web counter free

segunda-feira, 23 de março de 2020

A vida de pequenos agricultores em terras amazônicas cercadas pela soja

Agricultor familiar tem sua pequena roça cercada pela soja e pelo veneno. 

Olá alunos,

Quais serão as consequências dos grandes plantios de soja para os pequenos agricultores? A reportagem a seguir ilustra essa realidade na região amazônica.

Esperamos que gostem e participem!
Lucas Pessôa é membro do Grupo de Pesquisas "Estados Instituições e Análise Econômica do Direito"

No início dos anos 2000, o terreno ao lado da casa de seu Macaxeira foi comprado por um sulista recém-chegado. De início, seu Macaxeira ficou feliz com o novo vizinho. Era simpático e dizia que vinha trabalhar a terra. Ao se apresentar, falou que queria mesmo vir para um lugar tranquilo, que lá no Sul tinha tido muito atrito com os vizinhos. Deu a impressão de que viera para se estabelecer. Seu Macaxeira havia se mudado em 1999 para a comunidade de Santos da Boa Fé, próximo à Rodovia Curuá-Una, em Santarém (oeste do Pará). Estava contente com sua produção. Plantava mamão, cupuaçu, graviola, batata, maracujá e macaxeira – tanta que lhe rendeu o apelido que leva até hoje, aos 64 anos. Todos chamam Antônio Alves assim: seu Macaxeira. Com seu plantio, sustentava quatro filhos. Sem veneno. Naquele momento, virada do milênio, a soja sequer figurava em seu horizonte.

“Foi um vizinho muito bom, só que aí ele começou a comprar terras”, relembra Macaxeira. Primeiro ele comprou uma terra dos fundos. Depois, a da direita. Já em 2002 começou a derrubar o mato que havia ao redor. Ele prometia àqueles de quem comprava os terrenos que geraria emprego na região. Pouco a pouco, Macaxeira se viu cercado. A tranquilidade prometida não vingou. Os empregos, tampouco. Quando muito na fase de derrubada da mata. Nessa época, era o barulho que mais transtornos trazia. Em seguida, a soja. “Aí comecei a passar muito atrito”, relembra.

Seu Macaxeira observava a reação da aplicação do veneno em seus filhos: “irritava os olhos, irritava a garganta. Era febre diária, era dor na cabeça”. O uso de agrotóxicos pelo vizinho começou a dificultar sua própria atividade profissional. “Eu, que vivia da agricultura familiar, mais da colheita do mamão, da macaxeira, começou a não dar mais. O veneno não deixou.” As plantas passaram a não dar frutos. Ou, quando davam, já não eram frutos tão saudáveis como antes. As folhas murchavam antes de florescer. A saúde e o sustento de sua família estavam ameaçados.

Uma tarde de 2007, no início do verão amazônico, Macaxeira viu mais uma vez o vizinho iniciando a aplicação do veneno. Eram 6 horas da tarde e as crianças estavam em casa. Preocupado, foi conversar sobre a situação com ele. Alguns dias depois, o vizinho veio lhe fazer uma proposta: “Ou o senhor compra a minha área, ou eu compro a sua”.


Sitiado por um terreno maior que o seu, ambientalmente degradado pela derrubada da floresta e acúmulo de veneno, e com suas economias debilitadas pela atividade do vizinho, Macaxeira não tinha como comprar a área. “Não tivemos mais como ficar no terreno em que eu morava na época. Ninguém mais conseguiu sobreviver respirando soja, com aquele veneno. E eu fui obrigado a vender.”


Macaxeira se mudou para outro local da mesma Santos da Boa Fé, o ramal do Jacaré, onde fizemos esta entrevista. A partir de 2005, a soja tomou conta da comunidade e de outras tantas na região conhecida como Planalto Santareno, composta pelos municípios de Santarém, Belterra e Mojuí dos Campos. “O veneno obriga a pessoa a entregar seu lote. Não é mais o preço”, resume.

Manoel Edivaldo Santos Matos é o Peixe. Presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Santarém, ele narra a chegada da soja à região. Entre o final dos anos 1990 e o início dos anos 2000, o prefeito da cidade convidou produtores de soja de outras regiões do Brasil, especialmente do Mato Grosso, para fazer uma experiência, um teste, em 1 hectare de terra. Antes, relembra Peixe, não havia soja. Na área se plantava arroz, feijão, frutas, macaxeira. “E deu bem, a soja deu porreta na área aqui.”

O agricultor ingressou na diretoria do sindicato em julho de 2002, momento em que se iniciava a venda de terras para os sojeiros. Em outubro daquele mesmo ano, fizeram um levantamento rápido para entender o impacto da nova situação: “Seiscentos agricultores já haviam vendido suas terras”. Foi aí que iniciaram a primeira campanha “Não Abra Mão da Sua Terra”: “Deu uma freadinha, mas muito pouco, porque o lobby para comprar a terra era muito grande”, lamenta Peixe.

