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segunda-feira, 28 de setembro de 2020

Relatório aponta sério risco à liberdade acadêmica no Brasil

  Liberdade de expressão como direito humano e a autonomia acadêmica: dois  casos recentes - Dissenso

Caros Leitores,

A liberdade acadêmica é compreendida como um desdobramento da liberdade de expressão e sendo assim é tido como um direito fundamental. É papel de todos os Estados assegurar e promover tais garantias, mas o relatório de Berlim expresso na notícia de hoje mostra que o Estado brasileiro se orienta em outra direção.

Esperamos que gostem e participem!

Lucas Pessôa é membro do grupo de pesquisas "Estados Instituições e Análise Econômica do Direito" 

A liberdade acadêmica de pesquisar e ensinar, em um ambiente com autonomia didática e científica nas universidades públicas, é garantida pela Constituição, mas está sob ameaça no Brasil. A conclusão é de um relatório elaborado por um grupo de pesquisadores brasileiros e publicado neste mês pelo instituto GPPi (Global Public Policy Institute), baseado em Berlim.

Os episódios que colocam a liberdade acadêmica em xeque variam de tipo e intensidade: ataques e ameaças de violência contra pesquisadores relacionados ao tema que estudam; abertura de processos disciplinares contra professores que incomodam o comando de suas universidades; ameaças e cortes orçamentários a projetos não alinhados; e discursos do presidente da República e ministros que deslegitimam a atividade acadêmica e instam apoiadores a denunciar professores.

Segundo orelatório, a corrosão da liberdade acadêmica começou a acelerar na última campanha eleitoral, palco para o então candidato Jair Bolsonaro disseminar uma retórica agressiva contra as universidades, que segundo o hoje presidente seriam focos de “doutrinação esquerdista”.

Em setembro de 2018, no auge da campanha, Débora Diniz, antropóloga e professora de direito da Universidade de Brasília, se viu obrigada a deixar o país após meses sofrendo ataques por sua pesquisa e defesa da descriminalização do aborto. Nos meses seguintes à eleição, diversas instituições de ensino superior seguiram recebendo ameaças anônimas de ataques, acompanhadas de mensagens de ódio a mulheres, negros ou homossexuais.

Ao lado das falas depreciativas do presidente, se somam declarações de seus assessores. Em novembro de 2019, o então ministro da Educação, Abraham Weintraub, disse, sem apresentar provas, que havia plantações de maconha e produção de metanfetamina em universidades, e que elas eram “madraças [escola muçulmana] de doutrinação”.

A retórica de Bolsonaro se baseia numa ideologia que prega o combate ao “marxismo cultural”. Segundo essa linha de pensamento, após o fim da Guerra Fria, o comunismo passou a se manifestar por meio de movimentos por direito de minorias, contra o racismo e em defesa das mulheres, por exemplo. Esse conjunto de ideias tem até hoje aderência nas Forças Armadas brasileiras.

O GPPi também desenvolve, em conjunto com outras organizações, um índice de liberdade acadêmica, chamado Academic Freedom Index. Aedição de 2020, divulgada em março, já havia mostrado que Brasil e Índia eram os países que apresentaram o maior declínio nessa área nos últimos cinco anos.

Refúgio para acadêmicos brasileiros

O declínio da liberdade acadêmica no Brasil chamou a atenção da Scholars At Risk, organização sediada em Nova York. Ela oferece a professores e pesquisadores ameaçados a oportunidade de trabalhar em outro país por um período, por meio de parcerias com diversas instituições de ensino superior.

Desde que foi criada, em 1999, a entidade recebeu 52 pedidos de apoio de professores brasileiros. Desses, 48 foram recebidos após o início da última campanha presidencial. Foram 32 pedidos de setembro de 2018 a agosto de 2019, e outros 16 de setembro de 2019 a agosto de 2020.

A organização também mantém um banco de dados global de casos de ameaças à liberdade acadêmica. Em setembro de 2018, incluiu seu primeiro exemplo do Brasil, o da professora Débora Diniz. Hoje já são seis casos.

“Durante e após as eleições brasileiras de 2018, começamos a receber informes de violência e ameaças por motivos políticos contra acadêmicos no Brasil, que pareciam ter o objetivo de intimidar comunidades acadêmicas. Ao mesmo tempo, começamos a receber pedidos de ajuda de professores brasileiros que mencionavam o medo de serem mortos, presos ou acabarem desaparecidos”, afirma Clare Robinson, diretora de advocacia da Scholars at Risk.

