Caros leitores,
A ascensão da China na geopolítica global e o aumento de sua influência trouxe consigo diferentes questões importantes a serem debatidas, no qual se busca analisar especialmente o papel do Brasil nesta relação, especialmente em face do antagonismo existente entre a potência e os EUA.
Nessa relação, trazemos hoje uma entrevista com o Professor de Economia Política Internacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) José Luis Fiori, em que este reflete sobre aa participação chinesa no jogo global e os possíveis efeitos a serem sentidos nacionalmente falando.
Esperamos que gostem e compartilhem!
Ygor Alonso é membro do Grupo de Pesquisa em Estado, Instituições e Análise Econômica do Direito (GPEIA/UFF).
São indiscutíveis os impactos que a ascensão da China causa no mundo. Independentemente do que representa seu sistema econômico e político, o que, por si só já conforma todo um debate, a China lança desafios novos ao jogar as regras do jogo e, com isso, o conseguir proeminência. Como você entende o papel dos chineses nessa relação de hostilidade política e militar e de complementaridade/concorrência econômica com os EUA, bem como na atual parceria estratégica com a Rússia?
Uma coisa parece que já está consolidada: o novo núcleo central da geopolítica mundial do século XXI estará composto, pelo menos, por EUA, China e Rússia, três grandes gigantes territoriais e populacionais que controlam sozinhos cerca de um terço e um quarto do território e da população mundiais, respectivamente. Mas ainda não está claro se a Europa conseguirá recuperar sua posição de grande potência, e tampouco está claro o lugar que será ocupado pela Índia neste novo núcleo do poder mundial. Parece irreversível, entretanto, a ascensão do Irã no Oriente Médio, numa relação cada vez mais estreita com China e Rússia.
Assim mesmo, não há dúvida de que a grande incógnita que desafia hoje a imaginação dos analistas é que relação se estabelecerá entre China e EUA, ou mais amplamente, entre a China e as grandes potências ocidentais, envolvendo um quebra-cabeça no qual China e EUA aparecem ao mesmo tempo como dois grandes Estados nacionais e duas grandes economias capitalistas, competitivas e complementares, que seguem as velhas regras estabelecidas pela Paz de Westfália de 1648, mas que ao mesmo tempo são a “cabeça” de dois grandes universos civilizatórios. A China não tem hoje a capacidade, nem o objetivo de substituir os EUA como grande império militar global. No entanto, a China já é hoje uma potência econômica global e é um parceiro comercial e financeiro indispensável para todos os países do mundo. E ao mesmo tempo, os EUA não têm mais como excluí-los da economia capitalista, e por isso terão que conviver e competir com a China segundo as mesmas regras que utilizaram até hoje para impor sua própria supremacia econômica mundial. Além disso, você tem razão, o grande projeto chinês de investimentos em infraestrutura – o Belt Road –, que já envolve cerca de 65 países da Ásia, África, Oriente Médio, Europa e até América Latina, é sem dúvida uma reprodução exponencial do modelo britânico de expansão imperial do século XIX, que avançou liderado pela difusão de suas ferrovias e bases de conexão marítimas, apoiados pelo poder financeiro da City. E isto é talvez o que mais assusta os anglo-americanos que dominaram o mundo nos últimos 300 anos: a rapidez e eficiência com que a China vem reproduzindo seus velhos caminhos, mas utilizando-se de uma diplomacia inteiramente diferente, até porque o chineses não têm nenhum tipo de bandeira religiosa, nem demonstram nenhum tipo de interesse de converter o mundo ocidental aos seus ideais confucianos. Pelo contrário, professam um profundo desprezo pela incapacidade ocidental de compreender sua civilização. Neste sentido, a incorporação da China ao sistema interestatal e seu sucesso na economia capitalista mundial colocam algumas questões ou desafios quase incompreensíveis para a arrogância ocidental e para o fundamentalismo judaico-cristão:
1. Do ponto de vista chinês, o Estado não está a serviço do desenvolvimento capitalista; pelo contrário, é o desenvolvimento capitalista e o próprio Estado chinês que estão a serviço de uma civilização milenar que já se considera o pináculo da história humana.
2. Para os chineses, a democracia ocidental é apenas um fenômeno datado e circunscrito do ponto de vista temporal e territorial. E, portanto, não só não é inevitável, como pode entrar em crise e ser superada ou abandonada muito antes que os ocidentais possam acreditar.
3. A China não parece estar se propondo como um modelo alternativo, mas não há dúvida de que seu sucesso econômico, tecnológico e militar, quando comparado ao dos demais países, transforma-a, inevitavelmente, numa referência para a periferia atrasada do resto do mundo.
