Caros leitores,
A eleição de Joe Biden à presidência dos Estados Unidos afetará drasticamente a dinâmica das relações multilaterais, diante de uma realidade de mudança de posicionamento do país na ordem globalizada. E, frente à polarização cada vez mais enfática entre China e EUA, novos questionamentos e debates insurgem nessas relações;
Nesta matéria, trazemos uma análise de como o governo chinês constituiu sua posição diante dessa mudança de quadro, trazendo consigo medidas que visam enfatizar seu protagonismo global; bem como as respostas fornecidas pelos governo norte-americano de forma a contrapor este avanço.
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Ygor Alonso é membro do Grupo de Pesquisa em Estado, Instituições e Análise Econômica do Direito (GPEIA/UFF).
Faltando dois meses para a troca de comando na Casa Branca e aguardando pistas sobre os rumos do futuro Governo de Joe Biden, a China já começou a se movimentar no tabuleiro geoestratégico global. Depois da assinatura do maior acordo comercial do mundo, o RCEP, que não tem a participação dos EUA, o presidente chinês, Xi Jinping, quer posicionar seu país como o grande líder do multilateralismo nas cúpulas internacionais que se realizam nestes dias, por videoconferência. Na cúpula da APEC― o fórum de cooperação econômica da Ásia e do Pacífico― o líder afirmou que não haverá o que ele chama de “desacoplamento”: a possibilidade de ruptura econômica absoluta entre a China e os Estados Unidos. Mas a benevolência que mostra nas cúpulas contrasta com a atitude mais áspera em relações mais espinhosas: as tensões com a Austrália, um firme aliado norte-americano, dispararam nesta semana.
No tabuleiro asiático, a ótica e as formas importam ―e muito―na condução das relações internacionais. Na cúpula da APEC, a China somou um novo ponto, depois da vitória obtida com a assinatura do RCEP no último domingo. O contraste entre as duas grandes potências não poderia ser maior. Até o último momento ainda não se sabia se por fim o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, interviria. Finalmente, na sexta-feira, ele participou de uma videoconferência com os outros líderes, mas, ao contrário de Xi, não fez nenhum discurso público. A participação foi sua primeira neste fórum desde 2017, a única ocasião em que compareceu pessoalmente a esta cúpula durante sua presidência.
Por outro lado, Xi pronunciou um amplo discurso no qual alardeou credenciais multilateralistas. “Não mudaremos de rumo nem iremos na direção contrária pela história. Não haverá desacoplamento nem formaremos grupinhos [de países] para excluir outros”, afirmou, em uma deliberada referência aos Estados Unidos. “Abrir-nos para o mundo exterior é uma política nacional primordial e não vamos relaxá-la em momento algum”, prometeu.
Encruzilhada
Esta cúpula acontece em um momento de encruzilhada, quando o panorama econômico mundial é incerto devido aos estragos da pandemia do coronavírus, os países asiáticos ―como o resto do mundo, com a notável exceção da própria China―assistiram a um declínio em sua atividade econômica e Pequim finaliza os detalhes dos planos que até 2025 devem transformar a China em um país de renda alta e, até 2035, em uma potência desenvolvida.
Uma das chaves para atingir esses objetivos é a chamada estratégia de “dupla circulação”, o desenvolvimento do mercado interno ―muito especialmente por meio da inovação tecnológica― para proteger a economia nacional dos efeitos da desglobalização e das tensões comerciais com os Estados Unidos. Embora esse novo modelo tenha gerado temores de que a China possa se dirigir para um sistema mais autárquico, Pequim insiste que um mercado interno mais robusto contribuirá para relações comerciais mais intensas com o resto do mundo. Uma mensagem que Xi reiterou: “vamos reduzir ainda mais as tarifas e os custos institucionais, desenvolveremos uma série de zonas modelo de inovação e promoção das importações comerciais e ampliaremos nossas importações de bens e serviços de alta qualidade de outros países”, disse o presidente chinês.
