Olá alunos,
Nos últimos anos o capital produtivo perdeu prestígio frente ao capital especulativo. Com isso, houve uma precarização do valor do trabalho aumentando a concentração de renda. Dito isso, a reportagem de hoje narra a morte do sonho americano, isto é, a morte da possibilidade de mobilidade social.
Esperamos que gostem e participem!
Lucas Pessôa é membro do Grupo de Pesquisas "Estados Instituições e Análise Econômica do Direito"
Quase metade dos trabalhadores dos EUA com idade entre 18 e 64 anos labuta em empregos de baixa remuneração
Dias antes do feérico pronunciamento de Donald Trump em Davos, o jornal The New York Times publicou um texto comovente do articulista Nicholas Kristof. Da boca e garganta de Trump ribombaram celebrações do desempenho da economia dos Estado Unidos. Da pena de Kristof ecoam lamentos e lamúrias dos habitantes de Yamhill, uma pequena cidade do Oregon. A história de Kristof recua para a década de 70 do século passado e registra a algazarra que reinava diariamente no ônibus escolar no 6. Nick viajava todos os dias na companhia de seus vizinhos da família Knapp, Farlan, Zealan, Rogena, Nathan e Keylan. Filhos da classe trabalhadora, os meninos e meninas sonhavam “em meio a travessuras, bravatas e otimismo”.
O pai dos meninos tinha um emprego firme e bem remunerado como instalador de dutos. A família explodiu em felicidade quando adquiriu a casa própria e a alegria foi intensa no dia em que Farlan ganhou um Ford Mustang ao completar 16 anos.
“Hoje, cerca de um quarto das crianças do ônibus no 6 estão mortas, vitimadas por drogas, suicídio, álcool ou acidentes causados por imprudência. Dos cinco filhos da família Knapp, Farlan morreu de insuficiência hepática por bebida e drogas, Zealan queimado até a morte em um incêndio em casa, desmaiado e bêbado, Rogena morreu de hepatite ligada ao uso de drogas e Nathan explodiu-se ao cozinhar metanfetamina. Keylan sobreviveu porque passou 13 anos em uma penitenciária estadual.”
As outras crianças no ônibus não tiveram destino melhor. “Mike suicidou-se, Steve morreu em um acidente de moto, Cindy de depressão que culminou em um ataque cardíaco, Jeff de um acidente de carro, Billy de diabetes na prisão, Kevin de doenças relacionadas à obesidade, Tim de um acidente em trabalhos de construção, Sue de causas indeterminadas. Chris é dado como morto, depois de anos de alcoolismo e sem-teto. Ao menos mais um está na prisão, e outro é sem-teto.”
A pequena Yamhill não é uma exceção na vida contemporânea dos Estados Unidos. As assim chamadas “mortes por desespero” assumiram dimensões assustadoras. Os suicídios apresentam a taxa mais elevada desde a Segunda Guerra. As defunções por abuso de drogas, sobretudo opioides, atingiram índices alarmantes. “O significado da vida para a classe trabalhadora parece ter evaporado”, disse Angus Deaton, economista engalanado com o Prêmio Nobel e autor da expressão Morte por Desespero. Nos rastros da alegria barulhenta e esperançosa do ônibus no 6 restaram as mortes por álcool, drogas e suicídio.
Kristof atribui a avalanche de desgraças individuais à desintegração da classe trabalhadora americana. “Empregos perdidos, famílias quebradas, melancolia – e políticas fracassadas. O sofrimento dos menos favorecidos era invisível para os ricos, mas agora os bilionários aparentam preocupação com os rumos dos Estados Unidos.”
A Faculdade de Direito da Universidade Cornell publicou recentemente um estudo a respeito das mutações no mercado de trabalho local. O propósito da investigação é construir um índice de qualidade dos empregos oferecidos pelo setor privado desde a Segunda Guerra (The U.S. Private Sector Job Quality Index).
O Job Quality Index destina-se a avaliar – em uma base mensal – em que medida os empregos criados nos Estados Unidos correspondem às expectativas dos trabalhadores. O critério adotado compara as vagas que oferecem uma relação salários/horas trabalhadas inferior à desejada com as ocupações que ensejam uma relação satisfatória, ou seja, maior salário, mais horas trabalhadas. Não é difícil descobrir a predominância dos empregos de poucas horas e baixos salários.
Relatório publicado em novembro de 2019 pela Brookings Institution constata que 44% dos trabalhadores americanos com idades entre 18 e 64 anos (em um total de 53 milhões) labutam em empregos de baixa remuneração, com uma renda média anual de apenas 17.950 dólares. Se elevarmos o sarrafo para além dos 64 anos, esses 53 milhões vão sofrer a companhia dos trabalhadores mais velhos, cujo contingente cresce rapidamente.