4. Por fim, o ingresso do “Estado-civilização” chinês no sistema interestatal capitalista deixa uma pergunta sem resposta no horizonte deste século XXI: a China se submeterá inteiramente ao sistema de Westfália, ou será Westfália que terá que se adaptar ao sistema “hierárquico-tributário” milenar do mundo sinocêntrico?
Deste ponto de vista, aliás, não seria um total absurdo imaginar um futuro em que o mundo eurocêntrico acabasse abandonando aos poucos suas convicções “westfalianas”, aceitando cada vez mais o modelo “hierárquico-tributário” chinês, e neste caso, que o sistema mundial acabasse adotando no futuro a forma de dois ou três grandes “impérios do meio”, com algumas réplicas inferiores.
Como você vislumbra o Brasil nessa encruzilhada?
Entre 2003 e 2014, o Brasil teve uma política externa que procurou aumentar seus “graus de soberania” frente às “grandes potências”, e dentro do sistema internacional como um todo, por meio da sua liderança do processo de integração sul-americana e de alianças estabelecidas fora do continente americano, sobretudo no caso da criação do grupo econômico Brics. Em 2014, o Brasil já havia ingressado no pequeno grupo dos Estados e economias nacionais que exercem liderança nas suas próprias regiões, e foi por isso – entre outras coisas – que começou a sofrer as consequências da sua nova posição na hierarquia mundial, ingressando num novo patamar de competição, cada vez mais feroz, com as grandes potências que lutam permanentemente entre si pelo poder e pela riqueza mundiais.
Esse foi um momento crucial da história recente do Brasil, e para seguir em frente, o que não aconteceu. Pelo contrário, uma parte da elite civil e militar, e da própria sociedade brasileira, decidiu recuar e pagar o preço da sua decisão. Optaram pelo caminho do “golpe de Estado” e depois redobraram sua aposta, numa coalizão formada às pressas, que culminou com a instalação de um governo “paramilitar” e de extrema-direita, que vem se propondo a mudar radicalmente o rumo da política externa do Brasil, em nome de uma cruzada ridícula contra o comunismo e de uma proposta absurda de “salvação da civilização judaico-cristã”. No entanto, o que mais chama atenção no meio da uma grande balbúrdia retórica é o fato de essa coalizão que capturou o governo não conseguir dizer minimamente qual é seu projeto para o Brasil. Os militares, que são a maioria dentro do governo, quando falam, é para agredir ou lançar palavras de ordem desconexas e inoportunas. Os religiosos fundamentalistas recitam versículos bíblicos, e parece que vivem cegados pelas suas obsessões sexuais. Os juízes e procuradores que participaram do golpe e da “operação Bolsonaro” não conseguem enxergar um palmo além do seu nariz provinciano. E, por fim, os financistas e os tecnocratas amigos do ministro da Economia parecem robôs de uma ideia só.
Mesmo assim, é possível deduzir para onde apontam algumas iniciativas desconexas deste governo a partir do velho sonho das elites liberais-exportadoras do passado de se transformarem numa espécie de dominium econômico ocidental. Roberto Campos já falava do projeto de tornar o Brasil um grande Canadá, mas hoje os Estados Unidos defendem o nacionalismo econômico, praticam uma política altamente protecionista e não se submeteriam jamais a nenhum tipo de acordo que prejudicasse o interesse dos seus produtores nacionais nem muito menos assumiriam a responsabilidade de tutelar um país com as dimensões e o nível de desigualdade do Brasil, ainda por cima com uma economia agroexportadora que compete com a sua.
Do meu ponto de vista, se este governo de extrema-direita e “paramilitar” – que foi instalado no Brasil – insistir em levar à frente, a “ferro e fogo”, esse projeto de autotransformação num dominium, ele deverá destruir quase tudo o que foi feito nos últimos noventa anos da história da industrialização brasileira para se transformar num mero fornecedor de alimentos, de minerais estratégicos e de petróleo para as grandes potências. E se, além disso, também levar à frente seu projeto de “protetorado militar”, estará acorrentando a nação brasileira à humilhação de bater continência para a bandeira estadunidense. Uma traição que deixará uma marca, causando um dano irreparável à autoestima do povo brasileiro, a menos que ele se levante e volte a caminhar com suas próprias pernas. Quando essa hora chegar, será fundamental que algumas decisões fundamentais sejam tomadas e que se tenha em mente um novo projeto de longo prazo para o país, um projeto capaz de se sustentar com seus próprios apoios internos, sem recuar nem esmorecer – lembrando sempre que todos os povos que conseguiram superar grandes catástrofes para chegar a ser grandes nações tiveram primeiro que assumir o controle da sua soberania, para assim poder definir os objetivos e o futuro que desejavam para si mesmos.
Você tem se referido em algumas das suas palestras recentes ao seu novo livro, que se chama A síndrome de Babel e a disputa do poder global.
