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quarta-feira, 22 de julho de 2020

“Se o Estado não ajudar na recuperação, ninguém o fará”

Fábio TERRA | Doutor pela Universidade Federal do Rio Grande do ...

Caros leitores,

Hoje trazemos uma entrevista com o economista Fábio Terra que, dentre outros assuntos, discute sobre o papel do estado na recuperação da economia durante após a pandemia.

Esperamos que gostem e participem!
Lucas Pessoa, membro do grupo de pesquisas Estados Instituições e Análise Econômica do Direito.

Para Fábio Terra, “setor privado é incapaz de se reerguer sozinho”
Paulo Guedes segura no Tesouro 500 bilhões de reais que deveriam ser usados no combate à crise da pandemia.

O Ministério da Economia emudece sobre a existência desse caixa porque o seu único objetivo é a busca de um Estado mínimo para atender apenas a parcela mínima dos detentores de ativos do sistema financeiro.
O governo insiste em entregar a recuperação ao setor privado que, sozinho, conseguiu aumentar o PIB em irrisório 1%, enquanto no resto do mundo usa-se o Estado para ajudar o setor privado a fim de ambos melhorarem o país.

Guedes vende vento em novos pacotes e inépcia do governo custará caro para a nossa recuperação futura.

As críticas são do economista Fábio Terra, professor da Universidade Federal do ABC e do Programa de Pós-graduação em Economia da Universidade Federal de Uberlândia.

CartaCapital: Como vê a admissão, por parte do Ministério da Economia, de que a fase de gastos emergenciais já teria terminado e agora trata-se de dinamizar a economia para evitar a transformação da recessão em depressão?

FT: Vejo com tristeza a leitura da realidade brasileira feita por Paulo Guedes, reveladora de algumas teimosias. A primeira é a crença de que o impacto econômico da crise que acompanha a pandemia do novo coronavírus já tenha alcançado seu fim. A segunda é a insistência em achar que o setor privado, sozinho, fará a recuperação econômica brasileira. O setor privado sozinho fez a economia brasileira crescer em média 1% entre 2017 e 2019 e agora, após a pior recessão da história, qual o ânimo que ele terá para puxar a economia brasileira na recuperação propalada por Guedes? Não apenas o setor privado, sozinho, não fará a recuperação mas também, sem a ajuda do setor público, ele não tem capacidade de fazer qualquer recuperação. Por fim, a terceira teimosia, que ele comunga com o conjunto do governo, é a de fingir desconhecer que estamos no pico da contaminação e que este auge de mortes é um platô, ele dura um tempo. Falar portanto em retomada do setor privado desde já é fechar os olhos para o que está acontecendo dia após dia no País, com sucessivos recordes de mortes pela Covid-19 e de novos contaminados pelo coronavírus. Nesse sentido, retirar ou reduzir ajudas emergenciais é um profundo erro.

CC: O que é importante levar em conta para planejar a retomada?

FT: A economia é uma continuidade no tempo. Precisamos planejar a retomada e devemos começar a executá-la naquilo que for possível em meio à necessidade de distanciamento social. Claramente, o setor público precisará atuar ao lado do setor privado, puxando-o na recuperação. Repito pela importância: o setor privado é incapaz de se reerguer sozinho. Se o Estado não o ajudar na recuperação, ninguém o fará, pois nada em economia cai do céu, como provam o desemprego de 12% e o crescimento do PIB em apenas 1% entre 2017 e 2019.

CC: Qual é a sua opinião sobre o pacote proposto por Guedes para a retomada econômica?

FT: O pacote é um catálogo de anúncios, uns requentados, outros novos. Para não dizerem que não falei de flores, creio que algumas mudanças de marco regulatório podem ajudar a fazer com que recursos disponíveis no setor privado sejam mobilizados para a construção de bens públicos, como em infraestrutura. Mas, no geral, o novo pacote é a representação clara da falta de senso de pragmatismo deste governo. A reforma tributária, por exemplo, é discutida há décadas. Como, em meio a uma pandemia, ela será debatida no Congresso e levada a efeito? Uma reforma tributária não é necessária para custear as políticas de enfrentamento da crise, não é disso que se trata, ela deve ser feita sobretudo por questões distributivas de renda e para simplificar a tributação brasileira. Ou seja, o timing do pacote é bem ruim.

CC: O governo acenou com a desoneração da folha como contrapartida para não desempregar durante a pandemia e a ajuda a micro e pequenas empresas.

