web counter free

quarta-feira, 9 de junho de 2021

Privatização da Eletrobras: a crise contratada

Caros leitores,

É certo a importância que o setor energético dispõe nas mais diversas esferas da vida social, em uma escala potencializada em razão da pandemia, em que a dependência pelo acesso digital e, logo, por uma manutenção irrestrita da energia consiste em caráter mandatório. Com os debates sobre a dependência energética para com o setor hidrelétrico, acrescido da possibilidade de racionamento, a concepção de privatização da Eletrobras assume, ainda mais, uma percepção polêmica.

Diante disso, na notícia de hoje, buscamos analisar criticamente essa perspectiva de privatização do setor elétrico, entendido sob um prisma de essencialidade para a sociedade. Trazendo consigo uma perspectiva histórica, que parte desde a criação da CHESF em 1945, busca-se conceber quais são as possíveis consequências que podem surgir dessa realidade.

Ygor Alonso é membro do Grupo de Pesquisa em Estado, Instituições e Análise Econômica do Direito (GPEIA/UFF).

A garantia do abastecimento da energia necessária para o desenvolvimento econômico e para o bem-estar da sociedade é uma preocupação central de qualquer Estado Nacional ao redor do mundo. 

O Estado, independentemente da sua maior ou menor participação direta na garantia do suprimento, é o garantidor final da segurança energética. Sobre ele, Estado, em particular o Governo de plantão, é que sempre recai a responsabilidade das crises de abastecimento. Crises que cobram um custo político elevado e impõem fragorosas derrotas eleitorais àqueles que têm a obrigação de evitar esses desastres energéticos e não o fazem.

No Brasil está em curso a mudança de política energética mais radical dos últimos noventa anos. A privatização da Eletrobras representa uma inflexão drástica na histórica e bem-sucedida estratégia de garantia do abastecimento energético do Estado brasileiro iniciada nos anos 1930s.

Primeiramente regulatória, mediante a implantação do Código de Águas em 1934, e em seguida produtiva, mediante a criação da CHESF em 1945, a intervenção do Estado se tornou desde então fundamental na garantia do suprimento elétrico necessário para o desenvolvimento econômico do País. O reconhecimento de que o setor privado não era capaz de suprir a energia elétrica demandada pela forte industrialização e urbanização em curso sustentou durante décadas essa intervenção.

O processo de desestatização do setor elétrico brasileiro iniciado nos anos 1990s não alterou esse quadro e, concretamente, se manteve o papel do Estado de garantidor final da segurança do abastecimento elétrico. A tentativa de transferir essa responsabilidade para o setor privado gerou o maior desastre elétrico brasileiro que foi o racionamento de 2001 e desde então o Estado brasileiro reteve, de uma forma ou de outra, o seu papel estratégico na garantia da segurança energética do País. A Eletrobras, recurso crucial na execução desse papel, sustentou a expansão estratégica do setor, atuando sozinha ou em parcerias que alavancaram o investimento privado. Processo esse que culminou com a gigantesca transferência de renda da estatal para os consumidores mediante a Medida Provisória 579 de 2012 que viabilizou uma redução das tarifas que até hoje as sustenta em níveis administráveis. Mesmo depois dessa brutal queda de receitas, a estatal ainda manteve investimentos anuais da ordem de R $10 bilhões por ano ao longo de 2013, 2014 e 2015.

A partir de 2016, a Eletrobras é retirada do jogo, dando início à preparação da sua privatização. Aqui, como nos anos 1990s, retira-se o Estado para abrir espaço para a iniciativa privada. Retirada essa que gerou o contexto de paralisia e impotência, para não dizer de estupidez, que pariu o racionamento de 2001. A tragédia se repete como farsa? Pior. Dada a mudança do cenário e dos atores no palco – mais drástico, o primeiro, mais incompetentes e canastrões, os segundos -, a repetição nos leva ao pior dos mundos: A tragédia que se repete sob a farsa dos agentes e das instituições que se desmancham.

A decisão de abandonar completamente a estratégia histórica, dada a sua radicalidade, necessita de diagnóstico correto, projeto qualificado e implementação consistente; sob o risco de jogar o país em uma gigantesca crise energética, como aconteceu há 20 anos.

Porém, não é isso que se observa.

