A postagem de hoje mostra que, sedo o quinto lugar em desigualdade no rank mundial, o Brasil corre o risco de uma tragédia humanitária se adotar a idade mínima da Europa, de 65 anos.
Esperamos que gostem e participem.
Palloma Borges, monitora da disciplina "Economia Política e Direito" da Universidade Federal Fluminense.
Adotar a regra em vigor na maior parte da Europa, de idade mínima de 65 anos para a aposentadoria, como quer o governo Temer, transformaria o País no pior do mundo nessa área, concordam técnicos do setor e economistas.
Diferenças abissais quanto a expectativa de vida, condições socioeconômicas, distribuição de renda e acesso a cuidados médicos tornariam a aplicação da reforma um desastre humano sem precedentes, ainda mais devastador depois da aprovação definitiva pelo Senado, na terça-feira 13, da PEC 55, do teto de gastos públicos, inclusive para a saúde, por 20 anos.
A insegurança generalizada causada pela proposta do governo aumentou as solicitações de aposentadoria em 25% nos postos do INSS entre janeiro e agosto. Uns poucos lucraram com a situação. Nos últimos 12 meses, a captação líquida dos fundos de Previdência privada cresceu 20% e o número de participantes dos planos particulares subiu 5,8%, segundo a federação nacional do setor.
A idade mínima para se aposentar nos 34 países da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico é de 64,6 anos, em média. Em 21 deles, é de 65 anos, conforme destacado na exposição de motivos da PEC 287, da reforma da Previdência. A regra é seguida por Alemanha, México, Chile, Japão, Canadá, Portugal, Suécia, Reino Unido, França, Espanha e mais 11 países europeus.
Não se justifica, porém, a transposição daquele critério para o País. “A expectativa média de vida do bloco de integrantes da OCDE que a adotou é de 81,2 anos e a do Brasil, de 75 anos. Ou seja, indivíduos daqueles países deverão viver 6,2 anos a mais do que um cidadão brasileiro.
Faz sentido igualar a idade de aposentadoria para a média deles?”, pergunta Marcelo L. Perrucci, auditor federal de Finanças e Controle da Controladoria-Geral da União e presidente do Conselho Fiscal da Fundação de Previdência Complementar do Servidor Público Federal do Poder Executivo.
O descompasso aumenta quando a expectativa de vida é relacionada às condições de saúde, mostra um estudo feito pelo especialista. Para cruzar as duas informações, Perrucci aplicou o fator Hale (Health Adjusted Life Expectancy, ou Expectativa de Vida Ajustada pela Saúde, da Organização Mundial da Saúde), “uma conta complexa que abate proporcionalmente da expectativa de vida doenças ou limitações de saúde dos indivíduos”. A fórmula atribui um peso maior às doenças mais debilitantes, enquanto impedimentos menores influenciam menos na expectativa de vida.
O resultado revela o erro monumental da mera transposição. “Nos países escolhidos como modelo, a expectativa de vida com saúde (fator Hale) é sempre maior do que a idade de aposentadoria. Na média, um indivíduo ainda terá 6,5 anos com saúde para aproveitar sua aposentadoria antes de ser acometido por alguma doença ou impedimento.
No Brasil, em média, um indivíduo teria seis meses. Isso mesmo, seis anos lá, seis meses aqui”, sublinha. “Isso significa que a PEC 287/16 tem o potencial de transformar o Brasil no pior país, dentre os analisados, para se aposentar.” Na prática, diz, muitos brasileiros nem sequer se aposentarão, enquanto outros atingirão essa condição à beira de problemas sérios de saúde.
O descompasso reflete o contraste entre as condições de vida nos países avançados e no Brasil e deixa claro o despropósito de adotar o critério do Primeiro Mundo. “Querem implantar aqui 65 anos para homens e mulheres, trabalhadores urbanos e rurais.
Ocorre que o PIB per capita no Brasil é cerca de 10 mil dólares, enquanto nos países desenvolvidos está entre 50 mil e 60 mil dólares. É justo um aposentado da zona rural do Nordeste ser submetido às mesmas regras aplicadas a um trabalhador urbano da Suécia?”, pergunta o economista Eduardo Fagnani, da Unicamp.
A proposta do governo significará a extinção do benefício para milhões no Nordeste, segundo a economista Denise Gentil, da Universidade Federal do Rio de Janeiro. “Um morador do Maranhão ou de Alagoas, os estados com a expectativa de vida mais baixa, vive no máximo 70 anos. Se começou a trabalhar aos 20 anos, precisará se manter na ativa até os 69 para se aposentar com todos os direitos, mas só usufruirá por um ano o benefício integral, apesar de contribuir a vida toda com a Previdência”, contabiliza a professora. “Aqueles dois estados equivalem a um país europeu, em termos de população e tamanho. Esse é um exemplo da magnitude da exclusão da proposta de reforma.”