Em seguida veio o porto da Cargill. “Tudo de acordo com o projeto deles. Mete soja aqui, faz o porto aqui, para receber a soja do Mato Grosso e daqui também”. A então presidente do sindicato, Ivete Bastos, foi para a Europa denunciar o que estava acontecendo na região, mostrar aos compradores de soja europeus o impacto da monocultura na região: “Naquela época nem se falava tanto no impacto do veneno. Era a expulsão dos agricultores. Eram igarapés sendo soterrados pela derrubada”.
Porto da Cargil em Santarém (PA)

Foi nesse contexto que teve início a negociação para a Moratória da Soja. Para Peixe, a moratória foi um acordo que envolveu produtores, consumidores e organizações ambientalistas. “Era o acordo de que a Europa só ia comprar soja de área que fosse legalizada, que não tivesse expulsão de agricultor, que não tivesse impacto ambiental, como os igarapés etc., e que não fosse derrubada mais nenhuma árvore de floresta primária para plantar soja, só em áreas alteradas ou degradadas, como eles dizem. Mas isso depois descumpriram, e a coisa avançou.”
O sindicalista mostra-se cético em relação às promessas do setor de agronegócio, de que portos, ferrovias e rodovias melhorarão a situação do município: “Essa história não vale mais. Porque a gente sabe que, onde existe isso, tem aqueles que se dão bem, e muito bem. Mas a maioria da população é afetada negativamente, ou seja, aumenta a pobreza, aumenta a miséria, aumenta a fome, a insegurança pública, a violência. Concentra renda, concentra terra e aumentam os impactos negativos na área social, principalmente na área da saúde”.

Peixe cita de cabeça uma fala do médico neurologista santareno Erik Jennings sobre o futuro que se vislumbra para a saúde da população da região: uma população doente pela ingestão de peixe contaminado de mercúrio e pela exposição ao agrotóxico. Em abril de 2019, o médico participou de uma audiência pública na Câmara dos Deputados, em Brasília. Lá, fez uma apresentação para deputados e indígenas sobre o impacto do mercúrio no Tapajós: “Tenho uma tese de que o homem amazônico está mais doente e mais ameaçado que a floresta”.

Ciro de Souza Brito é advogado e trabalha na Terra de Direitos, ONG que presta assessoria jurídica para comunidades rurais e quilombolas afetadas pela soja na região do Planalto Santareno. “A soja não vem sozinha, como commodity. Ela traz diversos problemas. Ela vai desterritorializar, ela vai adoecer, ela vai criminalizar, ela vai marginalizar.”

O advogado analisa a expansão da cadeia da soja na região com base nos impactos em quem vive junto à terra: “À medida que se expande, a soja desterritorializa as comunidades e aumenta a necessidade de escoamento dessa produção. E por onde vai sair? Aí entra a questão do Maicá. Do Lago do Maicá. As comunidades entendem que é um criadouro de peixes, inclusive nas palavras do Dileudo, e os estudos apontam que é um santuário de peixes”.

Presidente da associação de moradores do Quilombo do Bom Jardim, Dileudo Guimarães dos Santos conhece como poucos a realidade do Lago do Maicá. Ele vive os impactos tanto da expansão da plantação de soja como da construção da infraestrutura que a exportação do grão demanda.

O Quilombo do Bom Jardim fica em um local de difícil acesso, entre o Lago do Maicá e o pé de uma serra. Para chegar até ele, vindo da Rodovia Curuá-Una, é preciso embrenhar-se em ramais tomados pela soja, passar ao lado do terreno de seu Macaxeira e descer uma baixada íngreme e escorregadia. Para Dileudo, a localização do quilombo é estratégica: “O povo que vinha para cá, que veio para cá como escravo, se localizava nas áreas aqui debaixo, mas tinha gente que ficava, durante o dia, na área da serra. E alguns trabalhavam também lá. Porque facilitava ter uma visão de quem chegava pela água, né? Então já avisava as pessoas: ‘Olha, tá chegando, tal e ali’”.

No interior do Pará, a história se repete de modo curioso. Ela parece inverter a célebre frase usada por historiadores: em terras tapajônicas, a história surge primeiro como farsa e só depois como tragédia. Justamente por conta dessa geografia estratégica, que uma vez favoreceu aqueles que fugiam da escravidão, hoje o quilombo recebe água com veneno das plantações de soja que ficam no topo da serra. Um lixão da cidade de Santarém, instaurado na parte mais alta, também traz água contaminada para eles. Apesar do avançado processo de titulação do quilombo, grileiros avançam sobre a área dos comunitários, plantando soja dentro do território, enquanto os quilombolas mesmo… “Poucos têm terra pra trabalhar”, lamenta Dileudo.