FT: Já estamos há três meses em isolamento social e muito pouco foi feito. Neste sentido, por que o ministro Paulo Guedes, ao invés de vender vento em novos pacotes, não faz valer, de verdade, as medidas que anunciou? A minha sensação é que o ministro não sabe bem como implementar as medidas, o que sugere tanto seu desconhecimento de como a máquina pública funciona quanto do que é efetivamente o Brasil, um País em que as micro e pequenas empresas produzem 30% do PIB brasileiro e empregam 52% do trabalho formal, em que muitas pessoas são desbancarizadas e usam dinheiro vivo. O pagamento do auxílio emergencial esqueceu-se disso. Guedes propõe medidas novas sem ter sequer realmente implementado as antigas de forma plena e generalizada. Isso me faz lembrar da minha infância em Minas Gerais, das pessoas que chamávamos de “enroladas” pois prometiam muito e nada entregavam.

CC: A equipe econômica quer criar uma meta de dívida pública, que prevê gatilho para redução da dívida, com venda de patrimônio e reservas internacionais, quando o objetivo não for atingido. Seria mais uma regra fiscal, a décima-segunda, e, de acordo com o senhor, trata-se de uma regra ruim. Que balanço faz dessas regras fiscais? Quais foram as piores? Houve regras que podem ser consideradas boas? Por que esse é um assunto importante?

FT: Regras fiscais não são ruins por serem regra. Na teoria econômica convencional, elas servem para criar credibilidade na política econômica, mas tendo como contrapartida a limitação da ação estatal. O pano de fundo dessa forma de regramento é a restrição. O problema é que o mundo funciona independente destas restrições e quando surgem adversidades, como agora, a regra cria limite quando deveria haver flexibilidade. Apesar disso, regras fiscais são um assunto importante pois elas têm boas repercussões, tais como transparência, exigem planejamento de médio prazo das finanças públicas, constrangem populismos, constroem convenções e ajudam nas expectativas sobre as políticas econômicas, impõem prestação de contas dos governantes à sociedade, asseguram que existam políticas de Estado, como os mínimos constitucionais de Saúde e Educação. As regras dos mínimos constitucionais são boas, assim como as de limitação de gasto com pessoal para estados e municípios. A Lei de Responsabilidade Fiscal tem alguns problemas, mas sem dúvida foi um avanço no País, a regra de resultado primário pode ser aprimorada, mas não é ruim. Por sua vez, a regra do teto de gastos foi a pior, absolutamente irrealista e, como agora se mostra, sem capacidade de cumprimento, conforme alertaram inúmeros avisos. A proposta de regra de meta de dívida, que colocaria um teto, um limite máximo ano a ano para a dívida pública federal, é também ruim.

CC: Há economistas que defendem o teto da dívida tanto como forma de proteger a dívida daquilo que denominam de populismo de governantes quanto para dar transparência.

FT: Em tese, essas propostas têm mérito. Na prática, elas são problemáticas como é a regra do teto. As intenções por trás da proposta de Paulo Guedes não são estas. O que ele deseja é reduzir o tamanho do Estado. A proposta dele é portanto puramente ideológica. Coloca-se o limite máximo para a dívida pública e, quando o teto é ultrapassado, acionam-se os gatilhos para reduzi-la, sobretudo com a venda de ativos públicos como as estatais, as reservas internacionais, os ativos imobiliários da União, e inclusive controles de fluxos como congelamento de salários de funcionários públicos, corte de gastos, redução de despesas com investimentos públicos, cujas economias seriam usadas para forçar a convergência da dívida à meta estabelecida. Guedes quer colocar um sapato 35 no pé 40 do Estado para forçar a redução de seu tamanho.

CC: O senhor chama atenção para o fato de que a meta não controla os fluxos que dinamizam a dívida, sejam aqueles provenientes das políticas fiscal e monetária, sejam os criados pela política cambial. Admitindo-se que o Ministério da Economia não desconheça esse fato, qual seria o objetivo da criação da meta e com isso da nova regra fiscal?