Ela diz que a organização está bastante preocupada com o cenário brasileiro, pois acadêmicos do país continuam a relatar “medo de ataques, incluindo assédio e intimidação, ameaças de prisão e violência, às suas vidas e às suas carreiras”.

A escalada nas ameaças também levou o Sindicato Nacional dos Docentes das Instituições de Ensino Superior (Andes) a criar, em março de 2018, uma comissão para acompanhar casos de criminalização e perseguição política a professores. O órgão oferece assessoria jurídica e apoio político aos acadêmicos afetados.

Um exemplo de caso acompanhado pelo Andes é o de um professor de uma universidade federal de Minas Gerais que se tornou alvo de um processo disciplinar por ter aplicado uma prova durante o período de greve e feito uma viagem para fora do país sem autorização. O processo, segundo Eblin Farage, coordenadora da comissão e professora do curso de serviço social na Universidade Federal Fluminense, tramitou com rapidez incomum e resultou na punição máxima — a exoneração do professor.

“Ministrar provas no período de greve e viajar para fora sem autorização são infrações, mas esse tipo de infração não deveria redundar numa exoneração. A punição foi exagerada e teve motivação política, porque esse professor já tinha um histórico de embates políticos com a instituição, vinha da tradição marxista, tem reconhecimento público”, diz Farage.

Ela afirma que as falas agressivas do presidente e ministros sobre o ambiente acadêmico têm estimulado alunos a fazerem denúncias com motivação política contra professores, e também servem de inspiração para alguns governadores replicarem a mesma postura nas instituições estaduais de ensino superior.

“Vivemos um momento bem difícil. Por receio de sofrerem perseguição política ou serem expostos em redes sociais, muitos professores passaram a incluir nos programas dos cursos um aviso de que alunos são proibidos de gravar as aulas sem autorização do docente. Há dois anos, ninguém fazia isso”, diz.

O relatório do GPPi inclui uma pesquisa qualitativa feita em janeiro com 35 professores brasileiros das áreas de humanidades e ciências sociais. O levantamento aponta que 17% dos respondentes já haviam restringido o escopo de suas pesquisas por receio de retaliação, especialmente das agências de fomento ou órgãos da administração pública. E que 20% deles já tinham restringido o conteúdo de suas aulas por medo de retaliação dos estudantes.
 

A nomeação dos reitores

Outra dimensão da tentativa de o governo Bolsonaro reduzir a autonomia das universidades e a liberdade acadêmica se dá no modo de escolha dos reitores.

Cabe ao presidente nomear os reitores das universidades e institutos federais, a partir de uma lista tríplice elaborada por cada comunidade acadêmica. Desde o final dos anos 1990, tornou-se uma tradição o presidente escolher o primeiro dessa lista, para respeitar a vontade das universidades e institutos.

Essa tradição foi rompida por Bolsonaro. Dos 25 reitores indicados pelo presidente até o momento, 14 não eram os primeiros colocados de lista tríplice, segundo levantamento feito pela Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes).

O caso mais recente ocorreu nesta quarta-feira (16), quando Bolsonaro nomeou o professor Carlos André Bulhões Mendes para o cargo de reitor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) — ele recebeu apenas três votos da comunidade acadêmica, contra 29 votos do segundo e 45 do primeiro colocado.

“Em que pese a legalidade dessas escolhas, uma pessoa que participou do processo e teve seu nome rejeitado não tem legitimidade perante a sua comunidade”, afirmou Edward Brasil, presidente da Andifes, em coletiva de imprensa nesta sexta-feira (18/09).

O presidente também tem tentado alterar a forma de escolha dos reitores. Em dezembro de 2019, Bolsonaro editou uma medida provisória que reforçava seu direito de não escolher o primeiro nome da lista tríplice e que interferia no modo como as universidades preparam essa lista — o texto não foi votado pelo Congresso e perdeu a validade em julho de 2020.

Bolsonaro então editou uma nova medida provisória, que autorizava o ministro da Educação a nomear reitores temporários sem consulta à comunidade acadêmica durante a pandemia de coronavírus.

Houve forte reação de professores, pesquisadores e estudantes, e o presidente do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP) afirmou que devolveria a medida provisória ao presidente sem votá-la. Diante disso, Bolsonaro acabou revogando sua própria medida provisória, três dias após assiná-la.

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