o grau de desigualdade de nosso país, incluindo alguns fatores que podem explicar o grave cenário e as consequências em diferentes escalas.
Esperamos que gostem e compartilhem!
Ygor Alonso é membro do Grupo de Pesquisa em Estado, Instituições e Análise Econômica do Direito (GPEIA/UFF).
O Brasil permanece um dos países com maior desigualdade social e de renda do mundo, segundo o novo estudo lançado mundialmente pelo World Inequality Lab (Laboratório das Desigualdades Mundiais), que integra a Escola de Economia de Paris e é codirigido pelo economista francês Thomas Piketty, autor do bestseller O Capital no Século 21, entre outros livros sobre o tema.
O novo Relatório sobre as Desigualdades Mundiais é o segundo realizado desde 2018 e teve a colaboração de cerca de uma centena de pesquisadores internacionais.
O documento de mais de 200 páginas inclui análise sobre o impacto da pandemia de covid-19, que exacerbou o aumento da fatia dos bilionários no total da riqueza global. Pela primeira vez o estudo inclui dados sobre as desigualdades de gênero e ecológicas (a pegada de carbono entre países ricos e pobres, mas também entre as categorias de renda).
O estudo se refere ao Brasil como "um dos países mais desiguais do mundo" e diz que a discrepância de renda no país "é marcada por níveis extremos há muito tempo".
O texto afirma que as diferenças salariais no país foram reduzidas desde 2000, graças sobretudo à política de transferência de renda do Bolsa Família e ao aumento do salário mínimo. Ao mesmo tempo, os níveis extremos de desigualdade patrimonial no país continuaram aumentando desde meados dos anos 90.
"Entre os mais de 100 países analisados no relatório, o Brasil é um dos mais desiguais. Após a África do Sul, é o segundo com maiores desigualdades entre os membros do G20", disse à BBC News Brasil Lucas Chancel, principal autor do relatório e codiretor do Laboratório das Desigualdades Mundiais.
A seguir, quatro dados do novo relatório que mostram por que a desigualdade de renda e de patrimônio no Brasil é uma das maiores do mundo:
1. Os 10% mais ricos no Brasil ganham quase 59% da renda nacional total
No Brasil, a renda média nacional da população adulta, em termos de paridade de poder de compra (PPP, na sigla em inglês), é de 14 mil euros, o equivalente a R$ 43,7 mil, nos cálculos dos autores do estudo. Os 10% mais ricos no Brasil, com renda de 81,9 mil euros (R$ 253,9 mil em PPP), representam 58,6% da renda total do país. O estudo afirma que as estatísticas disponíveis indicam que os 10% mais ricos no Brasil sempre ganharam mais da metade da renda nacional.
O Chile, que não integra o G20, tem números equivalentes (58,9%) ao Brasil em relação à fatia de renda dos mais ricos. O país sofreu nos dois últimos anos uma onda de violentos protestos por melhores condições de vida. Nos Estados Unidos, país com fortes desigualdades sociais, os 10% mais ricos ganham 45% da renda geral do país, ressalta Chancel. Na China, esse índice é de 42%. Na Europa, ele se situa entre 30% e 35%, completa o economista.
Já o 1% mais rico no Brasil, com uma média de renda de 372 mil euros (quase R$ 1,2 milhão), em paridade de poder de compra, leva mais de um quarto (26,6%) dos ganhos nacionais.
2. Os 50% mais pobres ganham 29 vezes menos do que os 10% mais ricos
A metade da população brasileira mais pobre só ganha 10% do total da renda nacional. Na prática, isso significa que os 50% mais pobres ganham 29 vezes menos do que recebem os 10% mais ricos no Brasil. Na França, essa proporção é de apenas 7 vezes.
"O Bolsa Família conseguiu reduzir uma parte das desigualdades nas camadas mais pobres da população", diz Chancel. Mas em razão da falta de uma reforma tributária aprofundada, além da agrária, a desigualdade de renda no Brasil "permaneceu virtualmente inalterada", já que a discrepância se mantém em patamares muito elevados, aponta o estudo.
3. A metade mais pobre no Brasil possui menos de 1% da riqueza do país
As desigualdades patrimoniais são ainda maiores do que as de renda no Brasil e são uma das mais altas do mundo. Em 2021, os 50% mais pobres possuem apenas 0,4% da riqueza brasileira (ativos financeiros e não financeiros, como propriedades imobiliárias). Na Argentina, essa fatia da população possui 5,7% da fortuna do país.
4. O 1% mais rico possui quase a metade da fortuna patrimonial brasileira
Os 10% mais ricos no Brasil possuem quase 80% do patrimônio privado do país. A concentração de capital é ainda maior na faixa dos ultra-ricos, o 1% mais abastado da população, que possui, em 2021, praticamente a metade (48,9%) da riqueza nacional. Nos Estados Unidos, o 1% mais rico detém 35% da fortuna americana.