FT: Há quem defenda a meta de dívida com teses meritórias, como a transparência, ou a salvaguarda do uso político da dívida. Em uma análise econômica, entretanto, a imposição de limite para dívida pública é uma regra bastante ruim. O ministro da economia e vários membros de seu gabinete são declaradamente contrários à participação do Estado na economia a ponto de criarem conceitos novos, como o PIB público e o PIB privado. Por isso, armaram agora uma nova estratégia: impõe-se o limite de dívida para que, quando for atingido, faça-se a redução do Estado como meio de equilibrar a dívida pública. O ministro da economia não está preocupado com os detalhes ruins decorrentes da regra do teto de dívida, ele está interessado em utilizá-la como um meio para diminuir o Estado. Os técnicos do Ministério da Economia, bem como do Banco Central, sabem dos problemas causados por tal medida. A política monetária, por exemplo, é feita usando a dívida pública como instrumento. Como o teto de dívida lidaria com isso? Entre 2007 e 2012, houve superávit primário contínuo, mas a dívida pública cresceu, em grande medida por conta do acúmulo de reservas internacionais, que são um seguro do país contra choques externos. Imagine em quanto estaria o câmbio e, em consequência disso, a Selic neste mês de junho se não fossem as reservas. Neste caso, dívida é resultado, e como o teto de dívida poderia prever essa situação? As relações entre a dívida pública e a política econômica são básicas na economia.

CC: Poderia dar outro exemplo?

FT: Durante o Plano Real, a dívida líquida cresceu de 33% do PIB em julho de 1994 para 47% em janeiro de 1999, e em boa parte este foi o custo que tivemos para estabilizar a inflação. Como um teto de dívida lidaria com isso? A dívida é resultado e limitá-lo não controla o que o gera. Vamos imaginar uma situação pior: e quando o Tesouro recomprar dívida pública em mercado, aumentando a liquidez da economia e, assim, pressionar o juro Selic efetivo para baixo, será com dívida pública em operações compromissadas que a Selic vai ser mantida no patamar anunciado pelo Banco Central? Como se limitará a dívida neste caso?

CC: O senhor argumenta que teto de dívida, além de não eliminar a operação da mesma, age como um limitador que cria um problema político. Poderia explicar por que e exemplificar?

FT: Esta pergunta pode ser respondida com o teto de gastos. Tão rígida que é, frente a um mundo tão dinâmico, a regra do teto impedia que aumentássemos os gastos para enfrentar a pandemia do coronavírus. Para que os gastos aumentassem, foi preciso decretar a emergência da calamidade pública. Para 2021, quando ainda estaremos enfrentando a pandemia e, lembremos, a inflação de 2020 impedirá aumento de gastos, sequer a peça orçamentária consegue ser fechada. Com uma regra de teto acontecerá a mesma coisa. Sempre que a meta for ultrapassada será necessário recorrer à negociação política, o que nunca é fácil. Basta lembrar do Brasil de 2015, da guerra de Eduardo Cunha contra Dilma Rousseff, em que a dívida pública subiu 10 pontos percentuais do PIB. Como se daria a negociação? Essa disputa política é frequente, vamos lembrar, nos Estados Unidos e mesmo lá, com instituições sólidas, vira e mexe ela implica shutdown da máquina pública sempre que há negociação política para aumentar o teto do limite de dívida.

CC: A dívida pública é sabidamente um instrumento de política econômica. O Ministério da Economia parece, no entanto, buscar uma limitação desse instrumento. Os movimentos da área econômica do governo deixam transparecer qual seria a sua concepção quanto ao papel da dívida e do endividamento na gestão da política econômica?

FT: Sim, deixam transparecer com clareza: este é o governo que criou o PIB público e o PIB privado, um caso único na história econômica. É o governo que pretende semanalmente privatizar todas as estatais para encaixar um trilhão de reais. Logo, é o governo que quer reduzir o tamanho do Estado, na contramão do resto do mundo em que, sem guerras ideológicas, usa-se o Estado para ajudar o setor privado a fim de ambos melhorarem o país. Basta observar tudo o que o Banco Central estadunidense, o Fed, isto é, o Estado americano, fez e continua a fazer pelo setor financeiro privado, arrefecendo o tamanho da crise. Infelizmente, por aqui não se olha para frente, dirige-se o país de olho no retrovisor. Sabemos que o Estado não soluciona tudo, nem o setor privado, por isso a junção de ambos é o fundamental.

CC: O há em comum entre a proposta do limite da dívida, a PEC Emergencial e a PEC do Pacto Federativo?

FT: Todas são vistas por Guedes como caminhos para acionar gatilhos que reduzam o tamanho do Estado. Esta proposta do teto de dívida é uma estratégia para limitar o crescimento da dívida por meio da imposição de um limite para o tamanho do Estado. Uma tentativa que já havia sido feita com a regra do teto de gastos. Mudam-se ou aumentam-se os meios, mas a meta é insistentemente uma só, a busca pelo Estado mínimo. Com a PEC do orçamento de Guerra, o Banco Central do Brasil emitirá moeda para comprar ativos financeiros privados, evitando a perda de valor deles. Essa atitude está correta, o problema é ser feita apenas no setor financeiro. É muito estranha essa espécie de Estado mínimo, não pelo próprio tamanho, mas pela mínima parcela a que atenderá, a dos detentores de ativos do sistema financeiro.

