Caros Leitores,
As relações exteriores têm evoluído de forma muito intensa e dinâmica nos últimos dois anos. Para avaliar como o isso afetará o Brasil, nada melhor do que trazer um antigo ministro de relações exteriores para responder esta questão.
Esperamos que gostem e participem!
Lucas Pessoa é membro do Grupo de Pesquisas "Estados Instituições e Análise Econômica do Direito".
O mundo caminha para uma nova ordem global. Até certo ponto, isso já estava “nas cartas”, como gostam de dizer os anglosaxões. Desde 2017, a ultrapassagem dos Estados Unidos pelo “Império do Meio” já é uma realidade, quando se mede o PIB em termos de poder de compra. Mesmo de acordo com a mensuração tradicional (preços de mercado), muito sujeita a flutuações cambiais, a maioria das previsões já dava como mais ou menos certo que a economia chinesa superaria a norte-americana entre 2025 e 2031. Alguns observadores mais céticos chegaram a pôr em dúvida essas previsões, apontando para a nunca cumprida profecia de que o Japão ultrapassaria o gigante americano. E é possível que o crescimento econômico chinês venha a arrefecer depois de três décadas de um vigor raramente visto na história. Por ora, entretanto, persistem as indicações de que a ultrapassagem ocorrerá. Para começar, o impacto diferenciado da pandemia, que já aponta para um modesto crescimento da economia chinesa, em contraste com a forte recessão nos Estados Unidos, deve estar levando os sino-céticos de volta à mesa de cálculos.
A mudança na primeira posição dos países no ranking das economias nunca foi um fato trivial. No continente europeu, o dinamismo econômico da Alemanha em relação a seus vizinhos produziu duas guerras mundiais, antes de resolver-se por meio da integração europeia. Sabemos que a “absorção” da supremacia econômica chinesa pelas lideranças norte-americanas não será fácil. Steve Bannon, cujas ideias continuam a influenciar Donald Trump, faz do Partido Comunista Chinês o grande inimigo a ser enfrentado e, se possível, destruído. Não é à toa que aqui também se alardeou a fantasia de um “comunavírus”. A blague tosca do chanceler brasileiro é mero espelho da concepção que levou Bannon, em entrevista recente, a atribuir a Beijing a morte de George Floyd!
Mesmo na hipótese de que Joe Biden vença as eleições de novembro, persiste o risco de que, caso não seja manejada com frieza e habilidade, a disputa entre os dois gigantes econômicos, um em queda (relativa ou, talvez, absoluta) e outro em ascensão, resulte em colisão. Vale lembrar que, para além da rivalidade econômica, que se estende às mais avançadas tecnologias, não faltam situações com potencial explosivo: Hong Kong, Taiwan, Mar da China, avanços de Beijing rumo ao Índico, para mencionar as mais óbvias.
Seria um erro supor que a rivalidade sino-americana esgota o tabuleiro do xadrez mundial nas próximas décadas. Como tenho escrito, não há como ignorar o persistente poderio estratégico militar da Rússia, servindo de apoio a uma atitude assertiva que não se via desde a antiga União Soviética. Seria igualmente enganoso pensar que a União Europeia tenha saído enfraquecida com a saída do Reino Unido. A despeito do revés no curto prazo, é possível perceber como a liderança alemã, em estreita aliança com a França, tem buscado fortalecer a integração, por meio de financiamento e subsídios a projetos de recuperação econômica pós-Covid 19.
Mais que uma reedição da Guerra Fria, com Beijing substituindo Moscou como polo rival de Washington, o que se anuncia é um mundo multipolar, com a China ocupando um lugar de especial relevo, à frente dos Estados Unidos. Essa não é uma especulação fútil. Analistas norte-americanos, como o famoso inventor do soft power, Joseph Nye, já alertaram para a perda de atratividade e, portanto, de poder diplomático dos Estados Unidos. Um cenário multipolar, mesmo que matizado, não é desfavorável ao Brasil, desde que saibamos nos valer dos trunfos de que potencialmente dispomos. É bem verdade que o empenho destrutivo do atual governo brasileiro, com uma política externa indigna deste nome, tal o nível de subserviência em relação aos Estados Unidos, torna mais laboriosa a tarefa de rearticular o apoio de que nosso país desfrutou em tempos melhores. Supondo que, cedo ou tarde, recuperaremos algum grau de normalidade, devemos reativar iniciativas em relação à América do Sul e, mais amplamente, à América Latina e Caribe, à África, ao mundo árabe, e – de forma especial – a grupos como Ibas e Brics.
Dessa articulação, bem como de nossa capacidade de superar os efeitos mais nefastos da pandemia, combatendo a desigualdade estrutural e buscando um desenvolvimento verdadeiramente sustentável, vai depender nosso futuro, não só em termos econômicos como políticos.