O relatório afirma que a desigualdade de riqueza cresceu no Brasil desde meados dos anos 90, em um contexto de desregulação financeira e falta de uma reforma fiscal mais ampla.
De acordo com o estudo, o patrimônio do 1% da população mais rica do planeta vem crescendo entre 6% e 9% ao ano desde 1995, enquanto, na média, o crescimento de toda a riqueza gerada no mundo foi de 3,2% ao ano. Esse aumento global, diz o relatório, foi exacerbado durante a pandemia de Covid-19. O Brasil seguiu essa tendência: o patrimônio do 1% mais rico no Brasil passou de 48,5% em 2019 para 48,9% do patrimônio total em 2021, afirma Chancel, que considera a progressão "significativa".
Segundo ele, os ultra-ricos no mundo aumentaram suas fortunas porque há uma desconexão entre a economia real, duramente afetada pela crise sanitária, e as bolsas de valores.
Sistema tributário
O estudo sobre a Desigualdade Mundial sugere opções de políticas para redistribuir renda e riqueza, como a taxação progressiva de multimilionários, o que permitiria investimentos em educação, saúde e transição ecológica. O texto defende que o surgimento de Estados de bem-estar social no século 20 estava ligado ao aumento de impostos progressivos.
O principal autor do estudo à BBC News Brasil defende que a falta de uma reforma fiscal ambiciosa no Brasil, que tornasse o sistema tributário mais progressivo, dificulta a redução das desigualdades.
O Brasil é um dos poucos países no mundo que não cobra imposto sobre dividendos (uma parcela do lucro das empresas distribuído aos acionistas), por exemplo.
Para Lucas Chancel, a criação de um imposto sobre dividendos, paralisada no Congresso, é uma boa iniciativa, mas é necessário ir além. Ele sugere o aumento da tributação sobre a herança no Brasil (na França, a alíquota pode chegar a 60%) e a taxação progressiva do estoque de capital, o que poderia incluir um imposto sobre a fortunaEle diz que o Bolsa Família, uma iniciativa positiva que contribuiu na redução de parte das desigualdades, acabou sendo pago, em parte, pela classe média e camadas populares. Isso porque o programa de transferência de renda não foi acompanhado de uma reforma fiscal que aumentasse a contribuição da elite econômica de acordo com suas capacidades.
O país, diz ele, acaba sendo "um exemplo infeliz da adoção de um programa de redistribuição de renda sem modificar estruturalmente, ao mesmo tempo, quem vai pagar o imposto" que financia a medida, ressalta. O mesmo ocorre agora em relação ao novo Auxílio Brasil.
Dados globais do estudo
Na Argentina, que vem enfrentando graves crises econômicas, as desigualdades se situam um pouco abaixo da média na América Latina, embora permaneçam elevadas, ressalta do estudo. Os 10% mais ricos do país ganham quase 43% da renda nacional e possuem 58,2% da fortuna (no Brasil esse número é de 79,8%).
As regiões com maiores desigualdades sociais no mundo são a África e o Oriente Médio. Na Europa, a renda dos 10% mais ricos representa cerca de 36%% do total, enquanto no Oriente Médio e Norte da África, ela atinge 58%, número similar ao do Brasil.
Os 10% mais ricos do mundo ganham 52% da renda mundial, enquanto os 50% mais pobres recebe apenas 8,5% do total. As diferenças são ainda maiores em relação ao patrimônio: a metade mais pobre possui apenas 2% da riqueza mundial (no Brasil é menos de 1%), enquanto os 10% mais abastados possuem 76% da fortuna global.
Desde 1995, o 1% mais rico do mundo levou 38% do aumento da riqueza global, enquanto os 50% mais pobres ficaram com apenas 2% da fortuna adicional acumulada no mundo nesse período.
A pandemia de covid-19 exacerbou as disparidades. O ano passado marcou o maior aumento na fortuna dos bilionários, que cresceu US$ 3,7 trilhões, o equivalente aos orçamentos de saúde do mundo todo, segundo o relatório.
O estudo afirma que após três décadas de globalização comercial e financeira, as desigualdades globais permanecem extremamente significativas. Em 2021, elas estão no mesmo nível do que eram no início do século 20, época do chamado imperialismo moderno ocidental, com colônias e territórios que criaram disparidades econômicas entre os países. Além disso, a renda dos 50% mais pobres no mundo hoje é a metade do que era em 1820.
O relatório também leva em conta a desigualdade de renda relacionada ao gênero. No mundo, as mulheres ganham, em geral, um terço dos homens. O Brasil tem desempenho igual à média dos países ricos da Europa: os salários da população feminina brasileira representam 38% da renda total do país.