Os mais idosos voltam ao trabalho por não conseguirem custear as despesas de alimentação, moradia, transporte e saúde quando se aposentam (colapso da poupança pessoal, pensões mínimas e aumento da idade de aposentadoria). Deve-se, portanto, adicionar ao menos outros 5 milhões obrigados a voltar ao mercado de trabalho. Esse contingente de 58 milhões que trabalham em tempo parcial, em contratos de muito curto prazo ou temporários e que ganham 8 dólares por hora, provavelmente compõe a maioria dos americanos que não receberam aumentos salariais no ano passado.
Assim como no caso de seus antecessores, o ciclo de expansão comemorado por Trump fracassa miseravelmente no atendimento das promessas mais caras ao american dream: crescimento da renda e geração de empregos estáveis e bem remunerados.
Muitos compraram a versão da “responsabilidade pessoal” que atira às costas dos indivíduos a culpa por serem pobres. Nesse diapasão liberal, classes trabalhadoras e remediadas nos Estados Unidos ziguezagueiam entre os fetiches do individualismo e as realidades cruéis do declínio social e econômico. A individualização do fracasso não consegue mais ocultar o destino comum reservado aos derrotados pela desordem do sistema social. Na American Business Roundtable de 2019, os bacanas das grandes corporações bateram no peito para purgar os pecados que porventura tenham cometido em nome da eficiência que redundou em baixas remunerações dos trabalhadores e na maximização do “valor do acionista”. O mercado de ações bate recordes, mas a classe trabalhadora prossegue na dura batalha pela sobrevivência.
Joseph Stiglitz reconheceu que a declaração em prol do bem-estar das demais partes interessadas – trabalhadores, fornecedores, clientes – repercute um mal-estar com os desequilíbrios de poder e desigualdade na distribuição de renda. Assinado na mencionada reunião do ano passado por praticamente todos os parrudos integrantes da Mesa-Redonda, o mea-culpa causou grande agitação nos mercados. Desconfiado, o economista recomendou cautela diante das boas inten- ções dos executivos. “Teremos que esperar para ver se a declaração recente da American Business Roundtable a respeito da governança corporativa com base na primazia dos acionistas é para valer ou meramente um golpe publicitário. Se os CEO mais poderosos da América realmente acreditam no que dizem, apoiarão reformas legislativas abrangentes.”
Nos Estados Unidos, entrou em voga nos anos 80 a “economia da oferta” e sua filha dileta, a curva de Laffer, que preconizavam a redução de impostos para os ricos “poupadores” e empresas. Os adeptos da supply side economics decretaram a ineficácia dos sistemas de tributação progressiva da renda, que, segundo eles, promoviam o desincentivo à produção e à poupança geradora de novo investimento. A macroeconomia de Ronald Reagan defendia a tese do “gotejamento”: as camadas trabalhadoras e os governos receberam os benefícios da riqueza acumulada livremente pelos abonados empreendedores sob a forma de salários crescentes e aumento das receitas fiscais.
A enrolação do gotejamento não entregou o prometido. A migração da grande empresa para as regiões de baixos salários, a desregulamentação financeira e a prodigalidade de isenções e favores fiscais para as empresas e para as camadas endinheiradas não promoveram a esperada elevação da taxa de investimento e, ao mesmo tempo, produziram a estagnação dos rendimentos da classe média para baixo, a persistência dos déficits orçamentários e o crescimento do endividamento público e privado. A procissão de desenganos foi acompanhada da ampliação dos déficits em conta corrente e da transição dos Estados Unidos de país credor para devedor. A crise da classe média não é fruto da Grande Recessão, iniciada em 2008, mas um fenômeno de longo prazo. De 1973 até 2010, o rendimento de 90% das famílias americanas cresceu 10% em termos reais, enquanto os ganhos dos situados na faixa dos super-ricos – a turma do 1% superior – triplicaram. Pior ainda: a cada ciclo a recuperação do emprego é mais lenta e, portanto, maior é a pressão sobre os rendimentos dos assalariados.
Os lucros foram gordos para os senhores da finança e para as empresas empenhadas no outsourcing e na “deslocalização” das atividades para as regiões de salários “competitivos”. Barack Obama e seus economistas salvaram Wall Street da derrocada financeira, mas não responderam às demandos da maioria dos americanos atormentados pelas perspectivas de um crescimento pífio do emprego e dos salários. A lenta recuperação da economia não consegue oferecer aos seus cidadãos soluções críveis para atenuar as desgraças da anomia social e da destruição dos nexos básicos da sociabilidade, inclusive os familiares.
Mobilidade do capital financeiro e, ao mesmo tempo, centralização do capital produtivo à escala mundial. Essa convergência suscitou os surtos intensos de demissões de trabalhadores, a eliminação dos melhores postos de trabalho, a maníaca obsessão com a redução de custos.
Não se trata de nenhuma inevitabilidade tecnológica. Foram, de fato, gigantescos os avanços na redução do tempo de trabalho exigido para o atendimento das necessidades, reais e imaginárias, da sociedade. Mas os resultados mesquinhos em termos de criação de novos empregos e de melhora das condições de vida só podem ser explicados pelo peculiar metabolismo das economias capitalistas, sob o império da competição desbragada e das finanças globais desreguladas.
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