Diante da maior transformação do setor elétrico no mundo e no Brasil, representada pela transição energética, portadora de incertezas, riscos e conflitos que impõem a presença do Estado, único ente capaz de reduzir essas incertezas e riscos e gerir esses conflitos, o que se propõe é justamente o afastamento do Estado.

Considerando que o contexto de elevadas incertezas, riscos e conflitos é brutalmente agravado pela dramática crise econômica advinda da pandemia, o afastamento do Estado nesse momento constitui uma omissão irresponsável que contrata uma crise de abastecimento de consequências inimagináveis.

O modelo hidráulico brasileiro está simplesmente se desmanchando, o que, diferentemente do que alguns imaginam, também nos coloca no jogo da transição para as novas renováveis (eólica e solar); e não na contramão da trajetória mundial de descarbonização, mediante o recurso à forte ampliação da presença das térmicas na matriz elétrica brasileira. Cabe notar que essa ampliação é a verdadeira jabuticaba energética brasileira, já trazendo consigo o prazo de validade vencido, e, portanto, a impossibilidade de ser o pilar de sustentação da implantação da estrutura gasífera do país.

Trocando em miúdos, o nosso problema não é diferente do resto do mundo. Ao fim e ao cabo é o mesmo: como acelerar a transição para as energias renováveis, gerando emprego, renda e retomada econômica. Esse é o problema central a ser resolvido pela política pública voltada para o setor elétrico brasileiro.

E aqui, querendo ou não, o Estado joga um papel fundamental, reduzindo incertezas e riscos e gerindo conflitos; trazendo complexidade econômica e tensões sociais e políticas para patamares possíveis de serem manejados pelos agentes econômicos, políticos e sociais.

No entanto, o diagnóstico do Governo identifica como principal problema do setor elétrico brasileiro a presença do Estado e a falta de concorrência. Em função disso, o remédio é a privatização da Eletrobras e a ampliação do mercado livre. Ou seja, a chamada transição para o mercado. Revival fora de tempo e lugar das reformas do setor elétrico dos anos 1990s que aponta para o mesmo remédio de outrora: redução do papel do Estado no setor via privatização e desregulamentação. O varandão da saudade da política energética brasileira para regozijo das viúvas do fracasso dos 1990s.

E aqui chegamos ao cerne da questão: redução do Estado, privatização e desregulamentação. Essa é a pauta implementada desde 2016. Aqui não importa o contexto real do setor, os problemas reais do setor e os desafios reais do setor.

A perda voluntária do protagonismo do Estado e a brutal fragilização das instituições (que não é específica do setor) geraram um quadro de desmanche do setor elétrico brasileiro. Sem a presença da coordenação do Estado, a cacofonia natural de um setor complexo como é o setor elétrico transforma esse espaço econômico em uma imensa torre de Babel, na qual a prevalência de interesses individuais e de curto prazo implode o setor por dentro. Não existe a menor possibilidade de construir a necessária compatibilização de planos e ações dos agentes, que funda o equilíbrio técnico-econômico-institucional imprescindível para a operação e a expansão desse setor, a partir da lógica de balcão empregada pelo Estado brasileiro neste momento.

A combinação da retirada do Estado com a hegemonia dos interesses financeiros, presente na atual política energética, simplesmente desmancha o setor elétrico do País. A lógica curto-prazista e especulativa do mercado financeiro, emoldurada por uma ignorância abissal sobre o setor (que, dada a sua complexidade, não pode ser vencida pela simples contratação de especialistas, por melhores e mais caros que sejam), em conjunto com a omissão do Estado, desorganiza o setor elétrico brasileiro transformando a atual reestruturação em um desmanche seguido de butim; a bem de poucos e à custa de muitos.

A manutenção dessa política irresponsável de desmonte terá um final previsível. Ao fim, teremos um setor elétrico brasileiro fragmentado, desconectado, regionalizado, sem as tradicionais economias de escala, escopo e diversidade, com explosão de custos e tarifas, quebrado e judicializado.

Vale lembrar aos políticos mais açodados e aos agentes de mercado mais excitados com a pilhagem que a crise californiana terminou com a acachapante vitória da oposição nas eleições seguintes e com os gestores da empresa ícone da especulação do mercado elétrico (a Enron) na cadeia. Parafraseando um ex-técnico de futebol, assim como a bola pune, a crise energética pune muito mais. FHC que o diga.


Link Original

Nenhum comentário:

Postar um comentário