CC: Com o reconhecimento do estado de calamidade pública, argumentam o senhor e vários economistas, já é possível desobedecer as regras fiscais, o que é fundamental para enfrentar esta crise múltipla. Em que medida o governo está aproveitando essa possibilidade?

FT: O governo a aproveita mal, até agora gastou menos da metade do que lhe foi autorizado. É um governo que não sabe como implementar as medidas e que desconhece o Brasil, não utiliza os dados do próprio Banco Central para saber que metade da moeda usada no Brasil não está em contas bancárias, mas no bolso das pessoas. Paulo Guedes, naquela baixaria de reunião ministerial de 22 de abril, bradou que o governo não perderia dinheiro com micro e pequena empresas. Conhecesse ele o Brasil e aproveitasse dados do Sebrae, saberia que 30% do PIB brasileiro e 52% dos empregos formais do Brasil vêm de micro e pequenas empresas.

CC: Ou seja, não haveria perda de dinheiro, mas manutenção da economia funcionando.

FT: Trata-se de um governo muito ideológico, o que lhe retira o pragmatismo necessário para enfrentar uma crise. Não por acaso, parte boa das medidas de enfrentamento da crise veio de decretos do Congresso. A inépcia do governo custará caro em termos da nossa recuperação futura, pois quanto mais fundo o buraco em que estamos nos metendo, maior o esforço necessário para sair dele depois. E quanto mais difícil for a recuperação, piores serão os dados fiscais do governo no tempo. São consequências de o governo não aproveitar as possibilidades que possui.

CC: O governo argumenta que não há dinheiro para enfrentar a crise, mas seus cálculos mostram existirem 1,2 trilhão de reais no Tesouro. Como explicar a discrepância entre a alegação oficial e essas disponibilidades? De que modo, em sua opinião, esses recursos deveriam ser usados no enfrentamento da crise múltipla?

FT: Os recursos da conta única têm sido usados pelo Tesouro para administrar a dívida pública e para pagar parte das modestas políticas de enfrentamento da crise. Com estes recursos, por exemplo, o Tesouro tem trocado dívida de longo prazo, em que ele paga juros maiores do que a Selic, por operações compromissadas do Banco Central, que pagam Selic, numa política twist (de troca, de giro) de dívida pública, barateando-a neste momento de crescimento de seu estoque, o que uma meta de dívida dificultaria, é importante ressaltar. Logo, ter recursos na conta única é fundamental e eles precisam ser usados, como agora estão sendo. Um dos maiores alimentadores deste 1,2 trilhão de reais na conta única foi o ganho das operações cambiais do Banco Central. A transferência deste ganho está limitada desde o segundo semestre de 2019, por conta da Lei 13.820 de 2019. Em 2020, o ganho cambial do Banco Central é de aproximadamente 500 bilhões de reais. Uma parte disso é realizada pela venda de dólares e pelo ganho de capital que o BC obtém devido aos títulos em que ele aplica as reservas terem se valorizado, outra parte é mero ganho contábil não realizado portanto.

CC: Ganho não realizado?

FT: É como uma casa que se valoriza mas não é vendida, ou seja, o ganho é patrimonial, não é realizado. Como comentei, parte das ações de combate à crise, de gastos correntes e financeiros, está sendo financiada por ganhos cambiais do passado. Acho, é claro, que a equalização cambial de 2020 precisa ser usada, ao menos em parte, para reforçar a conta única neste momento, sem dúvida. Há um projeto de lei neste sentido, o 2184 de 2020, de autoria do deputado Paulo Teixeira (PT-SP). Em temos de gastos crescentes, e que não pararão de crescer tão cedo, a equalização cambial é uma fonte de recursos públicos fundamentais. Além disso, os ganhos das reservas precisam ainda compor um fundo de investimentos públicos para ajudar na recuperação da crise.

CC: Como é isso?