A exigência de 65 anos para aposentar é o principal ponto criticado pelas oito centrais sindicais, contrárias também ao tratamento igual para homens e mulheres e aos prejuízos para os trabalhadores rurais. O estrago previsto vai além, no entanto, das categorias sindicalizadas e atinge com maior intensidade 4,2 milhões com renda familiar per capita mensal inferior a um quarto do salário mínimo, deficientes ou com mais de 65 anos, amparados pelo Benefício Assistencial de Prestação Continuada.
“De todas as propostas do projeto, a que mais chama atenção pela iniquidade é a mudança do BPC, uma espécie de aposentadoria para os setores mais pobres e vulneráveis da sociedade”, criticou nas redes sociais o economista Ricardo Carneiro, da Unicamp. “Ampliar a idade de acesso de 65 para 70 anos e desvincular a remuneração do salário mínimo é pura maldade. Só um país no qual a escravidão perdurou por muito tempo é capaz de aceitar uma coisa dessas.”
Os economistas defensores da reforma proposta pelo governo alegam a sua necessidade diante de um suposto déficit insustentável no setor, capaz de provocar a implosão das contas da União, mesmo com a adoção do teto para os gastos do governo. O INSS seria uma bomba-relógio, com gastos equivalentes a pouco mais de 41% da receita corrente líquida e fadado a atingir 87% em 2060, mantida a situação atual.
As alegações têm ao menos duas fragilidades. A primeira é a manipulação sistemática das receitas do setor pelos governos desde 1988, amplamente denunciada. Segundo especialistas, os cálculos não consideram todas as fontes de recursos do Orçamento de Seguridade Social nem as renúncias fiscais do governo.
O segundo problema é a inconfiabilidade das projeções divulgadas pelo governo para o setor, base do alarmismo oficial quanto à suposta urgência de uma reforma radical. “As estimativas atuariais do Regime Geral da Previdência Social constam da Lei de Diretrizes Orçamentárias desde 2002, como exigência da Lei de Responsabilidade Fiscal.
Na comparação das projeções de resultados com o efetivamente ocorrido, constatamos diferenças de até 300%, o que não é aceitável sob nenhum aspecto”, dispara o economista Claudio Alberto Castelo Branco Puty, da Universidade Federal do Pará.
Ao menos desde o Fórum Nacional da Previdência Social, realizado em 2007, vários economistas solicitam sem sucesso informações técnicas ao Ministério. “Temos muita dificuldade no acesso aos métodos, modelos, pressupostos e base de dados utilizados nas projeções que constam nos documentos oficiais do governo. É uma caixa-preta”, acusa o professor.
Com um grupo de especialistas, Puty participa de um levantamento amplo da situação do setor coordenado por Clemente Ganz Lúcio, do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos, e Vilson Antonio Romero, presidente do conselho executivo da Associação Nacional dos Fiscais da Receita Federal.
“Como o governo projeta resultados ano a ano, erra solenemente e não diz uma vírgula sobre o assunto, continuamos às cegas, ouvindo a tecnocracia prever déficits para o ano 2060, que, obviamente, têm uma enorme margem de erro. Mas nada é dito sobre a fragilidade dessas previsões e, pior, elas servem para justificar desmontes do sistema previdenciário como o que observamos hoje”, afirma Puty.
Segundo o economista, não há nenhum documento oficial com a descrição dos métodos utilizados na projeção dos resultados e as alterações supostamente sofridas durante a década e meia de existência de dados publicados da Previdência. “Além disso, o governo não dispõe de um processo de avaliação crítica da qualidade das próprias projeções do INSS, como seria recomendável.”
Um exemplo esclarece a gravidade do problema. Desde 2009, as projeções utilizam os mesmos dados para o mercado de trabalho e ignoram as mudanças ocorridas no período no emprego e na taxa de participação das mulheres.
“Um cálculo simples sobre a projeção da população de 2060 feita pelo IBGE permite mostrar que, quando se consideram os dados de mercado de trabalho de 2015, a estimativa do número de contribuintes para aquele ano é ao menos 15% superior àquela feita com base nos dados de 2009, usados nos cálculos apresentados nas LDOs. O número de contribuintes é usado como base para as demais estimativas e o erro acumulado até se chegar às previsões de despesas e receitas pode enviesar toda a interpretação dos resultados.”
O economista considera inadiável a criação, na Previdência, de um sistema de monitoramento de resultados e de avaliação e ajuste de previsões “como em outros setores do governo, para os cálculos de taxa de retorno de concessões públicas ou da meta de inflação”.
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