Olá alunos,
A postagem de hoje procura explicar o significado do
“cooperativismo de plataforma” e a sua relevância para o nosso país. A matéria
destaca três principais desafios para que o cooperativismo digital avance no
Brasil. O primeiro desafio é transportar essa cultura cooperativista para o
universo da produção imaterial e tecnológica. O segundo é tornar essa
possibilidade mais visível. O terceiro desafio é incluir a questão da produção
econômica democrática dentro da agenda de ativismo digital no Brasil.
Esperamos que gostem e
participem.
Palloma Borges, monitora da
disciplina “Economia Política e Direito” da Universidade Federal Fluminense.
O ensaio
inicial desta coluna, Para subverter o capitalismo de compartilhamento,
defendeu a tese de que as tendências neoliberais das economias digitais –
baseadas no discurso do indivíduo consumidor, na prioridade do acesso, nas
vantagens dos usos eficientes de recursos mediados por plataformas e na
monetização dos afetos – estão sendo combatidas por alternativas que retomam o
significado relacional do compartilhamento e da tradição cooperativa e
solidária.
Um dos
projetos mais importantes nessa tradição alternativa é o platform cooperativism
lançado nos Estados Unidos no ano passado, um projeto de reconstrução das
economias digitais em bases democráticas e solidárias. Pretendo explicar nesse
texto o significado do “cooperativismo de plataforma” e sua importância para o
Brasil hoje.
Uma
reação contra Uber e AirBnb
A origem
do termo “cooperativismo de plataforma” está em um ensaio do professor e
ativista Trebor Scholz, da The New School – um tradicional centro intelectual
de esquerda nos EUA, por onde passaram John Dewey,Franz Boas e Hannah Arendt –,
intitulado Platform Cooperativism v. The Sharing Economy.
Nesse
ensaio, Trebor analisa as transformações do capitalismo digital e a ascensão do
“capitalismo de plataforma” avançado pela Uber, AirBnb e outras plataformas
mundialmente conhecidas. Seu argumento inicial é que tais empresas utilizam o
termo “economia do compartilhamento” para uma agenda extrativista, direcionada
à monetização de serviços prestados entre indivíduos em escala global. Além
disso, segundo Scholz, essas empresas se estruturam como multinacionais
tradicionais, com alto grau de verticalização, opressão dos “funcionários” de
baixa escala (os “usuários”) e conselhos de administração voltados à
maximização do retorno de investidores capitalistas.
Por trás
do discurso do “compartilhamento” se esconde uma agenda de concentração de
riqueza, precarização do trabalho, destituição de direitos trabalhistas e altos
retornos para o setor financeiro que “banca” tais plataformas globais. É o que
ele chama de “capitalismo de plataforma”.
Mas, para
Trebor e outros críticos, seria possível hackear esse sistema. A proposta do
“cooperativismo de plataforma” é que a estrutura e a lógica das plataformas de
serviços e de produção sejam tomadas pelos usuários e trabalhadores.
A ideia,
lançada em 2014, seria criar uma espécie de Uber dos próprios motoristas, ou um
AirBnb de propriedade de uma comunidade local. Nesse programa econômico e
político, é imperativo um retorno aos princípios do cooperativismo: a
propriedade deve ser coletiva, o negócio deve ser democraticamente controlado,
a missão deve ser garantir empregos e a solidariedade deve embasar mecanismos
de apoio mútuo.
Um
seminário que inaugura um projeto político
O ensaio
sobre “cooperativismo de plataforma” chamou atenção de vários grupos e
ativistas nos EUA. Logo após sua publicação, o jornalista e ativista Nathan
Schneider se prontificou a organizar um grande seminário sobre o tema
juntamente com Trebor Scholz no ano de 2015.
O
conceito também invadiu a agenda progressista estadunidense no ano passado. No
ensaio coletivo Five Ways to Take Back the Tech, publicado em maio do ano
passado no The Nation, Janelle Orsi, Frank Pasquele e Nathan Schneider
discutiram exemplos concretos de cooperativismo digital, como o FairCoop e
sistemas de trocas baseados em moedas criptografadas e códigos abertos. Os
diferentes ensaios reforçaram a agenda de alternativas para a economia digital,
colocando “controle real e propriedade nas mãos dos usuários”.