Pressa
Depois da assinatura do RCEP, na semana passada, a China quer implementá-lo o mais rápido possível. Na quarta-feira, o primeiro-ministro Li Keqiang liderou uma reunião do Conselho de Estado, o Governo chinês, para começar a colocá-lo em funcionamento. “Criar a maior área de livre-comércio do mundo contribuirá para estabilizar as cadeias de suprimento e as cadeias industriais”, declarou Li Keqiang. Por seu lado, o diretor do Instituto de Mercado Internacional do Ministério do Comércio, Bai Ming, destacou que a aplicação do pacto pode acelerar a negociação de outros que Pequim tem nas mãos, incluindo o tratado de investimentos com a União Europeia ou o de livre-comércio trilateral com a Coreia do Sul e o Japão.
No período de transição política nos Estados Unidos, “optar pela liberalização comercial é um grande fator positivo para a imagem da China e provavelmente mais relevante em termos econômicos do que qualquer outra opção mais agressiva”, como gestos a Taiwan ou nas águas em disputa no Mar do Sul da China, diz Alicia García-Herrero, economista-chefe para a Ásia do banco de investimento Natixis, em um comunicado depois da assinatura do RCEP.
Junto da cenoura das promessas de unidade e cooperação com os países parceiros, a China, cada vez mais confortável e assertiva em seu papel de potência em ascensão, também insiste que não hesitará em usar o bastão para defender o que considera seus interesses-chave. Essa vara se agita cada vez mais ameaçadora contra a Austrália, país com o qual as relações já vinham se deteriorando. Neste ano, as exigências de Canberra em relação a uma investigação sobre a origem do novo coronavírus, seu veto ao 5G chinês e uma série de acordos de colaboração militar com outros países da região converteram a deterioração gradual em uma queda livre.
Depois de uma série de restrições de fato às importações de produtos do país oceânico, de lagosta a minério de ferro, esta semana, diplomatas chineses entregaram a vários veículos de comunicação australianos um documento com queixas sobre 14 áreas da relação que Pequim exige que Canberra solucione em troca de por fim às suas pressões comerciais. O documento menciona, entre outras coisas, as atividades críticas contra Pequim por parte de laboratórios de ideias e de meios de comunicação. “A China está irritada. Se você fizer da China uma inimiga, a China será inimiga”, disse um diplomata do país a um repórter do jornal Sydney Morning Herald.
Os EUA também tomam posições
Enquanto isso, o administração Trump, prestes a deixar o poder, ainda move o tabuleiro que Biden herdará nas relações bilaterais. Um documento de 74 páginas divulgado pelo Departamento de Estado considera que a China aspira “revisar fundamentalmente a ordem mundial, colocando a República Popular da China no centro e cumprindo as metas autoritárias e as ambições hegemônicas de Pequim”. O texto, intitulado ‘Os Elementos do Desafio Chinês’, descreve os passos que Washington deve dar para contrariar essas intenções.
O relatório recomenda que os Estados Unidos mantenham as Forças Armadas mais poderosas do mundo “ao mesmo tempo em que melhorem a colaboração de segurança, com base em interesses comuns e uma responsabilidade compartilhada”, com seus aliados. Também enfatiza a necessidade de fortalecer a ordem mundial “livre, aberta e baseada no Estado de direito” criada depois da Segunda Guerra Mundial. Reavaliar e fortalecer seu sistema de alianças, educar os cidadãos norte-americanos sobre os desafios que a China representa e “defender os princípios da liberdade mediante o exemplo” também fazem parte das medidas a serem tomadas.
Como esperado, Pequim reagiu com duras críticas ao documento. Na entrevista coletiva diária do Ministério das Relações Exteriores, o porta-voz Zhao Lijian acusou o relatório de ser “uma mentira antichinesa” redigida por “fósseis da Guerra Fria no Departamento de Estado”.
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