Além da qualidade da água, outra de suas preocupações é com o peixe. “Aqui é água do Tapajós, a água do Amazonas é mais branquicenta. A gente percebe que essa água tem mudado um pouco de cor. E já foram encontrados peixes mortos. A gente pensa que é pela contaminação da água. E a gente sabe que a contaminação da água vai diminuir a quantidade de peixe.”
Dileudo teme que a construção dos portos e o fluxo de grandes embarcações possam vir a aterrar o Rio Maicá, o que implica um problema maior para a segurança alimentar dos quilombolas. Com o desmatamento demandado pela soja, a caça já diminuiu. Castanheiras e abacabeiras, de onde tiravam parte de seus alimentos, também foram derrubadas.

Enquanto isso, os projetos de expansão da soja não param. Ciro acompanha a construção da Ferro Grão e do projeto de hidrovia Teles Pires-Tapajós. O advogado aponta para a relação entre o desenvolvimento da infraestrutura de escoamento da soja do Centro-Oeste e o incentivo para a produção no Planalto Santareno: “O Lago do Maicá tem um projeto para construção de seis portos, terminais de uso privado. Além de escoar a produção já existente, ele vai vir como um incentivo para os produtores locais ou de fora virem produzir aqui”.

Para Ciro, houve um forte lobby para a alteração do plano diretor de Santarém. “Essa região do Lago do Maicá é de uma área de preservação ambiental. Você não podia fazer nada ali. Então, quando foi para mudar o plano diretor municipal, houve todo um ano de participação pública, consultas, audiências. As comunidades, os movimentos sociais e demais organizações apontaram a necessidade de manter essa área como uma área de preservação. E foi o texto passando assim. Então a gente achava que no final, quando fosse aprovada a lei municipal que continha o plano diretor, ficasse como uma área de preservação”, conta Ciro. Ele prossegue: “Então houve um lobby por trás, e em dezembro, quando todo mundo estava feliz, a Câmara e a Prefeitura aprovaram uma redação que na verdade autorizava essa área como expansão portuária”. Outra alteração no plano diretor diz respeito à soja diretamente. Praticamente todas as áreas que não sejam de preservação ambiental foram transformadas em áreas onde a monocultura poderá se desenvolver.

Por não terem tido seus protocolos de consulta respeitados, os quilombolas entraram na justiça, que suspendeu temporariamente a construção dos portos de soja. Porém, outro projeto, um terminal portuário de combustível, com as devidas autorizações municipais e estaduais, está sendo construído e, com ele, toda a infraestrutura logística: “O porto está avançando, está se consolidando, estão terminando de construir”, afirma Ciro.

Chegamos à Escola Municipal Vitalina Motta, em Belterra, pela tarde. As crianças estavam em pleno horário de aula, e um trator vermelho no campo de soja defronte às instalações escolares trabalhava livremente.

Heloíse Rocha, professora indígena, trabalha há cinco anos na região do Trevo de Belterra: durante três anos foi professora em uma escola vizinha, também rodeada pela soja, e há dois está na Vitalina Motta. Ela conta que nunca foi feita uma negociação com os sojeiros, para evitar a borrifação em horário de aula das crianças. “Não houve negociação. Nenhuma gestão da escola fez essa negociação. Não que faltassem reclamações dos professores e funcionários. Eu oficialmente pedi: ‘Temos de fazer alguma coisa. É necessário que a gente proteja as crianças e nos proteja’.”

Existe também receio quanto à possível contaminação da água da escola, que é de poço artesiano e passa pelo filtro. “A gente sabe que o agrotóxico vai pro lençol freático.” Entretanto, inexistem estudos sobre a qualidade da água. A falta dos estudos, aliás, é um dos problemas maiores na relação da população do Planalto Santareno com o veneno. Simplesmente se desconhece o impacto.

Heloíse desabafa: “A gente se sente refém na escola. É um consenso entre todos os funcionários que trabalham aqui de que a gente está sendo contaminado. A gente, aos poucos, está sendo envenenado”.

A Secretaria Municipal de Educação de Belterra, procurada pela reportagem, não respondeu às perguntas.

Morador da região há 28 anos, seu Macaxeira não hesita: “O objetivo deles hoje é acabar a comunidade”. A história de Antônio Macaxeira é a história de pessoas sujeitas à fria lei da concorrência do mercado. Existem frequentes acusações de grilagem na região – como denuncia Dileudo, do Quilombo Bom Jardim. Mas, em muitos outros casos, o processo de compra de terras é feito de acordo com a legislação vigente, assim como a aplicação do veneno. Não incorrer em ilegalismos, porém, não significa que esse não seja um processo violento. A cada metro comprado, a cada terreno com mata que dá espaço à monocultura de grãos, a cada borrifada de veneno, os pequenos agricultores rurais se sentem cercados. Fogem para a cidade. Aos poucos, são desterrados. Ou ficam como o caju cultivado em meio à soja, apáticos, sem dar fruto, fora de lugar na terra a que pertencem.

Nenhum comentário:

Postar um comentário