A
proposta reverberou no próprio ecossistema de cooperativas dos EUA, apesar de
alguns discordâncias. Como afirmou um criador de uma plataforma cooperativa de
mídia, “nós não estamos tomando nada de ninguém, mas simplesmente construindo
algo com valor a partir de um empreendimento de propriedade compartilhada”. O
segredo, portanto, reside aí: a propriedade é compartilhada; as decisões são
compartilhadas e não apenas o “objeto de consumo” – uma ideia frontalmente
oposta ao modelo privatista de grande parte do Vale do Silício.
Em
novembro de 2015, Scholz conseguiu reunir dezenas de ativistas, intelectuais e
cooperados no evento Platform Cooperativism. O seminário consolidou o projeto do
“cooperativismo de plataforma” por meio de uma ampla discussão sobre
“ecossistemas alternativos”, substituição do “acesso” pela “propriedade”, e
crítica ao “solucionismo tecnológico” (nos termos de Evgeny Morozov). Como
afirmou o próprio Schneider na palestra da abertura, “o cooperativismo de
plataforma não é uma solução, mas um processo”.
Desde o
evento, o projeto tem se expandido e ganhado força nos EUA. Trebor Scholz
publicou uma versão expandida do ensaio pela Fundação Rosa Luxemburgo,
Schneider organizou listas e comunidades online sobre o tema, e cooperados
criaram uma “rede de cooperativas digitais” para troca de informações.
Cooperativismo
digital: três desafios para o Brasil
O Brasil
é um país com uma forte cultura de cooperativismo, especialmente no setor
produtivo rural. Segundo relatório recente da Organização das Cooperativas
Brasileiras (OCB), são mais de 6.500 cooperativas no país, reunindo 13 milhões
de cooperados – mais que a população de Áustria e Noruega juntos.
Indiretamente, o número de envolvidos chega a 33 milhões, segundo dados da
FEA/USP.
O
primeiro desafio para avançar o “cooperativismo de plataforma” no país,
portanto, é transportar essa cultura cooperativista para o universo da produção
imaterial e tecnológica. O cooperativismo é, como afirma a OCB, “uma
alternativa de inclusão produtiva e de transformação da vida das pessoas”.
Porém o Brasil não promoveu ainda uma discussão robusta sobre cooperativismo
digital. É sintomático, aliás, que das treze categorias de atividades econômicas
de cooperativas no Brasil não exista a categoria “tecnologia” ou “cooperativas
digitais”. Os setores de agropecuária, crédito e transporte dominam o
cooperativismo no país.
O segundo
desafio é tornar essa possibilidade mais visível, por meio de circulação mais
intensa de ideias e projetos de democratização da economia na Internet. Há
esforços isolados, como do Partido Pirata, dedivulgar tecnologias de blockchain
e o projeto de “cooperativismo de plataforma”. Mas precisamos de mais
iniciativas e mais grupos nessa agenda. Nesse sentido, a iniciativa da Fundação
Rosa Luxemburgo de discutir “economia solidária” e novas tecnologias é louvável
e mais do que necessária.
Por fim,
o terceiro desafio é incluir a questão da produção econômica democrática dentro
da agenda de ativismo digital no Brasil. Nosso país éadmirado mundo afora pela
força dos ativistas e da sociedade civil na construção do Marco Civil da
Internet. Os brasileiros também são admirados pelo combate ao vigilantismo e
grandes eventos de ativismo como a CriptoRave. Mas a questão de uma “economia
democrática digital” não entrou na agenda do cyberativismo.
As coisas
não podem estar descoladas – e não estão. Cooperativas de plataforma não são
somente alternativas a grandes empresas com Uber e AirBnb, mas são também
estratégias de maior controle sobre transações financeiras e sobre os dados
pessoais, na medida em que os usuários são os proprietários e gestores dessas
plataformas.
A
democratização das formas de produção também implica em empoderamento dos usuários
e maior capacidade de decisão sobre os fluxos de dados e tecnologias de
privacidade. Aí reside a conexão entre o “cooperativismo de plataforma” e a
luta por direitos tão vigorosa no Brasil.
Nenhum comentário:
Postar um comentário