Sim, com certeza. É um livro que reúne em torno de quarenta ou cinquenta artigos que escrevi sobre a conjuntura nacional e internacional destes últimos cinco anos. Eu uso o mito da Torre de Babel para refletir sobre o comportamento estadunidense, nestes últimos anos em que desceu do alto do seu poder imperial global para destruir a ordem liberal mundial que eles mesmos haviam instaurado. E faço uma analogia desse comportamento com o comportamento de Deus, no mito de Babel, que desce dos céus para destruir a torre que os homens estavam construindo para alcançar o céu e se igualar ao poder divino. Sugiro a hipótese de que os Estados Unidos também estão se sentindo ameaçados pelas suas próprias “criaturas”, e que por isso decidiram abandonar seu “universalismo moral”, e seu velho projeto de “conversão” dos povos, e passaram a atacar o sistema multilateral que haviam criado, se desfazendo das suas velhas alianças e mantendo ativa a divisão entre Estados e nações. Como também jogando os povos uns contra os outros e dissolvendo todo tipo de bloco ou de coalizão dos Estados que possa ameaçar o poder estadunidense, como no caso exemplar da União Europeia, que os próprios Estados Unidos haviam ajudado a criar, e que hoje vem sendo desmoralizada e boicotada sistematicamente pelo governo de Donald Trump, mas também de todas as demais instituições que vêm sendo ocupadas pelas novas potências que crescem rapidamente à sombra da expansão do poder estadunidense.
Mas agora especulando um pouco sobre o futuro, já no início de 2021 e da nova administração democrata de Joe Biden: quais são suas expectativas ou previsões desde o ponto de vista de sua pesquisa teórica e histórica?
Neste ponto, o primeiro que se deve ter claro é que o mundo já não voltará mais atrás, e que as relações que foram desfeitas, as instituições que foram destruídas e os compromissos que não foram cumpridos pelo governo de Donald Trump já não poderão mais ser reconstruídos e refeitos como se nada tivesse ocorrido. Depois de quatro anos, os Estados Unidos perderam sua credibilidade mesmo frente aos seus aliados mais antigos e permanentes. E apesar das declarações calorosas de amizade de Joe Biden, ninguém mais pode ter certeza de que o próprio Trump, ou qualquer outro partidário de suas posições, não será reeleito daqui a quatro anos, retomando o mesmo caminho do antigo presidente. Além disto, pesa sobre a cabeça dos democratas, e sobre o futuro do projeto de liderança internacional do governo de Biden, o balanço do expansionismo agressivo dos Estados Unidos durante as quase três décadas de vigência do poder unilateral e do projeto “liberal-cosmopolita” dos norte-americanos, fosse sob governos republicanos, fosse sob governos democratas. Basta lembrar que da declaração da “guerra global ao terrorismo”, em 2001, os Estados Unidos fizeram intervenções militares em 24 países e fizeram 100 mil bombardeios aéreos sobre países do que chamaram de Grande Médio Oriente.
Neste momento, uma coisa é certa e tem que ser considerada ao se calcular o futuro imediato da proposta internacional de Joe Biden: o mundo mudou demais e não voltará mais atrás, e não por culpa dos extraordinários erros do governo de Donald Trump. O projeto “liberal-cosmopolita” já não tem mais o mesmo apelo do passado; a utopia da globalização já não exerce o mesmo atrativo nem tem capacidade de prometer a mesma felicidade da década de 90; o Ocidente já não tem mais como eliminar ou submeter a civilização chinesa. Somando tudo, o que se pode prever com razoável grau de certeza é que o governo Biden será um governo fraco, e que o mundo atravessará os próximos anos sem ter mais um líder arbitral. Com tudo isto, o futuro do governo Biden, e de certa forma, da própria humanidade, dependerá muitíssimo da capacidade do governo americano e de todas as grandes potências ocidentais, de entender e aceitar o fato de que acabou a exclusividade do sucesso econômico liberal do Ocidente; e o que é talvez ainda mais importante e difícil de aceitar: que acabou definitivamente o monopólio moral da “civilização ocidental”.
Por fim, professor titular, aposentado, mas ainda muito ativo, qual seria o balanço da sua vida e obra?
Me aposentei como professor universitário, mas não me aposentei nem me aposentarei jamais como intelectual. Sempre pensei comigo mesmo que o intelectual é um ser que nasce e vive movido por uma eterna curiosidade e paixão pelo conhecimento, como a que que tiveram, por exemplo, os gregos e os renascentistas, para dar apenas dois exemplos. Agora, bem, com relação ao balanço que me pedem que faça da “minha vida” e da “minha obra”, prefiro pensar que “minha vida” é a que estou vivendo neste momento e “minha obra” é a que gostaria de escrever no futuro.
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