FT: É importante que o Banco Central mantenha uma reserva de resultado, pois quando há apreciação cambial, ele perde. Esta reserva deve ser feita com recursos da parte não realizada (ou seja, contábil) dos ganhos cambiais. Por sinal, hoje a Lei 13.820 permite que os ganhos cambiais sejam transferidos ao Tesouro em momentos de dificuldade de rolagem da dívida pública e, assim, sejam usados para a administrar. Não proponho, contudo, que hoje usemos assim os ganhos cambiais acumulados no Banco Central. Já há 600 bilhões de reais na conta única vinculados à rolagem da dívida, que se use estes recursos. Os 500 bilhões de reais que hoje estão apurados como resultado no Banco Central devem ser direcionados ao enfrentamento da pandemia no lado real da economia, isto é, para pagar salários de micro e pequenas empresas, ampliar a extensão da renda básica emergencial, financiar o acesso de crianças, adolescentes e adultos à educação remota, custear a saúde pública e a pesquisa em relação ao coronavírus, entre outras destinações no mesmo rumo. Usar os recursos da equalização para recomprar dívida será um desperdício, pois já há, como eu disse, recurso na conta única vinculado a este fim. A recompra de dívida devolverá recurso a quem tem capacidade de comprar títulos públicos e, portanto, é a camada mais rica do país, aquela que mais poupa, em um momento em que precisamos de gasto. É também abrir mão de oferecer ao Tesouro toda a munição de que ele precisa para enfrentar a crise.

CC: Por que a existência desses recursos não é anunciada pelo governo?

FT: A existência destes recursos não é anunciada porque o Brasil vive sob o domínio da premissa de que os gastos públicos são estruturalmente crescentes e insustentáveis. Logo, qualquer disponibilidade precisa ser rapidamente regrada, para que se limite ao máximo, ou se impossibilite, o seu uso.

CC: Como pacificar as inquietações a respeito do suposto risco inflacionário do uso desses recursos no enfrentamento da crise sem precedentes?

FT: Se nesta altura do campeonato ainda há quem tenha medo de inflação, não há mais o que fazer para demover a pessoa de tal crença. É matéria de fé, não de razão. Temos 13 milhões de desempregados, trabalho informal desaquecido, ou seja, o mercado de trabalho está se esfacelando. Pelo lado do capital produtivo, já vínhamos de uma situação de baixa utilização de capacidade instalada e a ociosidade está se ampliando. Ou seja, a atuação massiva do Estado é necessária agora para evitar um desemprego ainda maior de trabalho e de capital. Logo, estamos longe de criar poder de compra maior do que nossa capacidade de produção. Em termos de custos, os preços de energia, petróleo estão bem comportados, a demanda por energia elétrica caiu, não pressionando a produção. Com o desemprego maior, salários caem e impostos são adiados. Inclusive o câmbio, que se desvalorizou bastante desde o começo do ano, não repassou aos preços domésticos seu maior patamar, dando a dimensão de como a atividade econômica no Brasil está recessiva. Nosso medo agora é a deflação. E precisamos desmistificar: a redução de preços numa economia é ruim, pois significa perda de valor. E vamos evitar a visão binária, pois dizer que deflação é ruim não quer dizer defesa de inflação maior. Todos os dados apontam que teremos neste ano a menor inflação do real, ou seja, desde 26 anos. Se nestas condições há ainda quem se assuste com a possibilidade de inflação a partir de uma maior atuação do Estado, não há passe que tire esse quebranto.

CC : A meta fiscal e a limitação de empenho foram dispensadas neste exercício, mas o teto e regra de ouro, que continuam a vigorar, não seriam empecilhos para efetuar o gasto emergencial necessário?

FT: A PEC do orçamento de guerra retirou a eficácia da regra de ouro neste ano. Mas, a bem da verdade, ela já não estava sendo cumprida desde a elaboração da peça orçamentária há alguns anos. Antes disso, seu cumprimento era na proposição do orçamento e ao longo dele usava-se o espaço entre as receitas de operações de crédito e o total das despesas de capital para abrirem-se créditos adicionais de gastos correntes, de forma que dívida pública financiava despesas correntes. A regra de ouro precisa ser modificada e há quadros técnicos no Congresso com boas propostas. Em termos do limite de empenho de gasto, com a declaração da situação de emergência em função da calamidade pública decorrente da pandemia, o limite do teto de gastos pode ser ultrapassado desde que com créditos adicionais de caráter extraordinário. Assim, os recursos que forem mobilizados para enfrentar a crise, por exemplo, os gerados por superávits financeiros acumulados na conta única, precisarão virar créditos extraordinários. Ou seja, em termos do teto e da regra de ouro há resguardo jurídico para a execução dos gastos. Falta, contudo, competência governamental para os efetivar, apesar da boa vontade do Congresso Nacional, diga-se.

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